Futebol embranquece o negro

Técnico Roger Machado dá aula sobre racismo e diz por que "clareou um pouquinho" quando virou jogador

Marcello De Vico Colaboração para o UOL, de Salvador (BA) Darío Guimarães Neto/UOL

Esqueça o Roger Machado técnico de futebol. O que você lerá daqui para frente tem mais a ver com o ser humano que, especialmente desde o ano passado, vem aproveitando a posição que tem no esporte para tratar sobre questões que precisam ser debatidas — e, principalmente, combatidas. O racismo é uma delas, e ele ainda tem muito o que falar sobre isso.

"O futebol embranquece o negro. Até os 19 anos eu era negro; quando comecei a jogar bola, eu comecei a clarear um pouquinho. Primeiro que, por uma ascensão social, pela visibilidade e por uma questão financeira, eu comecei a frequentar outros lugares que a maioria de nós não consegue frequentar. Segundo porque, em torno dessa habilidade artística com a bola nos pés, você é aceito. Esse seria o lugar de direito do negro, por suas habilidades artísticas — como costumam dizer —, como futebol, capoeira, ser cantor, no samba", conta o ex-jogador que trabalha como técnico desde 2014 e hoje comanda o Bahia.

Como todos os negros, Roger sofreu com racismo durante a época em que foi jogador. Mas talvez tenha sentido ainda mais na pele (literalmente) quando optou por seguir o caminho de treinador — hoje, ele é o único negro neste cargo na Série A.

"Essa janela que foi aberta durante o período como jogador quase se fechou depois. Quando eu decidi me tornar treinador e fazer faculdade de educação física, eu percebi, imediatamente, que, em algum momento, me pareceu que o lugar que eu estava querendo alçar era de um protagonismo que, aos olhos do racista, eu não teria a habilidade intelectual para estar", completa.

A aula de Roger Machado continua abaixo. Além do racismo, o técnico que está em Salvador desde abril do ano passado aborda a importância do Bahia - clube exemplo em questões humanitárias - em sua vida e carreira, a "modinha" dos técnicos estrangeiros, Jorge Jesus, jogo feio x bonito... E ainda faz um alerta: "O dia em que o futebol brasileiro decidir olhar para o seu calendário com carinho, em uma década, vai ser a melhor liga do mundo. Não tenho dúvida".

Jogar bola tu pode. Agora, ascender para um outro lugar da pirâmide, o cargo de gestão, subentende-se capacidade intelectual... eu não estaria ao alcance disso

Roger Machado

Darío Guimarães Neto/UOL

Roger aproveita coletiva para falar o que é preciso

A derrota do Bahia por 2 a 0 para o Fluminense, pela 25ª rodada do Campeonato Brasileiro, no dia 12 de outubro, ficou em segundo plano. O que mais repercutiu da coletiva de Roger Machado não foi o jogo em si, mas sim o discurso sobre a visão que tem sobre o racismo no Brasil. "A gente precisa falar sobre isso", alertou Roger. O cenário era propício para levantar o tema. Na época, os times baiano e carioca tinham em seus comandos os dois únicos técnicos negros da Série A — Marcão foi substituído por Odair Hellmann logo após o fim do Brasileiro.

"Confesso que até me senti surpreso com a repercussão, e foi a constatação de que é preciso de representações. O esporte é uma grande ferramenta. Recebi muitas mensagens, algumas delas me dando parabéns pela coragem, e muitas delas relatando preocupação com a represália do sistema, que o sistema revida. Eu não tenho mais idade para estar me preocupando muito com esse último argumento. Hoje, é a consciência que passa a tomar conta, e a espiritualidade. Me sinto mais à vontade para me encorajar e falar desses assuntos que a gente precisa debater sempre", pontua Roger.

Se no ano passado Roger Machado era um dos dois técnicos negros da Série A, hoje ele está novamente sozinho. Entre os 20 clubes da elite, é o único. E a oportunidade de debater o tema que ainda está muito longe de ser resolvido no Brasil está aí... Por que não?

"Como eu tive esse posicionamento muito firme, sempre busquei meu espaço pelo conhecimento. Sempre acreditei que o conhecimento independe da cor, da religião, do lugar geográfico onde tu nasce. Tu consegue quebrar todas essas barreiras. Mas o preconceito nunca deixou de existir. Os mesmos lugares continuam, mas pela posição e pela personalidade que envolvi nesse processo, tenho certeza de que eu sou muito respeitado por isso."

"Você sabe quem é o pai dessa menina?"

Em campo e fora dele, Roger Machado coleciona casos de racismo para contar. Casado com uma mulher branca, ele e sua esposa são alvos constantes de uma sociedade racista. As declarações dadas pelo técnico no ano passado apenas representam o que ele e muitos negros passam, todos os dias.

"Talvez eu tenha conseguido, naquele momento [coletiva], organizar bem as minhas ideias para que pudesse tentar passar a melhor mensagem possível, sem parecer piegas ou vitimismo, como agora costumam dizer sobre esse assunto. Mas abordar um tema que sempre esteve em pauta na minha família, porque eu tenho uma relação de um casamento inter-racial. Eu tenho uma filha mais clara, uma outra mais escura. Quando eu ou a minha esposa saíamos... Eu saía com a Gabriela, que é mais clara, e ela saía com a mais escura, que é a Júlia, a gente sentia isso dos dois lados. Os olhares, os comentários..."

"Se eu não andasse com a Gabriela de mão, sempre, alguém passava do lado e perguntava pro segurança: 'Você sabe quem é o pai dessa menina? Porque parece que ela está sozinha'. 'Não, minha senhora, sou eu'. Tem aquele contato visual. Ou minha esposa, mais de uma vez, chegar chateada, até mesmo chorando em casa, porque abordaram, no shopping ou na rua, perguntando se era filha do coração. 'Não, não. Meu marido é negão mesmo'".

Darío Guimarães Neto/UOL Darío Guimarães Neto/UOL

Como a Bahia e o Bahia encorajaram Roger

Nos tempos de hoje, podemos dizer que Roger Machado e Bahia "deram match". Eles combinam. E ainda não estamos falando do futebol dentro das quatro linhas. Se de um lado o técnico chamou a atenção do Brasil para o racismo com um discurso pra lá de comovente, de outro o clube tricolor vem tratando as questões sociais como nenhum outro. Homofobia, feminicídio, o próprio racismo... Tudo está em pauta, seja nas ações de marketing ou nas postagens nas redes sociais. Mas nem todo mundo é assim.

"Faltam clubes, faltam pessoas físicas, faltam entidades privadas. É preciso aceitar que esse processo de mudança vai ser construído com todos. Não é apontar quem foi o culpado. É saber que nós todos, de uma certa forma, somos responsáveis por esse processo. E só há mudança quando a gente entender que há um problema a ser resolvido. O feminicídio, a homofobia, todos esses movimentos, a gente só vai conseguir resolver, de fato, quando a gente entender que precisa de políticas adequadas para se olhar com um olhar amoroso para esse lado, um olhar com sensibilidade, com empatia. Eu digo que o maior exemplo de educação que eu gostaria de dar para as minhas filhas é a sensação de empatia. Por mais que o problema não me atinja diretamente, eu me sinto responsável por olhar para aqueles que precisam de uma atenção diferenciada."

Feliz e cheio de orgulho com a postura do clube em relação às questões sociais, Roger Machado admite: o Bahia e a Bahia o encorajaram a trazer a discussão à tona naquela coletiva do dia 12 de outubro. Todas as palavras ditas sobre racismo pelo técnico já estavam na ponta da língua há muito tempo; faltava só uma "autorização" para soltar a voz.

"Eu digo que estar na Bahia, morando em Salvador e como treinador do Bahia, um time que aborda e acolhe muito essas questões sociais, de uma certa forma, me empoderou. Talvez, em outro time, não me sentisse autorizado para tomar aquela atitude. Agora, com relação à construção daquele discurso, o amadurecimento já é de muito tempo. Talvez eu tenha conseguido, naquele momento, organizar bem as minhas ideias para que pudesse tentar passar a melhor mensagem possível, sem parecer piegas ou vitimismo, como agora costumam dizer sobre esse assunto".

Darío Guimarães Neto/UOL Darío Guimarães Neto/UOL

Racismo dentro e fora de campo

O discurso de Roger ganha relevância quando vê-se o número de casos de racismo reportados no futebol. O problema, no entanto, não está restrito às quatro linhas. Técnicos, jogadores, árbitros, torcedores e prestadores de serviço são alvo de agressões verbais e até físicas.

Em novembro de 2019, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol relatou 42 casos apenas no futebol brasileiro até então, naquele ano. Jogadores brasileiros afrodescendentes também sofrem injúrias raciais quando jogam no exterior, com 13 casos apontados no mesmo levantamento.

Bruno Cantini/Atlético-MG

Cruzeiro x Atlético-MG

Dois irmãos torcedores do Atlético-MG foram flagrados proferindo insultos racistas a um segurança durante uma briga generalizada em um clássico contra o Cruzeiro disputado no ano passado, no Mineirão. Um deles chegou a dizer "olha a sua cor", enquanto o outro foi acusado de chamá-lo de "macaco". Um dos irmãos negou ser racista e se defendeu alegando que tem pessoas próximas e cabeleireiro negros.

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REUTERS/Oleksandr Osipov

Taison e Dentinho

Os atacantes brasileiros Dentinho e Taison foram vítimas de racismo durante o clássico entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev, pelo Campeonato Ucraniano, no fim do ano passado, e deixaram o campo chorando. Taison ainda foi expulso por responder aos insultos exibindo o dedo do meio para os torcedores. Em entrevista neste ano, ele contou que foi o momento mais difícil de sua vida.

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Reprodução/SporTV

Vasco Sub-20

Em uma das semifinais da Copa RS sub-20 disputada no fim do ano passado, o zagueiro Miranda, do Vasco, correu para a câmera para comemorar o gol da classificação e denunciou um caso de racismo durante a partida contra o Independiente-ARG. "Macaco não. Tenho orgulho da minha cor", disse. No dia seguinte, ele procurou a delegacia da cidade gaúcha para fazer uma ocorrência. O UOL teve acesso tanto à súmula da partida quanto ao registro de ocorrência e, em ambos os documentos, Miranda acusava dois adversários; um de chamá-lo de "macaco" e outro de tê-lo ofendido de "macaco, negro imundo".

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Marcello Zambrana/AGIF

Vinícius Júnior

Expulso no 2º tempo de um clássico entre Flamengo e Botafogo, em 2018, pelo Campeonato Carioca, Vinícius Júnior, hoje jogador do Real Madrid, foi alvo de xingamentos, cuspes e gestos obscenos da torcida do clube alvinegro. Uma senhora foi flagrada pelas câmeras chamando-o de "viado, neguinho safado". No ano anterior, ele já tinha vivido algo parecido quando um torcedor foi detido suspeito de injúrias raciais -- também em um jogo contra o Botafogo, mas pela Copa do Brasil -- contra seus familiares. O alvinegro fazia sinais apontando para o braço e gritando "tudo macaco".

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Tiago Coelho/UOL

"Matar o negro é adubar a terra"

"Um dia meu filho de cinco anos me perguntou por que os pretos dormem na rua e são pobres. Expliquei que é um resquício da escravatura, que estamos tentando mudar isso, mas que é difícil. Não sei se ele entendeu. Às vezes nem eu entendo. Sendo negro em um estado racista como o Rio Grande do Sul, eu me acostumei a ser o único da minha cor nos lugares que frequento.

Fui o único negro na escola, o único namorado negro a frequentar a casa de meninas brancas e, como árbitro, o único negro apitando jogos no Campeonato Gaúcho. Hoje sou o único negro comentando esses jogos na TV local. Durante muito tempo, me calei ao ouvir alguma frase racista. Engolia, como se não fosse comigo. Mas era comigo. A verdade é que estou puto com os racistas. Todo fim de semana escuto gente me chamando de preto filho da puta, macaco, favelado. 'Matar negro não é crime, é adubar a terra', eles dizem. Estou de saco cheio dessa história...."

Relato, publicado em abril do ano passado, do ex-árbitro Márcio Chagas sobre o racismo que sofreu no futebol.

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Darío Guimarães Neto Darío Guimarães Neto

Repercussão mostra que "a gente está falando pouco"

O cuidado com as questões sociais fez o Bahia ser tema de uma reportagem do inglês "The Guardian", um dos principais jornais internacionais. Com o título de "Como o Bahia se tornou o clube de futebol mais progressista do Brasil", a matéria abordou, em especial, as recentes ações realizadas pelo clube. "Reduziu preços, deu voz aos torcedores, abordou questões políticas e se dedicou ao 'carinho, integração e amor'", resumiu a matéria. A veiculação da reportagem deu a Roger uma mistura de sentimentos: orgulho, otimismo, mas também preocupação.

"Porque se algo que foi falado em três minutos, talvez, correu o mundo e gerou essa visibilidade e essa repercussão toda, é porque a gente está falando pouco. Se a gente se surpreendeu, é porque se está falando pouco. De otimismo, porque o futebol é um canhão. Há quem diga que o futebol não pode sair das quatro linhas. Não só pode como deve, porque é uma manifestação cultural, um patrimônio histórico para o brasileiro e mundial", diz.

"É um espaço em que as grandes lideranças, os grandes atletas, aqueles que se envolvem com a causa tenham espaço de falar e serem ouvidos. Foram sentimentos de orgulho, preocupação e otimismo também, de que é possível se fazer bastante coisa quando a gente tem iniciativa e quando isso tem respaldo de uma instituição como o Bahia."

Ale Cabral/AGIF Ale Cabral/AGIF

2019 foi a maior ano de sua vida

Demitido em julho de 2018 do Palmeiras, Roger Machado teve quase um ano até iniciar o seu próximo trabalho. Acertou com o Bahia em abril de 2019, iniciando uma trajetória que ficará marcada por uma série de motivos. Fora a lição que ele deixou — e pretende continuar deixando — com o debate sobre o racismo, o próprio técnico reconhece que aprendeu bastante com a campanha da equipe, especialmente no Brasileiro. Depois de uma sequência de nove jogos sem derrotas no fim do primeiro turno — com direito a 3 a 0 no campeão Flamengo —, o Bahia caiu de produção e sofreu o inverso: nove partidas sem vencer. Um período complicado para o professor Roger Machado, que, nas passagens por Atlético-MG, Palmeiras e até Grêmio, teve o futebol bem jogado como principal característica — embora os resultados não tenham sido os esperados.

"Foi o principal ano pessoal e profissional da minha carreira, porque o que está na memória do torcedor pelo trabalho que eu fiz no Grêmio, no Atlético-MG, no Palmeiras, são equipes que ficavam muito com a bola e que tinham um jogo mais apoiado, tinham muito mais cadência, e chegavam no gol com bastante gente. Quando eu cheguei ao Bahia, o modelo que a gente conseguiu adaptar em função das características dos jogadores foi um jogo mais direto, mais reativo, marcando mais baixo, e, para mim, ficou tão bonito igual. Com outro viés de beleza, mas muito bonito, porque, em determinado momento, nós éramos a melhor transição do Brasil, que chegava rápido ao gol adversário. Mas, claro, como todo modelo, tem seus pontos fortes e seus pontos fracos. Em alguns momentos, jogando em casa, com um adversário que se fechava, não tínhamos espaços, tínhamos que tentar construir um pouco mais e isso gerou um pouco mais de dificuldade. Foi nesse momento da instabilidade que tivemos", recorda.

Apesar da instabilidade citada por Roger Machado durante o segundo turno do Nacional, ele diz não ter se sentido ameaçado no cargo, em nenhum momento. Mas de onde vem essa tranquilidade?

"Pelo futebol brasileiro, talvez [me senti ameaçado], mas, pela relação que eu tinha construído com a diretoria e com o clube, eu não me senti ameaçado em nenhum momento. Pela segurança de saber que o trabalho estava sendo avaliado não só pelos resultados, mas por tudo o que envolve o futebol, a qualidade do treino, o nosso envolvimento com o trabalho, o nosso envolvimento com o clube, com a cidade, com o estado, com a torcida. É difícil, para mim, imaginar futebol como fim. Pra mim, ele não é fim, ele é só meio. Não é só a bola entrando no gol. Tem outros aspectos que são muito importantes, que ajudam essa bola a entrar no gol. Estava preocupado em encontrar a solução para aqueles problemas que a gente estava tendo momentaneamente, mas sabendo também que o Campeonato Brasileiro é muito duro. Todas as equipes oscilaram, em algum momento. A questão é que nós oscilamos no final. Sob algum aspecto, você acabar em baixa parece que o ano não foi tão produtivo, quando, na verdade, foi. Não dá para você avaliar a Bolsa de Valores por uma semana, ninguém mexeria nela", analisa ele, que tem o Bahia como sexto clube na carreira de técnico e somente no Grêmio havia sentido uma segurança semelhante.

"No Grêmio, eu também me sentia muito confortável e não fui 'saído', eu que pedi demissão. Me sentia bem no cargo e também tinha o respaldo muito grande da diretoria. Acho que foram esses dois momentos. Claro que no Grêmio tem uma relação da história pregressa e que, certamente, contribui para uma relação um pouco mais calma. Com esse aspecto, dá para dizer que o Bahia tomou a dianteira, porque minha relação foi construída do zero com o clube."

Divulgação/Atlético-MG

Papa-títulos como jogador e técnico em formação

Se como técnico Roger Machado, por enquanto, levantou só duas taças (Campeonato Mineiro de 2017 e Campeonato Baiano de 2019), como jogador a história é outra. Revelado pelo Grêmio em 1994, o ex-lateral esquerdo ganhou praticamente tudo. Só pelo time gaúcho, foram três Copas do Brasil (1994, 1997 e 2001), uma Copa Libertadores (1995), um Brasileiro (1996) e quatro Estaduais (1995, 1996, 1999 e 2001) — fora a Recopa Sul-Americana em 1996.

Roger deixou o Grêmio em 2003 para se aventurar no Japão. Foram dois anos defendendo o Vissel Kobe até retornar ao Brasil, em 2006. Pelo Fluminense, seu terceiro e último clube como jogador, faturou mais uma Copa do Brasil, em 2007. A missão como jogador estava completa.

Após alguns anos como auxiliar-técnico do Grêmio, veio, então, a carreira como treinador. No começo, três times gaúchos, assim como ele: Juventude, Novo Hamburgo e o próprio Grêmio, onde acumulou grandes vitórias e convincentes atuações, mas oscilou em momentos decisivos. Pediu demissão em setembro de 2016 após uma derrota por 3 a 0 para a Ponte Preta, e saiu do clube tricolor com mais de um ano no comando e 94 jogos na conta.

Meses depois, foi anunciado pelo Atlético-MG para iniciar os trabalhos para 2017. Foi com o Galo que teve seu primeiro título como treinador: o Campeonato Mineiro, em cima do rival Cruzeiro. Mas a marca de quatro derrotas em oito jogos como mandante no Campeonato Brasileiro fez Roger Machado ser demitido ainda no primeiro turno. Chegava a hora do Palmeiras.

No clube alviverde, o que mais pesou foi a derrota para o arquirrival Corinthians na decisão do Paulistão — com direito a polêmica e pedido do Palmeiras para impugnar o jogo alegando interferência externa. Com o início não tão animador no Brasileiro à frente da equipe com um dos elencos mais caros do Brasil, Roger acabou demitido na 15ª rodada da competição, em julho de 2018. Foram mais alguns meses de estudo até assumir o Bahia, seu atual clube, em abril do ano passado.

O que a gente quer é evoluir com o futebol. A gente só vai evoluir quando a gente entender que nós temos profissionais, no Brasil, capacitados, que a gente pode, sim, abrir as portas do país para outros profissionais

Roger Machado

Estrangeiros vieram para ficar?

Quem é melhor? O técnico brasileiro ou o estrangeiro? Os mais experientes ou os treinadores da nova geração? As recorrentes discussões também foram colocadas a Roger, que encara a questão como algo natural, cíclico. Ainda assim, vê injustiça em como os medalhões foram tratados depois da Copa do Mundo de 2014, quando uma de suas inspirações como técnico, Luiz Felipe Scolari, foi colocado para baixo por conta do fatídico 7 a 1 para a Alemanha.

"A gente tem a necessidade como indivíduos, como profissionais, de, muitas vezes, rotular os demais. Depois da Copa do Mundo de 2014, esses profissionais foram jogados literalmente no lixo. Profissionais que contribuíram com a minha formação, com a formação da maioria dos treinadores que estavam no mercado, mas foi também nessa onda que os jovens treinadores entraram no mercado, ganharam oportunidade. Eu vejo que, de uma certa forma, isso é cíclico. Talvez tenha acontecido de forma mais abrupta por causa do evento da Copa do Mundo. Para mim, esses profissionais continuam sendo competentes. Eles provaram isso. As portas não se fecharam pelos seus trabalhos, fecharam, muitas vezes, pelo preconceito, em função de uma renovação forçada, em função de um evento marcante."

Sobre a "moda" dos estrangeiros no Brasil, Roger Machado faz uma exigência em relação à reciprocidade nas licenças e discorda do depoimento de Jorge Jesus — ainda antes de assumir o Flamengo — que aponta os técnicos brasileiros como ultrapassados.

"Agora, são os estrangeiros, que eu não tenho nada contra. Eu só gostaria que aos estrangeiros fossem solicitados também uma política de reciprocidade em relação às licenças. Da mesma forma que é solicitado, obrigatoriamente, que tu tenha pra trabalhar lá fora. Desde que houver essa equivalência, eu não vejo problema, porque, pra mim, o intercâmbio é muito mais valoroso, mais importante do que qualquer disputa interna. Todos nós crescemos, inclusive eles."

"Agora, eu vi uma fala do Jorge Jesus, do ano passado, falando que os treinadores brasileiros estariam ultrapassados. Isso eu discordo, mas consigo perceber algo que a gente precisa pelo menos refletir sobre isso. Nós costumamos dizer no futebol brasileiro que nós não temos mais jogadores tão talentosos para decidir os jogos com protagonismo. De uma certa forma, se nós não temos esses jogadores decisivos, nós temos que continuar buscando alternativas pra criar estratégias coletivas pra que tu consiga sobrepor a ausência desses jogadores tão talentosos, decisivos. Discordo quando ele diz que nós estávamos ultrapassados porque nossos grandes treinadores sempre tiveram estratégias coletivas. Tiveram estratégias coletivas para que, naquele momento no qual nós tínhamos esses jogadores decisivos, permitir que eles pudessem, muitas vezes, ficar desobrigados ou trabalhar no processo defensivo de uma forma diferenciada pra que eles pudessem decidir. É uma reflexão importante, mas que, no fundo, essa discussão não contribui muito com a gente. Gera separação, gera rupturas".

Fernanda Luz/AGIF Fernanda Luz/AGIF

O risco da "espanholização" do nosso futebol

Daqui a quanto tempo o Nordeste voltará a ter um campeão nacional? A partir desta pergunta, Roger Machado alertou para a enorme diferença orçamentária que há hoje entre os clubes no Brasil e que impede a ascensão de clubes como, por exemplo, Bahia, Fortaleza e Ceará.

"Esse ano foi o primeiro ano em que os três primeiros colocados tiveram uma pontuação de campeão, e foi o primeiro ano dos pontos corridos que tu se livrou com o menor número de pontos. O que isso significa? Aquelas equipes que estão da metade pra baixo da tabela estão cada vez menos conseguindo tirar pontos das equipes que tão na frente", diz.

Assim como Barcelona e Real Madrid monopolizam o Campeonato Espanhol, Roger Machado teme que o mesmo aconteça no futebol brasileiro. Para o técnico, o melhor — e mais justo — modelo para o campeonato nacional é um em que o "bolo seja mais bem dividido".

"A gente corre o risco de ter uma 'espanholização' do futebol brasileiro, em que duas ou três [equipes] vão disputar sempre o título e as demais vão fazer parte da competição, e vão brigar por objetivos diferentes. Eu acredito muito no modelo em que você consiga gerar uma competição maior, dividindo melhor esse bolo, pra que tu tenha um campeonato mais atraente, fazendo um calendário adequado. Isso, não tenham dúvida, vai trazer os atletas de fora do país para dentro, novamente, vai atrair novos patrocinadores, você vai conseguir vender o produto com uma capacidade maior e isso vai gerar muito mais riqueza para o nosso futebol."

Antonio Paz/Folha Imagem

O caminho para ser a maior liga

Para Roger Machado, fazer um calendário menos desumano, com menos jogos e mais tempo para todos trabalharem como se deve, é a fórmula para que o futebol brasileiro não apenas evolua, mas passe a ter a melhor liga do mundo.

"O dia que o futebol brasileiro decidir olhar para o seu calendário com carinho, o futebol brasileiro, em uma década, vai ser a melhor liga do mundo, eu não tenho dúvida disso. Enquanto a gente quiser fazer um calendário desse, como um arremedo, e acreditar que está fazendo bem para o futebol, a gente vai continuar patinando, porque vamos errar em todos os níveis. Hoje, os meninos da formação jogam tanto quanto os maiores times do futebol brasileiro, esses que estão disputando a Libertadores: 70, 80 jogos. É impossível formar sem poder trabalhar devidamente os atletas para que depois eles possam jogar."

O técnico tricolor hoje usa um ensinamento que lhe foi passado por sua mulher, que trabalha com algo totalmente diferente de futebol: esquadrias de PVC. Mas, apesar de diferente, ela acredita que tudo deve ser tratado da mesma forma, como uma empresa, e não imaginar que o futebol precisa ser administrado de outra forma.

"Eu sempre faço analogia com as empresas. Minha mulher é administradora, e me recordo de quando eu chegava reclamando das coisas que aconteciam no futebol e ela me falava: 'Isso acontece na empresa em que eu trabalho também. É igual'. Eu disse: 'Não é igual. Futebol é diferente'. Ela disse: 'Não é diferente. O problema de vocês no futebol é esse. Vocês pensam que é diferente. A diferença é que eu trabalho com esquadrias de PVC, e o produto de vocês é a bola. Enquanto vocês, no futebol, não entenderem que há de se administrar de uma forma mais científica, austera e com compromisso da gestão, de fato, o futebol vai demorar a evoluir'. Isso, para mim, é determinante hoje. Os clubes se organizaram. Hoje, o clube que não se organizar vai ter problema. Agora, é possível o clube se transformar em empresa. Isso vai gerar investimentos", diz o técnico.

"Costumo dizer que o futebol é um simbolismo do que acontece no país. Assim como grandes investidores não têm confiança para investir no país pela insegurança jurídica, pela instabilidade, grandes investidores que querem entrar no futebol brasileiro também não tem confiança porque não tem segurança da mesma medida. A medida em que houver segurança, vai ter investimento. Na esteira dessa organização toda, não tenho dúvida: em uma década, 15 anos, no máximo, se isso acontecer, a partir de agora, a gente vai ser a melhor liga do mundo e atrair de volta todos os mais de mil jogadores que nós temos lá fora e que dizem que a gente não produz mais. A gente produz, mas a gente perde cedo esse talento que vai lá para fora. Ele fica lá fora durante sua idade produtiva e, quando vem pra cá, já não consegue oferecer o que ele foi no seu momento áureo."

Darío Guimarães Neto/UOL Darío Guimarães Neto/UOL

"O homem, a bola, o espaço e o tempo" por Roger Machado

"O jogo hoje está muito mais intenso. Ele está sendo jogado num espaço muito menor. Isso faz com que tu tenha que ter uma velocidade de tomada de decisão maior. As pessoas dizem que os espaços no futebol diminuíram. Eles não diminuíram, o campo continua o mesmo. Nós desenvolvemos a capacidade de passar com a bola pelo obstáculo, que é o adversário.

Eu digo que o futebol é jogado com quatro elementos: o homem, a bola, o espaço e o tempo. Isso está em jogo em 105 por 68 metros. Nós fomos protagonistas durante quase 100 anos do futebol jogado no mundo porque essa referência da relação homem/bola e a capacidade de passar pelo objeto com ela nos deu esse protagonismo. O europeu se deu conta de que, se ele quisesse competir com essa virtude do jogador brasileiro, ele ia perder. Então, o que ele fez? Na ordem desses fatores, ele colocou o espaço e o tempo à frente da bola e do homem. Justamente para tentar nivelar essa capacidade que nós tínhamos.

O que a gente precisa, além de não perder essa essência da habilidade, do jogador decisivo, é entender a relação do espaço com mais eficiência. A gente já faz isso, mas precisamos entender onde foi que a gente começou, de uma certa forma, a perder esse protagonismo, e tomar cuidado pra que a gente não deixe de formar esses jogadores. A minha preocupação não é com o profissional. A minha preocupação, hoje, é com a formação. Quando você, na base, começa a tirar essa referência do homem/bola e dá a referência do espaço, você está deixando de criar esse jogador que tanto sabe passar com a bola, quanto aquele que marca, porque tu desenvolve os dois. Você cria boas equipes, mas acaba deixando de formar bons jogadores, que é o que sempre nos caracterizou.

Um meio termo disso, talvez, fosse o ideal para que a gente continuasse a desenvolver atletas com esse perfil."

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