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Entenda por que comportamentos de Cereto se enquadram em assédio

Pedro Lopes e Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

07/07/2021 04h00

O jornalista Carlos Cereto, que deixou a Rede Globo na última quinta-feira (1º) depois de 20 anos na emissora, é alvo de acusações de ter assediado moral e sexualmente funcionárias, gerando pelo menos uma condenação judicial à emissora. Ele nega essas acusações. O UOL ouviu dois advogados especializados no assunto para entender por que as acusações se enquadram em assédio.

"Antes, o que era considerado um xaveco ou uma brincadeira, hoje, pode ser considerado assédio. A sociedade muda e a lei acompanha", afirma o advogado trabalhista e especialista em Direito Empresarial do Trabalho pela FGV Marcos Lemos, dizendo que as mudanças socioculturais são imprescindíveis para o julgamento de casos de assédio.

As acusações

Em maio de 2019, a Globo foi condenada na Justiça do Trabalho a indenizar uma funcionária por assédio moral praticado entre 2013 e 2015 por Cereto, então chefe de reportagem do SporTV em São Paulo. No processo, há cópias de emails e conversas em aplicativos de mensagem com ameaças de demissão e questionamento de competência na frente de outros funcionários, relatos de pelo menos quatro testemunhas e, também, uma acusação de assédio sexual. Sete pessoas que trabalharam com Cereto no SporTV nos últimos anos confirmaram, na condição de anonimato, os comportamentos descritos na ação judicial e relataram situações de constrangimento e assédio nos corredores da Globo.

Uma das testemunhas do processo obtido pela reportagem relatou à Justiça que Cereto tinha comportamentos agressivos e reiterados não só com a autora da ação, mas com o público feminino em geral. "Com a autora e mais especificamente com a figura feminina, Carlos praticava condutas de humilhação, criando ambiente de terror psicológico em tom de voz alto, praticamente todos os dias, o que foi presenciado pelo depoente até sair do Arena SporTV", afirma o depoimento.

O processo também fala em "assédio sexual" ao descrever o comportamento de Cereto: "Seu supervisor Carlos Cereto a diminuía constantemente perante o departamento em que ambos trabalhavam e, ainda, a assediava sexualmente", diz o texto. "Carlos falava na frente de outros colegas ou por e-mail direcionado à depoente 'que era incompetente, desqualificada, despreparada', fazia ameaças de demissão; que assediava a depoente dizendo que a depoente estava uma delícia, beijava sua mão, e a fazia dar uma voltinha, fatos que constrangiam a depoente", segue a peça.

O que dizem os juristas

O advogado trabalhista e mestrando em Direitos Humanos Waldemar Lima analisa o caso como clássico exemplo de demonstração de poder por meio da coação. Segundo ele, uma vez que o assédio é cometido por um superior, denunciar à empresa é mais difícil —a vítima teme retaliação, como é o caso dos entrevistados ouvidos pelo UOL Esporte, que não se identificaram por medo de serem punidos.

"É bom deixar claro que todos os empregadores, independentemente do cargo, são passíveis à aplicação da lei penal e da Constituição Federal. No caso do assédio moral, cabe uma ação na esfera cível porque ainda não existe uma lei que o torna ilícito. Mas é, sim, possível pedir indenização por danos morais", explica.

Outros relatos, confirmados por quatro fontes que não fazem parte do processo, contam uma passagem na qual o apresentador teria dito para uma funcionária andar à sua frente, pois ele preferia vê-la "indo do que voltando". Em outro episódio, teria dito que "lamberia" uma das mulheres com quem trabalhava. À reportagem, um funcionário contou ter sido ofendido publicamente, no meio do ambiente de trabalho, durante a jornada. "Ele se irritou comigo e me mandou tomar no c... e se f... ".

Waldemar diz que o assédio moral é a porta de entrada para o assédio sexual. De acordo com ele, a lei caracteriza assédio sexual como a tentativa de realizar um ato sexual sob ameaça de exercício de força. Ainda assim, ações de constrangimento, como as relatadas pela reportagem, podem, sim, ser consideradas crime judicialmente. "Nesse caso, entra a interpretação extensiva da lei, de acordo com o primeiro artigo da Constituição Federal, que garante a dignidade da pessoa. Os atos relatados pela reportagem ferem a dignidade das funcionárias; excede-se e invade-se a intimidade e a liberdade da pessoa. Então, é possível, sim, enquadrar piadas maliciosas no ambiente de trabalho como assédio sexual".

Waldemar relaciona as atitudes relatadas ao machismo e a uma questão geracional. "Muitos chefes mais velhos temem serem substituídos por pessoas mais novas e, quando existe machismo, por mulheres. Por isso, essas pessoas sentem necessidade de demonstrar poder e força", explica. "Lamentavelmente, o medo de retaliação impede as vítimas de denunciarem. Entretanto, é importante frisar que, mesmo depois de anos do assédio, ainda é possível fazer a denúncia".

Segundo o advogado trabalhista Marcos Lemos, denúncias de assédio sexual podem —e devem— gerar demissão por justa causa ao assediador. "A empresa tem obrigação constitucional de manter o ambiente de trabalho saudável. Tanto o assédio sexual como o assédio moral geram danos físicos e psicológicos ao assediado. Por mais que o responsável imediato seja o assediador, legalmente, a empresa, se conivente, também deve ser responsabilizada". O especialista explica, ainda, que, ao receber denúncias de assédio moral ou sexual por parte de um funcionário, a empresa deve agir. "Se não agir, juridicamente pode ser condenada também".

Procurada pela reportagem, a TV Globo não respondeu se sabia, ou não, das denúncias contra Cereto — o UOL Esporte apurou que os casos de assédio já haviam chegado ao compliance (área responsável pela conformidade com regras e procedimentos legais) da empresa. Em nota, a emissora afirma: "A saída do jornalista foi uma decisão de gestão. Sobre as perguntas a respeito de compliance, a Globo não comenta assuntos da Ouvidoria, mas reafirma que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e incentiva que qualquer abuso seja denunciado. Neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo."

Procurado pela reportagem, Cereto se disse surpreso com as acusações, negou ter praticado assédio de qualquer tipo e disse que nunca foi notificado por qualquer departamento interno da Globo por qualquer comportamento inadequado. "Honestamente, não procede. Terei que me defender de alguma maneira. Isso não aconteceria sem que a Globo tomasse uma decisão. Segui na Globo por anos depois dessa ação, que é de 2016. A emissora tem um departamento de compliance, leva tudo isso muito a sério. Ainda fui transferido para o Rio depois, foi uma promoção, para apresentar o programa. Estou saindo de comum acordo", diz o jornalista.

Advogado do apresentador, Jonas Marzagão afirma que é impossível se defender de uma acusação apócrifa e sem os fatos. "Como advogado de defesa, me causa surpresa. É difícil nos defendermos se não sabemos quem são os denunciantes, onde está essa denúncia, quais são os fatos alegados".

Sete fontes que trabalharam com o jornalista e preferem manter anonimato confirmam o teor do processo ao qual o UOL teve acesso.