"Democracia não é isso"

Isolado há 100 dias, Zico fala de problemas do Brasil na pandemia, política e do irmão preso na ditadura

Patrícia Calderón Colaboração para o UOL, em Fortaleza (Ceará) David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images

"Aqui no Brasil é tudo na base do achismo. Todo mundo emite opinião, todo mundo sabe de tudo e ao mesmo tempo não sabe de nada. A população não sabe quem seguir e fica sem direção. Eu trabalho num país, o Japão, onde existe uma organização e hierarquia, onde o primeiro ministro fala e toda a população respeita e tem em quem confiar".

Confinado na sua casa no Rio de Janeiro há quase 100 dias por causa da pandemia, Arthur Antunes Coimbra, o Zico (67), topou atender a reportagem no dia em que o Flamengo comemorou 40 anos do primeiro título do brasileiro. Animado em falar do feito de 1º de junho de 1980, o Galinho de Quintino também lembrou da Ditadura que perseguiu um dos seus irmãos, da atual situação política no país, do isolamento social, da crise nos clubes pós pandemia e do orgulho de trabalhar no Japão.

Quando essa pandemia passar, a primeira coisa que eu quero fazer é pegar o avião e voltar ao meu trabalho no Japão".

David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images

Veja a entrevista completa

Preso no Brasil enquanto futebol volta no Japão

Zico está isolado no Brasil desde março. Foi pego de surpresa pela pandemia. A visita ao país serviria apenas para realizar exames de rotina. Ao programar o retorno ao Japão, onde é diretor do Kashima Antlers (clube em que foi jogador e técnico), os alertas da pandemia começaram a se espalhar pelo mundo e ele foi impedido de retornar.

Três meses depois, o ex-jogador agora enfrenta outro impasse. Mesmo com a situação mais calma, e a vida e quase voltando à normalidade nos países asiáticos, as autoridades japonesas mantiveram restrições para a entrada de pessoas de outros países, incluindo o Brasil.

"Não sei ainda como será meu retorno. No Japão, os times já estão treinando. Há possibilidades de o campeonato voltar em julho. A situação está controlada lá, mas eu não posso retornar agora segundo as autoridades locais".

Zico viu irmão chegar em casa depois de ser torturado

Enquanto não volta ao trabalho, Zico segue acompanhando como o Brasil tem lidado com a pandemia do coronavírus e a política. Quando questionado o que acha sobre as manifestações crescentes contra e a favor do atual governo brasileiro e outros poderes, o ex-atleta faz uma pausa na fala, resgata lembranças sombrias da infância e conta o que lembra quando viu seu irmão ser levado preso pelo regime militar. Nando Antunes, seis anos mais velho que Zico, era professor e foi torturado pela Ditadura nos anos 70.

"A minha família sofreu muito com o movimento. Tempos difíceis. Era garoto, mas me lembro quando presenciei a chegada do meu irmão em casa (depois de ser solto). Eu era uma criança, me esconderam muita coisa. Fui tomar conhecimento de coisas anos depois".

"Democracia não é isso, confundem democracia com bagunça. E acham que podem tudo. Sou contra qualquer tipo de imposição, linha dura e tirar a liberdade das pessoas de ir e vir".

Arquivo pessoal

Nando Antunes: o crime foi ser professor

Zico era o caçula de seis irmãos. Quatro deles também foram jogadores de futebol, incluindo Nando. Ele foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e ficou encarcerado e torturado por dias até ser liberado, debilitado.

Aconteceu no final dos anos 60, depois de uma passagem frustrada pelo Belenenses de Portugal. Nando, que estava no radar do regime por ser professor, foi levado junto com outros primos durante uma reunião na casa de uma tia. "Botaram a gente num corredor onde tinha meia dúzia de jaulas, ficamos a noite inteira com a mão na cabeça, com a cara na parede. Quando o braço descia de cansaço, vinham com um mosquetão e diziam: 'Filho da p... vou furar você, levanta esse braço'. Falavam mil abobrinhas, me esculachavam", lembrou Nando em entrevista ao UOL em 2019.

Nando e os primos foram soltos, mas sua prima Cecília Coimbra, que na época tinha ligação com o MR-8, grupo que lutava contra o regime, ficou meses presa e foi violentamente torturada. O ex-jogador afirma que, nos anos 60, teve o contrato em dois clubes encerrados por pressão de militares, mesmo sem nunca ter se engajado em movimentos políticos contra o governo. "A única coisa de que eu participei era passeata de estudante, que ia com meus primos, e shows de bossa nova, e neles tinha protesto de artista. Mas nunca participei de nenhum grupo revolucionário".

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"No Japão, a preocupação é com a vida. Aqui, não"

Perguntado se o presidente Jair Bolsonaro tem dado mau exemplo ao se expor em manifestações e muitas vezes não utilizar a máscara de proteção, o atleta é enfático. "Aqui no Brasil o presidente deveria dar as determinações. Lá no Japão, o primeiro ministro que é o interlocutor entre as autoridades e a população".

"Estamos vivendo um problema que coloca vidas em jogo. No Japão, a maior preocupação é com a vida das pessoas. Aqui, não. Infelizmente tem gente ainda querendo tirar proveito da tragédia das pessoas e isso não podemos aceitar".

Nesta hora, Zico também critica o governo carioca, que mais uma vez está na cena policial com possíveis desvios de verbas públicas durante a pandemia. "Aqui no Rio de Janeiro, a gente vê dos últimos governadores, cinco sendo presos por conta de corrupção. Onde vamos parar?"

Masashi Hara/Getty Images Masashi Hara/Getty Images

"Não dá para ter clubes pobres e federações ricas"

Sobre o retorno dos jogos aqui no Brasil, o ídolo do Flamengo alerta sobre as responsabilidades dos clubes em respeitar os protocolos de saúde para que ninguém seja atingido. E cita o Flamengo como exemplo. "O Flamengo está respeitando um manual do departamento médico do clube, além dos órgãos de saúde. Todos os funcionários estão sendo testados. O Flamengo chegou num patamar que poucos times possuem, que respeita a volta em campo com segurança, o que gera uma tranquilidade".

Na verdade, o que mais preocupa o dirigente do Kashima é a situação dos clubes brasileiros em enfrentar a crise financeira pós-pandemia. Driblar as gestões, além dos contratos milionários pagos a jogadores durante as competições, será um desafio grande.

"Agora é hora das federações e a CBF ajudarem os clubes. O clube é o que tem de mais importante no futebol, precisa ser bem apoiado. Então, não dá para ter clubes pobres e federações ricas. Não é a federação que faz o futebol. A federação só existe por causa do clube".

Masashi Hara/Getty Images

Em casa, curtindo os frutos de "50 anos de trabalho"

O camisa 10 aproveita o isolamento social para curtir a família, a casa e os netos —além de descansar com alguns privilégios, como ele mesmo define. "Trabalhei por 50 anos, construí uma bela casa, um belo patrimônio, estou aproveitando essa quarentena para estar com quem eu amo, cuidar das plantas, brincar com os meus cachorros e treinar em companhia dos meus netos. Sei que muitos brasileiros não possuem esse privilégio, mas se precisarem sair de casa usem a máscara, por favor. Principalmente quem pertencer ao grupo de risco, como eu".

Ele tem dividido o seu tempo de lazer com exercícios físicos, respeitando todas as orientações e cuidados relativos as recomendações dos órgãos de saúde. Para manter em ordem a saúde mental, o ex-jogador ainda assiste a bons filmes e se dedica ao seu canal de entrevista no Youtube, "Canal Zico 10", com mais de um milhão e duzentos mil inscritos, que recebe celebridades do mundo esportivo.

"Precisamos fazer boas ações todos os dias, e não somente na pandemia. A gente vai precisar aprender muito com tudo isso que está acontecendo. Só lamento as vidas perdidas até aqui. A nossa vida e o que temos de mais importante pela nossa passagem aqui na terra".

Hiroki Watanabe/Getty Images Hiroki Watanabe/Getty Images

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