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Sozinha e nômade, brasileira completa 4 anos de bike pela América do Sul

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Bruno Romano

Colaboração para o UOL, em São Paulo

28/10/2017 04h00

Muito além dos quilômetros: a paulista Carol Emboava reflete sobre desafios, descobertas, tabus, encontros e solidão em mais de 18 mil quilômetros percorridos pelo continente sobre sua bicicleta – uma das mais incríveis cicloviagens independentes completadas por uma brasileira até hoje.

Toda grande aventura de bike começa com a primeira pedalada, diz a máxima. Mas no caso de Carol Emboava, só para chegar até o ponto de “largada” já foi uma jornada e tanto. Com o sonho de pedalar pela América do Sul durante um ano sabático, esta educadora física e especialista em nutrição de Taubaté (SP), hoje com 35 anos, teve de quebrar vários tabus – o desafio físico e as longas distâncias da estrada, acredite, seriam os menores deles.

Para começar, ela só havia feito uma pequena cicloviagem pra valer, em 2004, a qual teve de abandonar no meio do caminho assim que descobriu uma grave lesão no joelho. Passou, então, os dez anos seguintes longe da bike – o diagnóstico médico chegou ao exagero de cravar que ela nunca mais poderia pedalar. E pra fechar a epopeia, Carol se convenceu de que encararia uma imensa volta pelo continente em solitário.

Contrariando as expectativas, quatro anos (e mais de 18.000 quilômetros) depois, ela completava, no último mês de setembro, uma das mais corajosas e inspiradoras viagens autossuficientes feitas por uma brasileira. 

Ela andou sozinha e nômade pelo continente - Divulgação/Mauro Cueva - Divulgação/Mauro Cueva
Imagem: Divulgação/Mauro Cueva

Desde que Carol deu a primeira pedalada da expedição, batizada de Giramérica, em 4 de agosto de 2013, saindo de Curitiba (PR), muita coisa aconteceu. “Não consigo nem imaginar uma viagem mais especial do que esta, feita em uma bicicleta e embalada por minha própria força”, celebra a aventureira, que levou nove meses para tirar a ideia do papel.

Nesta altura, ela já havia se redescoberto no esporte com o montanhismo, tinha se envolvido em um projeto pessoal focado em dicas de culinária ao ar livre, e estava dando cada vez mais ouvidos a uma incontrolável vontade de pedalar por aí, fruto de uma conversa descompromissada durante um passeio de bike ao lado de um amigo.

Acelere o filme para três meses de estrada para chegar a primeira revelação no caminho do Giramérica: “Descobri que planejar a longo prazo gera muita expectativa, várias delas em cima de coisas que talvez sequer venham a acontecer”. Começava ali a versão definitiva da expedição, muito mais aberta e adaptável, que acabou desbravando seis países.

Foi nesta toada que Carol alcançou seu primeiro grande objetivo: o Ushuaia, a cidade mais austral do planeta, no extremo sul argentino. Para dar conta de seguir na estrada – um ano sabático já seria pouco para saciar sua vontade –, ela fez pausas para trabalhar e levantar grana em locais como o próprio Ushuaia e San Pedro de Atacama, no norte do Chile, alguns meses depois, além de encarar alguns “bicos” pelo caminho.

Na reta final, para conectar sua estada no sexto país visitado, o Peru, com a volta à casa em Taubaté, ela buscou o caminho do financiamento coletivo. A iniciativa lhe rendeu verba suficiente para os últimos seis meses de pedalada, já que, neste ponto da jornada, muita gente acompanhava seu feito em relatos pela internet.

Mas vamos voltar à estrada. Em uma das travessias mais perigosas do percurso, Carol é obrigada a empurrar sua bike (imunda e carregada de tralhas) por um caminho sinuoso, estreito, cheio de pedras grandes e soltas, e com subidas intermináveis em uma área remota da Patagônia, na divisa entre a Argentina e o Chile. Algumas horas antes, ela havia encarado uma travessia de barco junto de um punhado de mochileiros que conhecera por ali. Do outro lado da margem, ela se deparava com duas companhias constantes no Giramérica: o imprevisível e o desconhecido.

Somando quase 50 quilos entre bicicleta e pertences carregados em alforjes (malas específicas para isso), Carol levou um dia inteiro para chegar até a fronteira e, depois de validar sua passagem com as autoridades, mais alguns sofridos quilômetros até uma hospedagem. Os sinais do perrengue se espalhavam pelo seu corpo: assaduras nas mãos e nas pernas, marcas de roxo por todos os lados e um cansaço perigoso. No percurso, travessias de rios por cima de troncos de árvores caídos e uma descida sobre cascalho beirando um abismo elevaram o nível da aventura ao extremo. Mas com persistência, paciência e determinação – a bagagem invisível da viagem – tudo acabou bem.

Viagens de bike autônomas pela América do Sul ou até pelo mundo não são exatamente novidade entre brasileiros, mas o fato de uma mulher encarar o desafio sozinho chamou atenção até mesmo no meio da aventura.

A cada país, Carol Emboava comemorava seus avanços - Divulgação - Divulgação
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“A viagem me ensinou todos os dias, em diversos aspectos, e o fato de ser uma viajante solitária foi um ponto muito importante neste aprendizado”, conta Carol, que só cruzou com uma mulher expedicionária após seis meses de jornada, uma australiana, com a qual dividiu estrada por três dias. Mais pra frente, topou com uma canadense, uma russa e, enfim, outras brasileiras, também se lançando em projetos próprios.

“A troca de experiências com estas mulheres era imensa e logo percebi que, mesmo com nacionalidades diferentes, nossos questionamentos eram parecidos”, analisa Carol. “Todas elas também estavam realizando um sonho, independente do fato de serem mulheres”, completa.

Desmistificar essa ideia da fragilidade feminina em uma viagem deste tipo tem sido o propósito de vida da britânica Emily Chappell, 35, uma ex-mensageira de bike que já cruzou 30 países pedalando sozinha. “Você fica muito mais sintonizada com as coisas ao seu redor quando está na estrada. E suas necessidades são bem óbvias. Logo, você vira um alvo fácil da boa vontade das pessoas”, diz Emily, que decidiu ajudar mais gente interessada no assunto.

Atualmente, ela é uma das mais ativas membras do Adventure Syndicate [“Sindicato da Aventura”, em tradução livre], um coletivo que ela própria ajudou a criar e que estimula longos pedais pelo mundo, via conversas, aulas e workshops sobre como tornar isso uma realidade – no Brasil, organizações como o Clube do Cicloturismo fazem algo semelhante, e são bastante acolhedoras a novatos.

“É impossível negar, entretanto, que estar sozinho não é brincadeira, e isso vale para mulheres ou homens”, segue Emily. “Eu não caio no mundo sem entender os riscos, e nem recomendo. Se você os conhece e fica alerta, consegue tomar decisões objetivas em relação a sua segurança”, completa.

Carol compartilha as experiências da britânica. Entre vários perrengues pelo caminho – alguns apavorantes, como a tal travessia patagônica ou uma posterior tentativa de roubo em uma estrada argentina, mas nenhum que tenha de fato colocado sua vida em risco – a sensação de ser acolhida e bem recebida pelo caminho prevalece em tanto tempo de exposição.

“Acredito que minha principal transformação foi no modo de me relacionar com o outro: desenvolvi uma confiança no ser humano que a vida do dia-a-dia tinha me feito esquecer”, relata Carol. “Fui ajudada tantas vezes e por tantos desconhecidos que seria impossível não ter vontade de devolver toda essa ajuda agora”, diz.

A viagem trouxe à tona várias quebras de paradigmas para quem observava tudo de fora. Mas não foi só isso. Em uma via de mão dupla, sua própria imersão na jornada a faz repensar em muita coisa. “Encontrei várias pessoas viajando com muito menos do que eu (com bicicletas velhas que davam problema todos os dias), e, ainda assim, elas carregavam no rosto o mesmo sorriso de satisfação em estar fazendo algo impensável para muita gente”, desabafa Carol, que não teve nenhum grave problema com Sara Lee, nome que deu a sua parceira de duas rodas.

Ela andou mais de 18 mil quilômetros pelo continente - Divulgação - Divulgação
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Com o passar do tempo, outras transformações vieram: “Percebo uma mudança enorme em relação ao consumismo, enxergando o pouco que eu precisava para viver, e, digo mais, para ser feliz”, fala Carol. “Criei uma consciência muito maior sobre gerar lixo, por exemplo, até por que muitas vezes tinha que carregá-lo comigo por dias”, acrescenta. 

A poeta, cicloviajante e ativista norte-americana Devi Lockwood chama essa metamorfose ambulante de “o poder da lentidão”. Estudante de Harvard (EUA), Devi passou os últimos anos viajando pelo mundo para coletar 1.001 histórias sobre mudanças envolvendo o clima do planeta e o uso da água . Com uma bolsa da universidade para tocar um projeto ligado ao assunto, sua rotina basicamente tem sido girar por aí e escutar pessoas. 

“Antes eu estava sempre com pressa, e até associava velocidade com sucesso”, lembra Devi. Até que uma lesão praticando esporte, na época de ritmo frenético de vida, a obrigou a refletir um pouco. Vários questionamentos sobre seu próprio estilo de vida, conta, começaram a povoar sua mente. Ela escolheu buscar as respostas em movimento, e assim nasceu a ideia de uma longa viagem de bike.

“Pedalar – sendo mulher, por grandes distâncias, no meu próprio ritmo – dá início a muitas conversas”, fala Devi, que já colheu histórias na América do Norte, Europa, Ásia, Oriente Médio e Oceania, e agora organiza os relatos em uma nova plataforma online.

Carol também foi tocada por essa experiência mútua: “Eu viajava sabendo que cada dia era uma chance de conhecer uma nova pessoa, e de ter bons momentos, totalmente fora de uma rotina, algo que me motivava a seguir em frente, mesmo sozinha”.

Esta mudança de foco nas pessoas e não nos lugares em si costuma ser uma constante em quem se lança em projetos do tipo. O oceanógrafo e cicloviajante catarinense Narbal Andrani, 42, que já viajou de bike por 65 países relata assim sua travessia solitária conectando a África do Sul e o Egito: “Vi bem de perto a força da natureza e observei a vida selvagem realmente livre. Porém o que mais me marcou foram as pessoas: a humildade delas foi meu combustível nessa travessia inesquecível”.

Essa percepção costuma se dar naturalmente, a medida que os quilômetros vão sendo vencidos. “Demorou para assimilar que eu não estava maluca ou era inconsequente, como algumas vezes tentaram me convencer”, relata Carol.

Carol conta que todo seu percurso foi uma realização pessoal - Divulgação - Divulgação
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Há mais gente nesta busca. Enquanto você lê este texto, a bióloga e professora paulista Juliana Hirata, 37, realiza seu projeto “Extremos das Américas” (LINK: julihirata.com), ligando o Alasca (EUA) a Terra do Fogo (Argentina). Sua ideia é visitar importantes áreas de preservação pelo caminho e observar com os próprios olhos diversas culturas locais – uma aventura que começou em abril de 2016, já alcançou a Colômbia, e que não tem data para terminar.

Com escassos dados oficiais sobre uma travessia do tipo, credita-se a um casal norte-americano o primeiro êxito, conectando de bike o extremo norte ao extremo sul das Américas, no fim da década de 1960. De lá para cá, mais uma dezena de viajantes percorreu o trajeto de bicicleta em solitário (nenhuma mulher sul-americana faz parte da lista).

Em um levantamento aproximado, menos de dez mulheres desbravam atualmente o continente pedalando sozinhas, em projetos como “Ana pela América”, da mineira Ana Laura, “100 Frescura e 1000 Destinos”, da sul-mato-grossense Pamella Marangoni, “Em Bicla por América”, da baiana Cristiane Ferreira, e “Solita a pedal”, da tocantinense Lucineide Lima.

“Olho agora para trás e ainda parece algo meio doido e impensável ter pedalado mais de 18.000 quilômetros”, reflete Carol. Por hora, ela garante não sentir saudades da vida na estrada. Pelo contrário, está curtindo de novo ter um pouco de rotina, dormindo em uma mesma cama por vários dias seguidos, como relata.

Ao encerrar este ciclo itinerante, sua expedição embarca em uma nova etapa. Carol se debruça agora nas histórias que viveu e trabalha em um livro sobre o Giramérica. “Quero transformar a viagem em algo que eu possa passar para frente. Afinal, acredito que pode ser feito por todos que estiverem dispostos a levantar âncora”.