Do fundo do poço à galáxia

Vinte anos depois, Guga Kuerten relembra as 120 horas que o consagraram número 1 do mundo no Masters Cup

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Célio Jr/Estadão Conteúdo

A derrota para Andre Agassi na estreia do Masters Cup Lisboa, lá nos anos 2000, foi uma queda sem escala até o fundo do poço para o tenista brasileiro Gustavo Kuerten. Poço, esse, que ele escalou ferozmente em cinco dias —e chegou ao topo: se tornou, há exatos 20 anos, o tenista número 1 do mundo.

"Depois de perder a primeira partida do Masters, me tranquei no quarto do hotel com minha mãe. Fui lamentando, lamentando, até as onze, meia-noite, duas, quatro da manhã. Ela continuava acordada, ao meu lado, abraçada comigo, sem falar muita coisa. Nem ela, nem eu", relembra o ex-atleta.

Mãe, está tudo bem, fica tranquila. Não, não está nada bem. Está tudo horrível, esse é o pior cenário possível".

"Ela me confortou, me acomodou. Me deu toda a segurança de quem não estava preocupada se o filho era o número 1, o número 4 ou o 1 milhão do mundo. Ela viu um filho completamente desorientado, e o acolheu. E só não me ajudou, como mudou tudo: ela transformou a grande virada em título. E essa história me deixa ainda mais orgulhoso, por isso o beijo que dei nela no fim da última partida".

O fim do último jogo, também contra Agassi, foi a redenção de Guga e a retribuição do carinho que recebeu da mãe. Foi, ainda, a consagração de um ciclo, que começou quando ele era apenas um gurizinho —aos sete anos—por insistência de seu pai. São essas lembranças que fazem Guga, 20 anos depois, se emocionar. Ao UOL Esporte, o tenista sorri um monte, fala da família —por quem tem todo o apreço do mundo— enquanto a filhinha, de oito anos, se aproxima, com um olhar curioso. Em um relato emocionado, Guga detalha os seis dias do torneio, que mudou a sua história e, consequentemente, a do tênis no Brasil.

Célio Jr/Estadão Conteúdo
Jeff Gross/Getty Images

Duelo com os ídolos

Guga é modesto. Em tom humilde, afirma ficar espantado até hoje com a conquista do Masters Cup. O motivo, ele diz, é que, para ser o número 1 do mundo, precisou enfrentar os principais ícones da geração —incluindo seus grandes ídolos.

"É um espaço do qual ninguém quer abdicar. Olha, hoje, a dificuldade que é tirar Federer, Djokovic e Nadal do topo. Nessa época, esses nomes eram Pete Sampras —o intocável— e André Agassi. Fui passando pelas etapas e motivando meu espírito de um jeito bem brasileiro —na base da emoção e do sentimento. Estar em Portugal, falando a nossa língua, estimulava isso". Foi a única vez que o torneio, hoje chamado de ATP Finals, foi disputado no país.

Entre os grandes tenistas que Guga enfrentaria, estava Andre Agassi, o nome estampado na primeira camisa de ídolo que o brasileiro comprou. Quando adolescente, ter o uniforme de tenistas estrangeiros não era simples: era preciso esperar meses até que alguém viajasse aos Estados Unidos e trouxesse a encomenda.

Guga esperou até ser o próprio sujeito da ação: na primeira vez que foi aos EUA, conta, correu para comprar a camisa do Agassi. Tempos depois, aos 24 anos, ele se viu diante do ídolo, com a meta de desbancá-lo do lugar mais alto do pódio e alcançar o topo do planeta.

Comprei o uniforme completo, mas não usava. Morria de medo de sujar, deixava guardadinho. Agora, a camisa, eu vestia três vezes na semana. Era vestir, lavar, secar e vestir de novo. Eu era muito fã dele".

Guga Kuerten , sobre admiração por Andre Agassi

Reuters/Reuters

Quando a esperança veio

Foi de pouquinho em pouquinho que o catarinense foi galgando posições no ranking de melhores tenistas do mundo. Desacreditado, a esperança foi construída junto ao carinho do técnico e amigo, Larri Passos, com quem Guga dividiu as maiores alegrias —e as maiores tristezas também, como a perda do pai, aos oito anos.

Ao UOL Esporte, ele conta que a convicção de que perderia o torneio o acompanhava o tempo todo. E que isso só começou a mudar na final de um campeonato disputado contra Pete Sampres, nos Estados Unidos, no mesmo ano, pouco antes do Masters Cup. O "intocável" venceu, mas Guga quase chegou lá.

"Depois que o jogo acabou, Larri e eu fomos para o aeroporto. Ele me olhou e disse: 'Guga, acho que dá para ser número 1'. Foi a primeira vez que essa ideia foi plantada na minha cabeça", conta.

"Só que é difícil destruir a ideia de derrota. Isso requer convicções extremas, um novo tipo de pensamento, e eu já vivia o meu sonho. Não imaginava que dava para buscar detalhes fantásticos, magníficos e inesquecíveis. A sutileza dessa diferença na forma de pensar parece mínima, mas transborda para outro nível", emociona-se o atleta. "Quando tu percebes que a imagem pode ser essa —um abraço na bandeira do teu país— muda tudo. E mudou".

Reuters/Reuters Reuters/Reuters

Fundo do poço após estreia

Foram 120 horas —seis dias— que levaram Guga do fundo do poço à galáxia. A analogia é ele mesmo quem faz ao lembrar que saiu de um desespero total, uma sensação de estar entregue , após a derrota na estreia contra Agassi e chegou à esperança e ao brilhantismo em um dia e meio graças ao carinho e suporte da mãe, da avó e do técnico Larri Passos.

"Saí arrastado da quadra no primeiro jogo. Venci o primeiro set contra o Agassi, o jogo estava encaminhado, fantástico. Ao longo da partida, a obsessão de ser número 1 do mundo foi vencendo meu espírito de competidor e amarrando o que eu tinha de mais valioso: minha capacidade", conta.

"Cheguei a ficar chateado porque, além disso, os portugueses torceram para o Agassi no segundo set. Eles começaram a incentivá-lo, e eu me senti mal. Passei a questionar essa ação da torcida com negatividade, e isso fulmina qualquer pessoa. Perdi o segundo, o terceiro set e, então, acabou".

Getty Images

Colo de mãe para chegar ao topo

Guga conta que todo o carinho da mãe —sem qualquer pressão— o fez enxergar que, no pior cenário, ele terminaria o Masters Cup como número 2 do mundo. Já seria uma vitória. "A partir de então, voltei a encontrar a simplicidade, os detalhes da rotina. Voltei a ver beleza no café com a minha avó, que estava lá comigo. Voltei a achar tudo lindo, mas sem a pretensão de ser número 1. Eu queria jogar".

"Minha mãe, minha avó e o Larri foram me trazendo de novo o astral do menino, do garoto, de esperança e de fé. Cheguei até lá com tudo isso e, de repente, desapareceu. Até que me vi rodeado de carinho e de amor, mais uma vez, como sempre estive. Pude suspirar em um mundo que não era meu. Mas me deixem entrar! Eu queria entrar, queria mais que qualquer um. Assim, me reergui".

"Eu tinha um jogo contra o [Magnus] Norman, depois contra o Kafelnikov. Precisei ser mais agressivo. Eu já me sentia o número 1 do mundo, estava confiante, audacioso, ambicioso. A ponto de jogar contra o Sampres e encostar. No fim do primeiro set, consegui acertar bolas cruciais, mas perdi. E pensei: 'cara, não dá mais'. Só que, no fundo, eu tinha certeza de que o jogo era nosso. Naquele titã, minha única chance era acreditar que seria possível. E foi". Guga chegou à final, mais uma vez, contra Agassi.

O Agassi estava desnorteado. Eu, em uma serenidade. Estava irretocável. Aquela foi a partida mais brilhante que fiz na carreira. Me coroou. Cheguei a número 1 numa realidade cheia de asteriscos: saindo do fundo do poço e me tornando o melhor tenista do planeta, vencendo meus maiores ídolos. Olha o tamanho disso."

Guga Kuerten

Me senti abraçado pelo país inteiro, e me manifestar em português foi um privilégio, um bônus. Vencer o Masters Cup naquele cenário parecia um final de novela. Fui do fundo do poço à galáxia em 120 horas. Sintetizo minha carreira naqueles cinco dias. Aquela foto minha com a bandeira do Brasil resume bem todo esse episódio."

Guga Kuerten

Arquivo Pessoal/Instagram

'Guga gosta de futebol, mas ele vai se dar bem no tênis'

Guga tinha sete anos quando o pai fez a raquete chegar às mãos dele pela primeira vez. O tênis não era um dos seus principais interesses . O futebol ainda ganhava, não tinha jeito. E o pai, à exaustão, repetia: 'O Guga gosta de futebol, mas ele vai se dar bem no tênis'. Um dos receptores dessa projeção foi Larri Passos, amigo da família e, posteriormente, treinador do garoto.

O ex-atleta conta que o pai fez um churrasco em casa como desculpa para convencer o amigo a treinar o filho. "Ele se comprometeu. Disse: 'Está maluco? Teu filho tem sete anos. Mas, um dia, vou treinar o Guga'. Meu pai queria muito ver aquilo, queria muito fazer com que o tênis chegasse até mim em uma cidade onde o esporte tem zero tradição —tinha quatro, cinco quadras de tênis em toda a capital. E ele fez isso de forma magistral", conta.

Foram oito anos de convivência. Segundo Guga, foi o pai, Aldo, que morreu em 1985, quem montou seu alicerce, o detentor de sua coragem. "Meu pai morre, o funil vai apertando, a vontade vai ficando pelo caminho, sabe? Eu precisava de um fôlego a mais".

France Presse: AFP/France Presse- AFP France Presse: AFP/France Presse- AFP

O segundo pai (e treinador)

Até que chegou o Larri, que destravou a infância de Guga em um episódio do qual o tenista se lembra bem. "Eu costumava começar vencendo as partidas, mas meus adversários sempre viravam no fim. Eu tinha dificuldade de vencer, sabe? Até que, em um jogo, aconteceu isso e eu chorei muito. O Larri, nesse dia, não veio até mim em um tom de cobrança, mas, sim, de aconchego. Eu disse: 'O que adianta ganhar ou perder? Não vai trazer meu pai de volta'. E ele entendeu que precisava ocupar outro lugar que não apenas o de treinador na minha vida".

O ex-tenista explica que, à época, sentia que a conexão com a quadra estava estragada devido à perda do pai. Mas que, com a presença paternal de Larri, o tênis se tornou um santuário para ele. "Quando eu pensava que estava difícil, lembrava de minha mãe criando três filhos sozinha —e um deles, deficiente físico. Quando meu irmão começou a engatinhar, a gente celebrou mais que um Roland Garros".

O sentimento, Guga conta, transborda a relação de técnico e atleta e se torna confiança, vira uma única peça, apesar de haver duas pessoas. "Às vezes, fico 40 dias sem falar com o Larri, mas ele está sempre presente de alguma forma. A maneira de observar, o jeito de se dedicar para as coisas, todos os aprendizados e formas de aplicar e perceber a vida me modificam por completo".

"E isso vem dele, da minha mãe, minha avó, meu pai, meus irmãos —o Rafa, que ainda está presente, o Gui, que é essa alma inspiradora e genuína (que morreu em 2007). E, agora, a nova geração, que vem com a minha esposa e os dois pequenos. O Larri está dentro de toda essa linhagem. Está inserido no próprio coração. Ele é parte de mim".

Me imaginar sem o Larri é como me imaginar sem o tênis."

Guga Kuerten

+ Especiais

Rafael Roncato/UOL

Não é traição

Minha História - Nathalie Moellhausen, campeã mundial de esgrima: "Ganhar pelo Brasil foi mais intenso"

Ler mais
Athletico-PR

A vida depois do câncer

Após vencer tumor na próstata e a covid-19, Dorival Jr dispensa aposentadoria e sonha em treinar times gringos

Ler mais
Fernando Young

"Senti na pele o medo"

Carol Solberg avalia que sua vitória no STJD é o início de debate sobre a postura de atletas na sociedade

Ler mais
VCG/Visual China Group via Getty Ima

Campeão transplantado

Andy Cole, ídolo do Manchester United, fala ao UOL sobre o rim que ganhou, Palmeiras e Edmundo

Ler mais
Topo