A corrida de Luiz Alberto

Técnico de Joaquim Cruz no ouro olímpico, Luiz ALberto de Oliveira morre aos 71 anos no Qatar

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

A história de um esportista pode ser contada de várias formas. A do técnico Luiz Alberto de Oliveira começa quando ele batalhou para dar condições de treinamento a três jovens promissores nos EUA: Agberto Guimarães, Zequinha Barbosa e Joaquim Cruz, há quase 40 anos (como mostra a foto acima). Ou pode ser contada com a corrida dos mesmo três atletas, hoje consagrados, em uma campanha para pagar as despesas hospitalares do velho técnico, que ficou internado no Hamad General Hospital, em Doha, no Qatar, de abril até o fim de junho.

No dia 30 de junho de 2021, Luiz Alberto perdeu a luta contra o próprio corpo. Morreu aos 71 anos, longe do Brasil, mas ao lado da mulher, Graze de Oliveira, também treinadora de atletismo. Em maio, o UOL publicou esta reportagem sobre a longa internação do técnico. Falou com Graze, direto do quarto do hospital qatari. "São mais de dois meses de uma luta diária, mas eu acredito que ele vai sair daqui andando e ainda voltaremos ao Brasil".

Não conseguiu.

Professora de Educação Física e com curso de técnica de atletismo nível 1, Graze carregava no peito a crença no impossível. O estado clínico de um dos maiores técnicos do esporte nacional em todos os tempos já era muito delicado. "Nesse período todo de internação, houve três dias em que eu pensei que ele não resistiria. Entrei no carro no estacionamento do hospital e desabei. Até os médicos me procuraram para saber o que fazer".

Luiz Alberto tinha problemas renais graves e precisava de hemodiálise. Suas internações começaram em abril, após problemas cardíacos. Parte dos custos das longas internações foram cobertos pelo plano de saúde que o governo do Qatar bancava —ele estava por lá empregado pela entidade. Para a outra parte, os atletas que brilharam sob o seu comando organizaram uma vaquinha virtual. "O Joaquim Cruz também está com a gente e o Agberto está buscando contatos no Brasil de pessoas e até empresários que possam colaborar mais objetivamente com o Luiz", dizia Zequinha.

Arquivo pessoal
Mike Powell/Allsport/Getty Images

Eu não esqueço que ele cuidou de nós como se fôssemos filhos. Há 38 anos, correu atrás de patrocínio para nós três. E agora nós três estamos correndo por ele. O Luiz garantiu condições de treinamento nos Estados Unidos, negociou contratos, sempre em nossa defesa. Através dele competimos no mundo todo. Ganhamos medalhas, títulos: olímpico, pan-americano e mundial. Então, nada mais justo do que correr por ele agora".

Zequinha Barbosa, que organizou a vaquinha, ainda aberta, que arrecadou R$ 21,5 mil dos quase R$ 50 mil pretendidos (a campanha busca US$ 10 mil).

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Os atletas de Luiz Alberto

  • Joaquim Cruz

    Campeão olímpico dos 800m em LosAngeles-1984 e medalhista de prata em Seul-1988.

    Imagem: Tony Duffy/Getty Images
  • Zequinha Barbosa

    Vice-campeão mundial dos 800 em 1991 e campeão mundial indoor dos 800m em 1987.

    Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress
  • Agberto Guimarães

    Quarto colocado nos 800m da Olimpíada de Moscou-1980 e campeão dos 800 e dos 1500m de Caracas-1983.

    Imagem: Arquivo/Folhapress
  • Sanderlei Parrela

    Vice-campeão mundial dos 400m em 1999 e quarto colocado nos 400m das Olimpíadas de Sydney-2000.

    Imagem: Evandro Teixeira/COB/Divulgação
  • Hudson Souza

    Bicampeão pan-americano dos 1500m (Santo Domingo-2003 e Rio-2007) e campeão dos 5000m (2003)

    Imagem: FERNANDO DONASCI / Folhapress
  • Mary Decker (EUA)

    Campeã mundial dos 1500m e 3000m no Mundial de Helsinque-1983.

    Imagem: Steve Powell/Getty Images
  • Maria Mutola (Moçambique)

    Nos 800m, foi campeã olímpica em Sydney-2000, medalhista de bronze em Atlanta-1996 e ganhou dez títulos mundiais.

    Imagem: Michael Steele/Getty Images

O Luiz Alberto já fazia treinamentos diferenciados há mais de trinta anos e até hoje há quem nos procure para saber como fazíamos aqueles resultados nas provas de meio-fundo".

Zequinha Barbosa

Delírios no hospital

Graze conta que, no quarto, às vezes, Luiz Alberto delirava. Pensava que estava dando seus treinos dos tempos em que colocou o Brasil na lista das potências esportivas nas provas dos 800m e 1.500m. Às vezes, o delírio passava por treinos para os atletas da equipe do Qatar, para onde ele foi em 2018, na segunda vez em que foi contratado para trabalhar com o time de atletismo do país.

Um de seus pupilos dessa época foi o sudanês naturalizado Abdalelah Haroun, campeão mundial júnior dos 400m e, sob o comando de Luiz, campeão asiático da mesma distância. Graze lembra que Luiz se dedicava tanto aos atletas de nome quanto aos iniciantes. Para o treinador, o atleta tinha de receber uma alimentação adequada, ter condições para treinar e ser respeitado pelos dirigentes. Brigava mesmo por seus ideais.

"Por isso ele acabou aceitando o convite para trabalhar novamente no Qatar, depois de trabalhar no Brasil. O Luiz não se conformava com o descaso que havia em relação aos atletas no Brasil", falou Graze, que lembrou de uma história dos tempos de Brasil: "Nos fins de semana, ele tirava dinheiro do próprio bolso para comprar alimentos porque não serviam refeição aos sábados e domingos no CT em Manaus. Eu mesma tirava toda semana 150,00 do meu bolso para ajudar a alimentar a turma: era arroz, frango, macarrão."

Foi nessa época que Graze conheceu Luiz Alberto. Há 18 anos, ele trabalhava no CT da Confederação Brasileira de Atletismo em Manaus, e ela tinha uma firma de transportes que prestava serviços à CBAt, que tinha sede na capital amazonense.

Personalidade complicada?

Luiz Alberto era tido no meio do atletismo como um sujeito de trato difícil. "Quando deixamos o Brasil, tínhamos entrado na Justiça contra a Confederação Brasileira. Era muita coisa errada. Havia falta de respeito no trato ao Luiz. E ele ganhou nas duas primeiras instâncias, mas a CBAt mandou o caso para Brasília e agora, ao que parece, o Luiz perdeu. Recebi outro dia o telefonema do nosso advogado", contou Graze. Luiz morreu sem saber da derrota.

"O problema do Luiz é que ele é honesto com o trabalho dele. Mete a boca nas coisas erradas. Compra a briga de seus atletas. Briga pela alimentação, pelo transporte, pelo tênis adequado para a prova", diz.

Ela também auxiliava Luiz Alberto nos treinos. No Qatar, Thiago, primeiro filho de Graze, também entrou para o time de treinadores.

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Os problemas de saúde

O drama que atingiu a família começou em abril. Com apenas 10% dos rins funcionando, o técnico já vinha sendo submetido a hemodiálise. Quando seu contrato com a Federação de Atletismo do Qatar venceu, ele estava no processo de contratação para dar treinos em uma academia local. Neste período que foi ao hospital.

"A partir de uma certa idade, as pessoas aqui não seguem em alguns trabalhos. O nosso ID (documento de identificação) e o nosso cartão de saúde não foram cancelados. O Luiz continuaria na área como head coach de um clube, enquanto o Thiago continuava como auxiliar técnico na Confederação. E estávamos nessa situação quando o Luiz sentiu um certo cansaço, um aperto no peito ao subir uma escada. Vi que não era algo normal e resolvi chamar uma ambulância", relembrou Graze, que tem um filho de 14 anos com Luiz Alberto.

No Heart Hospital após os exames, constataram que ele estava com algumas artérias fechadas. A aorta também preocupava. Havia muita calcificação, em virtude da diálise. No primeiro procedimento foram colocados dois stents. Depois de uma semana, em outra artéria super entupida foram colocados três stents. Na noite da operação ele passou mal, devido a um coágulo. E ainda foi colocado um sexto stent dias depois".

Não bastasse essa verdadeira maratona cardíaca, devido à posição que ficou nesse período deitado, o pulmão, o coração e o fígado ficaram com líquido. E aos poucos foram drenando. Até tudo ficar estabilizado foram 54 dias.

Mas o sofrimento estava longe de acabar. No dia 8 de abril, Luiz Alberto teve alta. "Mas surgiram bolhas e algumas feridas em suas pernas e o médico especialista optou pela internação no Hamad General Hospital já no dia 10. Ele estava com febre e delirando. Passou uma semana e meia brigando com uma infecção e acabou amputando o segundo dedo da perna esquerda". Luiz é diabético.

Arquivo Pessoal

Às vezes, ele acorda normal. Às vezes, ele não lembra de nada. Outro dia, falou por telefone com o Zequinha e lembrou direitinho dos meninos. Hoje, por exemplo, acordou normal, tomou uma sopinha que eu trouxe de casa. A infecção parecia controlada, pois mudaram o antibiótico. Só que à tarde, ele estava sentindo muita dor e aplicaram morfina. Então ele dormiu".

Graze de Oliveira, mulher de Luiz Alberto, sobre os últimos meses do marido.

CBAt e Arquivo Pessoal
Luiz Alberto de Oliveira em treinamentos em Uberlândia (2010) e com Maria Flávia Lima em campos no Quênia (2015), nos EUA (2016) e na Alemanha (2014)

A pupila

Luiz Alberto competia pela vida assim. Na época em que esta reportagem foi originalmente publicada, Graze pensava no dia em que voltaria para o Brasil com Luiz Alberto curado e caminhando. "Ele quer ainda ver um atleta seu na Olimpíada. Talvez a Maria Flávia Lima consiga a vaga para Tóquio. Isso vai enchê-lo de orgulho", imaginava Graze.

A atleta, que compete nos 800m e nos 1500m, porém, não almeja mais uma vaga para Tóquio-2020, que será disputada entre julho e agosto de 2021. "Meus pensamentos estão agora na próxima temporada, na preparação para o mundial de 2022", admitiu Flávia, em maio, por telefone, de Bragança Paulista, onde vem realizando seus treinos.

Ela é paranaense de Campo Mourão, esteve nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e treinou sob a orientação de Luiz Alberto até recentemente. "O Luiz é tudo em minha vida. Ele é minha carreira. Ele me moldou na disciplina e nos segredos do alto rendimento. É meu segundo pai e foi meu técnico até ser submetido a esses procedimentos cirúrgicos. Agora, quem me passa os treinos é o Thiago, filho da Graze".

"Sabe, o Luiz só queria o reconhecimento da Confederação, só queria voltar a trabalhar no Brasil, mas diziam que ele era encrenqueiro, criador de problema. Ele escutou muitas vezes que vivia do passado, que vivia da fase gloriosa do Joaquim e de sua medalha olímpica de ouro em Los Angeles, das vitórias do Zequinha e do Agberto."

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