Fim simbólico: a disputa de xadrez que abalou a União Soviética, há 40 anos

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Em 1985, a disputa entre os soviéticos Anatoly Karpov e Garry Kasparov pelo título do Campeonato Mundial de Xadrez em Moscou — que já durava cinco meses e é até hoje o mais longo da História — acabou sem vencedor, após 48 jogos.
O jogo foi interrompido pelo presidente da Fide (Federação Internacional de Xadrez), Florencio Campomanes, e marcou simbolicamente a derrocada da União Soviética.
A importância da disputa Karpov x Kasparov
Xadrez representava na URSS o que o futebol é para o Brasil: uma paixão nacional. Nomes dos jogadores eram conhecidos até por pessoas que nunca tinham se sentado à frente de um tabuleiro.
Mais reconhecido, Karpov era membro da "velha guarda" do xadrez, já Kasparov era o futuro. Uma vitória do mais jovem poderia sinalizar novos tempos para um país que já beirava a dissolução. É bom lembrar que 1985 é o ano em que assume o último líder da URSS, Mikhail Gorbachev.
A Fide organizou 23 Campeonatos Mundiais de Xadrez no século 20, a partir de 1948. Apenas um não foi vencido por um soviético (ou nascido em território que pertenceu às URSS): Bobby Fischer, em 1972.
Quando a disputa entre Karpov e Kasparov aconteceu entre 1984 e 1985, o primeiro era o detentor do título. Ele venceu seis vezes o campeonato, um feito até hoje só igualado pelo seu adversário da ocasião, Kasparov, e pelo treinador dos dois, Mikhail Botvinnik.
Jogadores tinham associações políticas diferentes
A União Soviética usava suas estrelas esportivas como ferramenta de propaganda política.
Karpov era um símbolo dos ideais soviéticos. "Ele era um cara realmente russo do Ural e representava nosso país com glamour, com tudo o mais. Ele era um deus na Rússia", relembrou à rede americana CNN o grande-mestre de xadrez russo Gennadi Sosonko.
Kasparov tinha algumas fraquezas aos olhos do Partido Comunista, que fazia distinção entre russos e soviéticos de outras origens das repúblicas socialistas.
Ele não era russo, era meio-judeu e meio-armênio, e veio de Baku [capital do Azerbaijão]. A União Soviética era bastante antissemita. Mesmo naquela época, todo mundo sabia que o Kasparov era jovem, ambicioso. Não era um dissidente, mas alguém que representava a nova onda. Gennadi Sosonko
Entre os amigos de Kasparov estavam artistas, como atores, e alguns dissidentes e críticos do regime comunista da URSS. Já Karpov era o oposto, bem relacionado entre a área "linha dura" da sociedade soviética.
Diferenças se refletiram no tabuleiro
Kasparov era mais agressivo e dinâmico. A opinião é do historiador do xadrez e grande-mestre Andrew Soltis. À CNN, ele explicou que Karpov era muito mais conservador também no tabuleiro. "Ele jogava um jogo de espera frequentemente. Especializava-se em melhorar sua posição gradualmente até que se tornasse opressiva. Karpov raramente ganhou um jogo em menos do que 30 jogadas. Kasparov se divertia ganhando muito rápido".
DIsputa era "Fla-Flu". Não havia meio-termo: entre os soviéticos, ou você era fã de Karpov, ou de Kasparov.
Campeonato começou em 10 de setembro de 1984 e o vencedor seria o primeiro a vencer seis jogos. Nas regras da época, empates não valiam nada. Após nove jogos e 25 dias de disputa, Karpov vencia por 4 a 0.
Os 17 jogos seguintes foram empates, mas Karpov venceu novamente no jogo de número 27. Faltava apenas um para levar o título. Mas Kasparov começou a virar o jogo, literalmente.
Karpov começou a cometer erros e, no jogo de número 32, Kasparov finalmente venceu pela primeira vez. "Ele não entrava em colapso emocional como muitos dos adversários de Karpov fizeram", comentou Soltis. Já o veterano começou a demonstrar desgaste e irritação.

Outros 14 empates depois, Kasparov venceu os jogos 47 e 48. O placar estava 5 a 3 àquela altura, mas o Karpov que entrou na competição em 1984 já não era o mesmo em 1985 — ele já tinha perdido 10 kg durante a competição, de acordo com a CNN. Seus auxiliares teriam relatado que ele dormia cada vez menos.
Campomanes, o presidente da Fide, interrompeu a virada. Citando a saúde dos jogadores, ele anunciou que a federação estava abandonando a disputa do Campeonato Mundial. A decisão, segundo ele, foi apoiada pela Federação Soviética de Xadrez.
Presidente foi apelidado de "Karpovmanes" e há quem acredite que decisão foi "marmelada política". Sosonko acusa a Fide de estar "na mão dos soviéticos" na época.
Quatro décadas depois, o atual diretor-geral da Fide, Emil Sutovsky, nega. O dirigente e jogador soviético, que compete por Israel desde a dissolução da URSS em 1991, alegou à CNN que soviéticos eram influentes, mas havia grandes tensões entre a organização e a Federação Soviética de Xadrez entre 1983 e 1985.
Há teorias da conspiração que apontam Campomanes, que morreu em 2010, como um agente da KGB. Sosonko, contudo, não acredita que o presidente da federação fosse parte da inteligência soviética, mas que estivesse do lado do regime. Saltis concordou, mesmo salientando que, em disputas anteriores, o ex-presidente tomou decisões que prejudicaram soviéticos.
Os adiamentos, eu acho, foram o ponto crítico. Normalmente, jogadores podem pedir que um jogo seja adiado naquela ocasião por causa de doença, [em uma situação em que] os jogadores já usaram os números de dias [de folga] que poderiam. Mas houve aqueles adiamentos misteriosos que o governo ou os oficiais de xadrez ordenaram. Não havia explicação real. Então havia essa mão invisível que beneficiava o Karpov. Andrew Soltis, historiador e grande-mestre de xadrez
Campomanes pareceu mudar de posição — política — durante o torneio. No início, ele agia como uma figura firme e inimiga dos soviéticos, acredita Soltis, mas depois ele passou a ajudar Karpov e a Federação Soviética. Até hoje, não há explicações com provas sobre o que de fato ocorreu nos dias e meses anteriores à decisão de fevereiro de 1985.
Em setembro, um novo Campeonato Mundial começou. Desta vez, vencia aquele com melhor placar em 24 jogos. Kasparov levou a melhor por 13 a 11 sobre Karpov, tornando-se à época o mais jovem campeão do mundo aos 22 anos. O recorde hoje é do campeão de 2024, Gukesh Dommaraju, com 18 anos.
Em 2020, Karpov disse que se ele tivesse vencido a disputa de 1984/1985 por 6 a 0, Kasparov nunca teria se tornado campeão mundial. Para ele, o jovem era "emocional demais". Mas nem o veterano, nem a URSS, puderam conter as mudanças em seu futuro.
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