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ANÁLISE

Uso de dados faz Fla ser ainda mais dominante no basquete do que no futebol

Jogadores do Flamengo comemoram o título do NBB após vitória sobre o São Paulo - Thiago Ribeiro/AGIF
Jogadores do Flamengo comemoram o título do NBB após vitória sobre o São Paulo Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Guilherme Tadeu*

Colaboração para o UOL, em Maringá

29/05/2021 04h00

Se não é novidade para ninguém que o Flamengo vive nos últimos anos um dos melhores momentos de sua história no futebol, parece exagero imaginar um cenário em que o rubro-negro se apresente como uma força ainda mais moderna, imparável e imbatível. Pois ele existe: o basquete. O sétimo título do NBB, conquistado nessa quinta-feira (27) com a vitória sobre o São Paulo, reafirmou uma hegemonia que vem de longe e se sustenta sem que exista uma sombra para se impor como grande obstáculo.

Não obstante a brava resistência de Georginho, Lucas Mariano, Bennett e Dawkins, destaques do tricolor paulista na série decisiva, ninguém que acompanhou o que vem fazendo nas quadras o Flamengo de 2021 se surpreendeu com o 3 a 0. Foi a primeira vez que um playoff final de melhor de cinco do NBB terminou com uma varrida.

O desafio em momentos como esse é tentar fugir da radiografia mais comum: aquela que diz que venceu quem mais investiu, quem tinha o melhor time. Trata-se de uma resposta fácil e que tem premissas que se sustentam. De fato, o Flamengo investe e tem o melhor elenco do país. Mesmo sem Balbi, seu maestro, ainda é um grupo com jogadores históricos do NBB. Com a exceção do Paulistano de 2018, então treinado por aquele que é hoje o técnico do Flamengo, Gustavo De Conti, todos os times que venceram o NBB tinham alto investimento e os jogadores mais disputados do mercado.

Optar por respostas fáceis, porém, pode enublar a vista para um movimento tático revolucionário que se impõe pelas quadras do mundo como um rolo compressor. O basquete do Flamengo vence porque tem o melhor time, mas também porque é o time brasileiro mais adaptado às revoluções táticas que tomaram o mundo da bola laranja de assalto nas últimas décadas.

Trata-se da assim chamada "Analytics Revolution", movimento histórico de difícil datação precisa, mas que tem como marco as estratégias de montagem de elenco criadas por Billy Beane - gerente geral do Oakland Athletics, time da liga profissional de beisebol dos Estados Unidos -, nomeadas Moneyball. A jornada do dirigente se tornou tão célebre que virou filme no qual ele é interpretado por Brad Pitt, se tornando a face de um movimento maior e mais amplo da utilização de estatísticas avançadas nas tomadas de decisões nos mais variados âmbitos esportivos.

No basquete, é difícil criar uma genealogia da "Analytcs Revolution" sem cometer grandes injustiças, embora haja certo consenso em atribuir a Daryl Morey, atual GM do Philadelphia 76ers, o protagonismo na NBA no movimento de transformar os preceitos da revolução de Beane em método.

Hoje a ampla maioria das equipes da NBA tem investimentos substantivos em profissionais que trabalham na organização e utilização de dados estatísticos a fim de dar base para que seus dirigentes e técnicos tomem decisões. Esqueçam aquelas estatísticas mais comuns, celebradas nas transmissões por décadas: pontos, rebotes e assistências. Isso virou a pré-história dos números no basquete. Hoje, o número de variáveis disponíveis é tamanho que a leitura de estatísticas demanda um severo treinamento.

Na NBA, os efeitos dos Analytics já podem ser sentidos das mais variadas maneiras, e embora haja um ou outro purista que tente lutar contra a ciência, os dados se impuseram de maneira predominante. Eles podem influenciar na gestão da equipe, ou também em questões táticas. Isso tem desdobramentos técnicos, uma vez que esses números acabam definindo perfis específicos de jogadores que são bem quistos, o que acaba também por influenciar na própria preparação técnica dos jogadores.

É, no fim das contas, uma maneira mais inteligente e científica de olhar para o jogo e está mudando tudo. De todas as transformações resultantes no basquete, duas são fundamentais e inquestionáveis, e a partir delas podemos entender melhor o que faz do Flamengo um time tão irresistível: a aceleração do ritmo jogo, aumentando assim o volume de posses ao longo da partida, e o aumento do número de tentativas de três pontos, duo de condições básicas para que se aumente substantivamente o número de pontos tentados ao longo das partidas.

Se no Paulistano Gustavinho já havia sinalizado, muito por feeling e empirismo, um sistema de jogo de alto volume que assustaria todo o campeonato, no Flamengo ele elevou essa maneira de jogar ao status de sistema. Mas não foi da noite para o dia. É perceptível a evolução daquele seu primeiro time, ainda com um pivô mais fixo como Varejão e inclusive a presença de Balbi, um armador que freia mais o ritmo ofensivo, para esse, da maquininha Yago, e do gigante gentil Hettsheimeir, do super versátil Rafael Mineiro, do faz-tudo Olivinha, do craque Marquinhos, do agressivo Martinez, do gatilho Chuzito, de Léo Demétrio.

Na esteira de Gustavinho, a comissão técnica do Flamengo é igualmente impressionante. Fernando Pereira, auxiliar técnico que chegou a comandar o time quando Gustavo teve de se ausentar por conta doa covid-19, é especialista em estatísticas avançadas aplicadas ao basquete, tendo sido um dos pioneiros no Brasil no estudo de pontos por posse. O segundo assistente e técnico do Flamengo na base, Rodrigo Galego, conquistou os Brasileiros sub18 e sub21 pelo rubro-negro implementando um sistema de jogo também baseado nos preceitos da Analytics Revolution.

O Flamengo campeão do NBB de 2021 faz jus a um antigo apelido do time de futebol da Gávea: sem freio. O time que não perdeu nenhuma partida nesse ano e conquistou os dois principais títulos disponíveis, a Champions League das Américas e o NBB, simplesmente não parou de acelerar em nenhum momento. Alta rotação de jogadores para jamais perder o ritmo, cinco atletas sempre aptos a agredir o adversário, quase sempre todos abertos e prontos para aproveitar dos espaços criados para chutar - de preferência de três pontos.

Volume, intensidade, espaçamento, criação de vantagem e mais e mais pontos tentados, muito mais que o adversário, sempre. Defender o Flamengo se tornou asfixiante porque se lhes negar s bola de três, a agressividade em direção a cesta traz bandejas fáceis. Do outro lado da quadra, a mesma resposta, só que ao avesso: deve-se aceitar o ataque de jogo retrógrado, das bolas de meia distância e baixo aproveitamento, frear equipes de alto volume, proteger a área pintada e sempre limitar os lances-livres, a cesta mais fácil disponível.

O Flamengo conquistar mais um título não surpreende ninguém. É o sétimo do NBB. Com o investimento que tem, o rubro-negro continuará entrando em todas as competições com a obrigação de entregar taças. A questão não é essa, mas tentar entender o que fez do Flamengo de 2021 um time tão imparável, tão irresistível, tão asfixiante. E se todos continuarem achando que o resultado se deu por conta das máximas ganhou quem investiu mais, ganhou quem tinha os melhores jogadores, o Flamengo de Gustavinho continuará sorrindo e perguntando, entre um Uólace e outro: Você pensa que Flamengo é time?

* Guilherme Tadeu é comentarista, podcaster e streamer do Café Belgrado