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Disciplina militar e academia como religião. Os valores dos marombados

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

28/04/2017 04h00

O tamanho mostra que fortões e fortonas têm prioridades diferentes, os músculos. Caso de Alex da Silva Alves, 27 anos. Ele estranhou quando foi chamado na recepção da academia. Deu de cara com a namorada possessa com a fixação dele por malhar. Era sábado e ela sentenciou: ou iam embora imediatamente, ou já era.

“A gente só se via de final de semana. Fui treinar e ela foi na academia. Depois que ameaçou barraco eu aceitei ir embora. É difícil namorar mulher que não é de academia. É outro estilo de vida”.

O namoro acabou em coisa de mês. A diferença de concepção de mundo surgiu porque Alex trata o fisiculturismo como religião. Estas pessoas têm valores próprios que reunidos geram uma espécie de código de conduta dos fisiculturistas.

Os fortões e fortonas que pensam como Alex se encontraram no Arnold, feira que aconteceu no último final de semana em São Paulo. O evento é uma espécie de Disneylândia dos fisiculturistas. Neste mundo em que Arnold Schwarzenegger é o Mickey, é possível ver de maneira clara os valores que compõe a singularidade deste grupo.

Julio Balestrin, principal atleta de fisiculturismo do Brasil - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
Imagem: Reprodução Instagram

Dieta

Quem é puxador de ferro fala tanto de dieta quanto de treino. O mantra é que 70% do resultado é a alimentação. Mas o cardápio é bem restrito. Arroz, batata doce, ovo, frango e patinho – a carne vermelha com menos gordura.

O modo de preparo remete aos tempos em que os portugueses não tinham achado uma rota para trazer temperos do Oriente. Fortões e fortonas usam apenas sal e em quantidades espartanas. Na salada, um azeite de leve.

Este menu é repetido a cada três horas e as porções variam conforme as dimensões do fisiculturista. Julio Balestrin, o 'cara' do esporte no país, come 6 quilos por dia. “As vezes eu não consigo comer por falta de tempo, bato no liquidificador e bebo”.

A dieta tem tanta importância que Julio, fisiculturista profissional e premiado, conta que se precisa optar entre treinar e comer, escolhe a alimentação.

Disciplina

A relação dos marombeiros com a comida segue uma disciplina militar. Não é começar o regime na segunda e desistir depois do primeiro assalto à geladeira alguns dias depois. Eles passam meses, anos numa alimentação regrada.

Esta rotina não é coisa apenas de quem compete e recebe patrocínios. Bruna Magalhães Pinheiro, 24 anos, é novata e está nesta vida há um ano. Semana sim, semana também ela come 90 ovos, 4,2 quilos de arroz e 3 quilos de frango. A nutricionista permite uma “refeição lixo” por semana, mas Bruna abre mão.

"Quero ficar com a barriga sequinha, daquele jeito que se beliscar puxa só pele".

O exemplo de Bruna não é um relato único, mas o comum neste meio. Renato Dias, 34 anos, tem direito a 52 refeições junks neste ano, mas ele se programou para fugir do cardápio somente 13 vezes. E não falamos de comer até estufar, mas duas ou três fatias de pizza. No esporte há anos, ele conta que o corpo acostumou e não sente falta de comer outras coisas.

Com o profissional Julio Balestrin a situação é mais delicada. Ele conta que passa mal se fugir da dieta. “A ausência faz que, quando você ingira, causa algum problema gastrointestinal. Então a gente não come ou bebe pelo fato de organismo ficar muito sensível e não conseguir aceitar este alimento.”

Bruna malha para ter a barriga sequinha e participar de concursos de fisiculturismo - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Imagem: Felipe Pereira

Tchau sabor

Monstros e monstras comem em quantidades industriais. O total de comida ingerida por cada atleta profissional num ano corresponde a dieta de uma família de cinco pessoas, diz Julio Balestrim. Mas tudo é sem sabor.

Existe uma marca de temperos, mas nem todo mundo é bom de bolso para comprar os produtos. Quase ninguém que circulava no Arnold tinha costume de comer maionese ou ketchup livre de químicos e gordura.

E quando os fisiculturistas têm acesso a algo com sabor é Whey Protein e outros suplementos. Diferente da falta de sabor, aqui existe uma infinidade deles: chocolate, banana, uva, limonada e até maçã verde. Variedade não é sinônimo de ser gostoso. O que o fisiculturista pode escolher é qual sabor artificial vai querer.

Mas o contratempo fica em segundo plano em nome dos músculos. O mantra é que o treino dura 60 minutos e existem outras 23 horas para construir o corpo comendo direito.

Renato tem orgulho do corpo e não dispensa regatas - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Imagem: Felipe Pereira

Orgulho do corpo

Tanta renúncia é recompensada na hora em que os marombeiros se olham no espelho. A história de vida mais contada por estas pessoas começa com alguém relatando que não era feliz por ser magro demais. A academia foi o antídoto e hoje comemoram os resultados.

“Tenho orgulho do que conquistei”, diz Renato Dias, 34 anos e nove de malhação pesada.

Claro que ele quer mostrar o corpo e o guarda-roupa tem uma coleção de regatas: cavada, de campo, com touca e até moletom regata. As bermudas são justas e na hora de usar calça jeans, prefere skinny. Renato conta que alguns homens usam legging para realçar as pernas.

As mulheres também optam por pouco pano. O cumprimento das bermudas é inversamente proporcional ao tamanho dos generosos decotes. Silicone é comum. As técnicas de com pincéis, rímel e blush são dominadas a perfeição pelas fortonas que capricham na maquiagem.

Alex dos Anjos, campeão mundial e fisiculturista profissional, defende que o corpo seja exibido. Baseia a opinião na dificuldade de ganhar medidas tão grandes.

“É um esporte que sofre. Vai falar que treinar não dói? Dói muito. Faz dieta, sofre e se quiser ganhar (músculo) tem que focar. O treino é bem intenso e tem que fazer das tripas coração.“

Preconceito

Nos últimos tempos, campanhas passaram a condenar quem chama pessoas de gordas, principalmente mulheres. As mulheres que têm músculos também têm queixas a forma como são tratadas por causa do corpo. Com somente 7% de gordura corporal, Luciana Machado*, 41 anos, diz que foi chamada de travesti ao levar o filho na Rua Augusta durante o carnaval.

“Bati no cara. Não sou de reagir, mas me pegou num dia errado. O normal é não me importar”.

Ela reclama também que os fisiculturistas são tratados com desocupados. Fabiana ressalta que passa uma hora na academia e no restante do tempo cuida dos três filhos. Acrescenta que dois são especiais e um completamente dependente porque tem autismo severo.

A mãe diz que é uma pessoa normal. A única diferença é que pede pizza para a família e, enquanto todos comem seus sabores favoritos, ela puxa a marmita com frango e batata doce. O desejo dela é que sua opção seja respeita. É o jeito dela dizer ‘meu corpo, minhas regras’.
 

*Nome fictício. Personagem pediu para não ter a identidade revelada.