Maior que Pelé?

Por que Tom Brady entra na discussão de melhor atleta da história. E por que nem ele acredita nisso

Rafael Belattini Colaboração para o UOL Adam Glanzman/Getty Images/AFP

Pare e pense: o que poderia fazer um atleta ser considerado o maior de todos os tempos? Quando você pensa em Pelé, é a condição física única, aliada à habilidade e três Copas do Mundo conquistadas no futebol. Mas pode ser também Michael Jordan, o homem que tornou a NBA e o basquete norte-americano fenômenos globais. Ou Serena Williams, a maior de todos os tempos entre homens ou mulheres no tênis, que revolucionou um esporte. O mesmo pode ser dito de Michael Phelps e Usain Bolt, os dois maiores atletas olímpicos de todos os tempos, um na natação, outro no atletismo.

Mas e Tom Brady?

Os puristas certamente vão torcer o nariz. Não faltam argumentos para isso. Para começar, os atributos físicos nunca foram dos melhores —e todos os melhores do mundo acima são espécimes físico únicos. Ele não era o mais forte, o mais alto ou o mais rápido. E ele joga futebol americano, um esporte que é disputado, basicamente, em um único país. A temporada da NFL ainda é curta. São apenas 17 partidas na temporada regular, e um time pode ser campeão com 20 jogos disputados.

E o argumento mais forte: o quarterback, a posição de Tom Brady, entra em campo apenas quando seu time ataca.

Mesmo assim, quando Tom Brady anunciou a sua aposentadoria do futebol americano ontem, teve gente nos EUA, o país com a maior cultura esportiva do planeta, que disse que, sim, ele poderia ser o maior atleta de todos os tempos.

Não é para tanto, e o próprio Brady já admitiu isso. Mas o fato de existirem especialistas que defendem a ideia já é um tributo ao tamanho do maior quarterback e, provavelmente, o maior jogador de futebol americano da história.

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Reprodução/Instagram

Os números

Existem números que ninguém pode contestar. Quando Pelé se aposentou, ele tinha três Copas do Mundo, 1282 gols marcados, sendo 1091 só pelo Santos. Ninguém chegou perto de tanto sucesso —e antes que você diga Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo, lembre que eles, já no final de suas carreiras, ainda não ganharam Copa do Mundo...

Quando Tom Brady anunciou sua aposentadoria, com direito a uma mensagem em português para sua esposa, Gisele Bundchen, ele tinha chegado ao topo que seu esporte pode proporcionar. É dono de sete anéis de campeão do Super Bowl. E é o único homem do planeta a ter participado de dez decisões da temporada da NFL.

Três vezes eleito o melhor jogador da temporada regular, cinco vezes o mais valioso da final, o agora ex-jogador parece acumular todos os recordes que um jogador de sua posição poderia ter: ninguém teve mais vitórias que ele na carreira, nem triunfou mais em playoffs, completou mais passes, lançou para mais jardas ou passou para mais touchdowns.

Ele é, também, o dono da mais longeva carreira da história da liga: foram 22 de seus 44 anos como jogador da NFL. Quando finalmente anunciou que penduraria as chuteiras, tinha o nome cotado para o prêmio de MVP da última temporada e passava a impressão de que ainda poderia render bem em mais um ou dois anos.

Mike Ehrmann/Getty Images Mike Ehrmann/Getty Images

Um esporte peculiar

O futebol americano pode não aparecer nas listas de esportes mais praticados no mundo. Para ser prático, a modalidade se resume aos Estados Unidos, com apenas 32 times jogando em alto nível profissional. É verdade que as ligas universitárias são numerosas e ricas e o SuperBowl, a final da NFL, é um dos eventos mais assistidos do planeta, mas o desenvolvimento global de atletas ainda é discreto.

Da lista de maiores da história, provavelmente o tênis é o que mais se aproxima desse cenário. Ainda assim, a diferença é enorme. Serena Williams é um ícone global do esporte e conquistou 23 Grand Slams, a versão de raquetes do SuperBowl. Mas o tênis têm seus principais eventos em três continentes diferentes e um circuito mundial com torneios femininos em mais de 30 países.

E existe outro argumento para quem não considera um jogador de futebol americano postulante à discussão de maior atleta da história. E quem explica é LeBron James, que provavelmente entrará na discussão quando se aposentar.

O ano era 2017 e Brady e o New England Patriots tinham acabado de vencer o Super Bowl LI de virada sobre o Atlanta Falcons. O time estava perdendo por 28 a 3 com pouco mais de um quarto para jogar. Foi neste momento que o astro da NBA, quatro vezes campeão da NBA, quatro vezes melhor das Finais e quatro vezes MVP da temporada, expos sua opinião durante a série The Shop, da ESPN:

"Meu único argumento com um jogador de futebol americano sendo o maior atleta de todos os tempos é que eles só precisam jogar em um lado do campo. Sim, Brady é inacreditável. Brady é o maior quarterback que eu já vi, mas ele só afeta o jogo de uma forma", disse LeBron.

A ponderação leva em consideração a natureza do futebol americano. Cada equipe é composta por três "times": o de ataque, o de defesa e os especialistas. E Brady jogava apenas quando seu time atacava.

Mitchell Leff/Getty Images/AFP

Humildade

O próprio Tom Brady não parece querer brigar por esse prêmio. Em entrevista ao repórter Ian O'Connor, da ESPN, refutou até mesmo o fato de ser apontado como o maior da história da NFL.

"Não concordo com isso e vou dizer o motivo. Eu me conheço como jogador. Sou realmente um produto daquilo que esteve ao meu redor, de quem me treinou, contra quem joguei, a época em que joguei. Eu realmente acredito que se muitas pessoas estivessem no meu lugar elas poderiam fazer o mesmo tipo de coisas. Então eu tenho muita sorte", disse Brady,

Só que "sorte" não parece ser a melhor forma de descrever a trajetória de Tom Brady até aqui.

AFP PHOTO/Roberto SCHMIDT
Brady em 2002, antes de seu primeiro título

Azarão

O barulho causado pelo anúncio da aposentadoria de Tom Brady é inversamente proporcional à atenção que recebeu em sua entrada na NFL, na sexta rodada do draft de 2000. Naquele ano, as atenções eram todas para Peyton Manning, a primeira escolha do recrutamento de dois anos antes, filho de um ex-jogador e apontado como o futuro da liga.

Brady chegava à NFL após quatro anos na faculdade de Michigan. E não foram quatro anos de estrelato, mas de competição intensa pela vaga de titular. As poucas oportunidades dos primeiros anos levaram o jogador a buscar ajuda psicológica com Greg Harden, que até hoje trabalha como conselheiro atlético na universidade.

Sua avaliação no Combine, evento em que os jogadores universitários tentam mostrar suas habilidades para as franquias, foi das piores. Brady foi apontado como um atleta sem um porte físico interessante, com o braço fraco e muito lento.

Quem viu Usain Bolt antes das Olimpíadas de 2008, na China, pode até se lembrar de algo assim. O jamaicano era um corredor de dois metros de altura e magro em um esporte dominado por atletas mais baixos e músculos muito mais evidentes. Bolt, porém, mudou as características dos corredores de elite a partir dali e, após se tornar o primeiro homem a conquistar três medalhas seguidas nos 100m e 200m, se tornou modelo.

Brady não fez nada disso. Seu sucesso foi alcançado apesar dos atributos físicos, mas à base de forte personalidade e autoconfiança. Isso ficou claro quando ele se apresentou para Robert Kraft, dono dos Patriots, dizendo que era "a melhor escolha já feita na história da franquia". Brady foi escolhido depois de 198 jogadores.

Ezra Shaw/Getty Images/AFP Brady e seu maior rival, Peyton Manning

Brady e seu maior rival, Peyton Manning

Dinastia

Quando chegou ao New England Patriots, Brady era a terceira opção para a posição de quarterback. Mas a personalidade, o empenho e o desempenho nos treinos agradaram ao técnico Bill Belichick e, em sua segunda temporada, já era o reserva imediato de Drew Bledsoe. Foi aí que uma quase tragédia abriria seu caminho.

Bledsoe havia acabado de renovar seu contrato por 10 anos com os Patriots quando levou uma pancada durante uma partida contra o rival New York Jets, na segunda semana da temporada. Era uma jogada lateral, mas a queda afetou seu pulmão, que entrou em colapso —ele precisou retirar sangue do órgão horas após a partida, procedimento que salvou sua vida.

Do primeiro jogo como titular — coincidentemente na vitória sobre os Colts de Peyton Manning — até o primeiro título do Super Bowl em fevereiro de 2002, Brady virou a sensação nos Estados Unidos, com mais uma daquelas fábulas da "Cinderela" que os norte-americanos sabem vender tão bem.

Nos primeiros cinco anos na NFL, Brady levantou o troféu de campeão do Super Bowl três vezes. O New England Patriots, que até então era um time de menor importância, muitas vezes ignorado pelo próprio torcedor de Boston, estabeleceria uma dinastia nunca antes vista na história dos esportes americanos.

A trajetória de Michael Phelps, o atleta com o maior número de medalhas de ouro em uma única Olimpíada, também é uma dinastia, mas de um atleta só. Sua primeira participação nos Jogos Olímpicos foi aos 15 anos. Ele terminou em quinto lugar. Mas a partir de Atenas-2004, nunca alguém venceu tanto: foram 28 medalhas olímpicas, 23 delas de ouro. Incluindo os oito ouros de Pequim-2008.

KEVIN LAMARQUE

Bolas murchas

Mas como os maiores atletas da história são, também, humanos, eles erram. Phelps foi flagrado fumando maconha. Bolt foi exposto no meio de uma Olimpíada após uma noite de sexo. Pelé já foi acusado de "quebrar" um rival.

Brady também colecionou polêmicas.

Primeiro, seus títulos foram questionados quando os Patriots foram punidos por filmarem, de forma irregular, os adversários durante partidas. Eles estavam usando as imagens para decifrar os códigos usados pelos rivais para chamar suas jogadas.

Em 2015, a acusação foi de que ele jogava com bolas mais murchas do que a regra permitia, facilitando seu manuseio. Desta vez, o caso foi parar nos tribunais e só se encerrou um ano depois, quando Brady aceitou cumprir uma suspensão de quatro jogos.

O mérito do sucesso dos Patriots também provocava debate: Brady chegou a ser apontado como "jogador de sistema" por quem via o técnico Bill Belichick como o verdadeiro responsável pelas conquistas.

O relacionamento com Belichick, aliás, acabou de forma conturbada, com relatos de desentendimento nos bastidores e a saída de Brady de Boston após 20 anos vestindo a camisa de New England.

Cliff Welch/Icon Sportswire via Getty Images
Brady e Mahomes no SuperBowl 2021

Após os 40

As duas temporadas disputadas com a camisa do Tampa Bay Buccaneers ajudaram o quarterback a dissociar sua imagem da de Belichick. E, com a conquista do Super Bowl LV, seus detratores se calaram.

Fora de qualquer sombra, foi o único jogador de sua geração a encarar uma nova leva de astros —aí entra, por exemplo Patrick Mahomes, campeão da NFL aos 24 anos como quarterback do Kansas City Chiefs. E, principalmente, enfrentar atletas que poderiam ser seus filhos e, na maior parte das vezes, vencer.

Os especialistas norte-americanos falam em três carreiras em um, com três fases distintas ao longo de 22 anos. Michael Jordan viveu algo assim. Em seus seis títulos, ele conquistou os primeiros três entre 1984 e 1993. Parou, foi jogar beisebol e voltou dois anos depois, para outros três anéis. E, após a segunda aposentadoria, ainda voltou a jogar em 2001, após comprar uma parte do Washington Wizards. Ele só deixou as quadras aos 40 anos.

Brady foi além desses 40 anos. Segundo ele, o segredo para o alto rendimento de um atleta após essa idade estava ao alcance de todos que seguissem seu "método". Ele compartilhou a ideia em um livro com suas receitas favoritas e que pregava os benefícios da hidratação e de exercícios que usavam apenas tiras de borracha.

Ao lado de seu "guru", o personal trainer Alex Guerrero, Brady não traçava limites de idade para seguir jogando em alto nível.

Brady não chegou aos 45 ou 50 anos em campo, como cogitou em alguns momentos, mas certamente estabeleceu novos limites para a carreira de um atleta. Sendo ou não o maior de todos os tempos.

Timothy A. CLARY / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / AFP Timothy A. CLARY / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / AFP

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