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Futebol Sem Fronteiras

O jogo por trás do jogo. Com Jamil Chade e Julio Gomes


OPINIÃO

Futebol sem Fronteiras #23: Ditadura saudita usa Newcastle para limpar imagem

Do UOL, em São Paulo

14/10/2021 16h00

O futebol europeu tem um novo-rico. Na última semana, o Newcastle foi vendido para um fundo de investimentos da Arábia Saudita, em uma negociação especulada em 300 milhões de libras (cerca de R$ 2,2 bilhões) pela imprensa britânica. O clube inglês segue os passos de Manchester City e Paris Saint-Germain, administrados por grupos dos Emirados Árabes e do Qatar, respectivamente, com promessas de grandes investimentos. O que poderia ser a "sorte grande", porém, tornou-se motivo de uma imensa discussão..

No podcast Futebol sem Fronteiras #23 (ouça na íntegra no episódio acima), o colunista Julio Gomes e o correspondente internacional Jamil Chade discutiram a polêmica venda do Newcastle para um fundo de investimentos saudita. Eles revelaram o que há por trás desta negociação e como as intenções dos novos donos da equipe visam muito mais do que o âmbito esportivo.

Jamil explicou a origem de tanto dinheiro. "O fundo soberano da Arábia Saudita foi criado pelo próprio estado da Arábia Saudita porque a quantidade de recursos que entram no país por conta da exportação de petróleo é tão grande que, para essa geração de sauditas, tem dinheiro sobrando. Eles criaram um fundo para administrar o excedente de dinheiro do petróleo. Quem é o dono do fundo? O próprio estado saudita, que é, acima de tudo, uma monarquia absoluta e controlada de forma completa pela família real há décadas", disse o jornalista.

O correspondente internacional também contou os motivos pelos quais a compra do Newcastle por um fundo controlado pelo governo saudita causa tanta controvérsia. "Não há nenhuma dúvida ou confronto. Qualquer tipo de oposição é silenciado. No caso, o príncipe Mohammed bin Salman não deixa dúvidas de que, com força, repressão e censura, controla o país e, portanto, também o fundo. É esse fundo que chega na Europa e compra um time medíocre. Faz 50 anos que o Newcastle não ganha nada. Está na primeira divisão, mas não está com ambições de ganhar algum campeonato", comentou Jamil.

A prática de usar o esporte como forma de atenuar as atrocidades de um regime ditatorial não é nova, como mostrou Julio. "É um termo que existe há bastante tempo e vai aparecer cada vez mais. Sportswashing é a maneira de limpar a sua imagem pelo esporte. Cuba faz isso a vida inteira, com o beisebol e a força nos esportes olímpicos. Você tem uma ditadura, mas o sucesso esportivo serve para mostrar que 'esse lado ruim não tem nada a ver; olha nosso sucesso esportivo'. Aí é diferente a natureza, porque é o próprio estado mostrando algo de bom que ele faz. Outra coisa é tentar fazer uma publicidade positiva do seu nome pela compra de um evento, ser sede de uma corrida de Fórmula 1", apontou o colunista.

O exemplo de sucesso do Manchester City serviu como base para o investimento saudita em outro clube inglês. Para Jamil, o plano foi feito pensando a longo prazo. "O que fazem os sauditas? Algo muito parecido com o que seus 'primos' do Manchester City fizeram. Compraram um time com uma grande torcida para transformá-lo em uma futura grande potência. Eles viram que funcionou com o Manchester City dez anos depois, o que para esses regimes não é grande coisa, já que eles pensam em 50 anos. Pensar em dez anos é um projeto razoável. É o que os Emirados Árabes fizeram com o Manchester City e deu resultado, pois o clube é candidato a todos os títulos de que participa", frisou o correspondente.

Jamil usou alguns exemplos de como o governo da Arábia Saudita quer mudar a imagem do país, marcada por perseguições políticas e cerceamento de direitos, principalmente das mulheres. "Os sauditas querem fazer exatamente esse modelo: transformar o futebol em uma vitrine positiva. Os sauditas têm sérios problemas de direitos humanos, com as mulheres invisíveis até hoje na sociedade e em situação dramática. Se não bastasse, tem os jornalistas. Jamal Khashoggi, um jornalista saudita que trabalhava para The Washington Post, foi morto dentro de um consulado saudita e a investigação mostrou a implicação direta do estado", citou. A Anistia Internacional (AI) quer se reunir com a Premier League para discutir as políticas da entidade por conta da venda do Newcastle.

Julio destacou que a dependência do petróleo saudita motivou países desenvolvidos a fazer vistas grossas para o que acontece dentro do país do Oriente Médio. "A relação da Arábia Saudita com o mundo desenvolvido sempre foi muito próxima. Ninguém tem vergonha de tirar foto com ditador da Arábia Saudita. O dinheiro manda. A Arábia Saudita é o maior produtor de petróleo do mundo e tem muito dinheiro lá. É importante para o mundo ocidental ter um diálogo com quem fornece energia", ressaltou.

Diante deste cenário, não é difícil imaginar a rejeição e a preocupação que a venda do Newcastle causou não apenas à torcida do clube, mas a todo o futebol europeu. "Tudo isso, e a censura, abusos e tortura, é uma realidade da Arábia Saudita, que precisa se apresentar de outro jeito para o mundo e de uma outra cara. O atalho que ela vai usar é o futebol. Estamos falando do futebol ser manipulado por uma ditadura para tentar mostrar ao mundo, ou pelo menos para aqueles torcedores, que 'somos uma ditadura, censuramos e matamos, mas queremos ter uma imagem positiva no mundo'. Por isso é tão indignante ter uma situação dessa", concluiu Jamil.

Ouça o podcast Futebol sem Fronteiras e confira também a análise do panorama das eliminatórias da Copa do Mundo-2022 após os jogos deste mês, além das classificações de Alemanha e Dinamarca,

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