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Natália Lara será a líder dos Jogos de Inverno no Sportv, mas lida diariamente com ataques por ser mulher

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Globo/Sérgio Zalis

"Você narrando é um crime". Esse é apenas um dos muitos ataques que Natália Lara sofre todos os dias simplesmente por ser uma mulher na liderança de transmissões de competições esportivas no Sportv, principalmente no futebol.

Aos 28 anos de idade, ela conquistou espaço em um ambiente predominantemente masculino. Será um dos principais nomes do Sportv na transmissão dos Jogos Olímpicos de inverno de Pequim, que começaram nessa semana (a festa de abertura é hoje, às 9h) e vão até o dia 20. Apesar disso, ela ainda precisa lidar com os comentários ofensivos e agressivos de quem não aceita a narração feminina.

"Esse tipo de coisa no dia a dia, sinceramente, cansa. Não é todo dia que eu estou bem para lidar com isso. Tem dia que eu bloqueio e viro a página, mas tem dias que é bem duro. Principalmente quando são ataques coordenados, em que, a cada dois segundos, recebe uma enxurrada de coisa. É bastante cansativo e desgastante. Já tive que bloquear comentários de rede social para não ter que lidar com isso. Eu não faço a menor ideia de quantas contas bloqueadas eu tenho", relatou Natália Lara ao UOL Esporte.

O desejo de Natália é que finalmente respeitem o trabalho dela e de outras mulheres que atuam na comunicação esportiva. Assim como qualquer pessoa, ela persistiu para conseguir um espaço no mercado: estudou, trabalhou de graça, atuou como DJ em festas universitárias e chegou na maior emissora do país.

Globo/Sérgio Zalis

Já passou da hora das pessoas pararem de criticar o trabalho da gente porque somos mulheres. Já deu. A gente já está aqui. O lugar que a gente trabalha abraça nosso trabalho e gosta do que a gente faz. Não tem mais volta. Não é porque meia dúzia de gente conservadora quer, que a gente vai deixar de trabalhar".

Natália Lara

O que mais me deixa irritada com isso, o que mais me deixa chateada, muitas vezes, e me sentindo mal, é que a pessoa está atacando o seu trabalho. O meu trabalho não difere de qualquer outro tipo de trabalho. Eu acordo, levanto, me preparo, saio para trabalhar, volto para casa cansada, sinto fome, tudo isso".

Natália Lara

Natália faz parte de um movimento da televisão que começou há pouco tempo: a inclusão de mulheres nas narrações esportivas. Na próxima quarta-feira, por exemplo, Renata Silveira será a primeira mulher a narrar um jogo de futebol na Rede Globo —ela está escalada para a semifinal da Supercopa Feminina, torneio que abre o calendário do futebol feminino brasileiro, no dia 9h, às 15h30. No Sportv, Natália e Renata estão na rotação das partidas de futebol há tempos.

A presença dessas profissionais em um espaço predominantemente masculino, porém, incomodou aqueles que estavam acostumados com homens no comando dos microfones. Apesar de tudo, entre os ataques, a jovem paulista recebe o carinho de pessoas que se inspiram na trajetória dela.

"Cheguei em casa após uma transmissão do Campeonato Gaúcho e recebi a mensagem de uma moça que falou que ficava muito feliz de saber que eu estava ali ocupando esse espaço, mostrando que as mulheres podem estar onde elas estão e que, graças ao meu trabalho, ela descobriu que gosta de futebol e que pode consumir esporte. Ao mesmo tempo, tinha um cara falando: 'Você narrando é um crime'", relatou.

Globo/Sérgio Zalis Globo/Sérgio Zalis

Experiência de gente grande

Aos 28 anos, Natália passou pelos Canais Disney, pela TV Cultura e pela DAZN. Transmitiu 16 modalidades esportivas diferentes até chegar ao Grupo Globo no ano passado para reforçar o time de locutores nas Olimpíadas de Tóquio. A paulista, então, se tornou a segunda mulher a narrar no Sportv —a primeira foi Renata Silveira.

A versatilidade foi um dos fatores que abriu portas. "Minha referência é o Everaldo Marques, que faz de tudo. Então, sempre pensei que para ser um dos melhores narradores dentro do mercado é preciso ser uma pessoa que narre de tudo. E eu, como sempre gostei muito de Jogos Olímpicos, lembro muito mais de momentos marcantes de Olimpíadas do que de jogos de futebol, já pensei: 'Não quero ficar focada só no futebol, quero fazer outras coisas'", contou Natália.

No ano passado, nas Olimpíadas e Paralimpíadas de Tóquio, ela acumulou nove modalidades esportivas. A boa atuação em ambas as competições rendeu frutos. Agora, o leque vai aumentar com as Olimpídas de inverno, com modalidades mais conhecidas, como esqui downhill, até inusitadas, como curling, e clássicas, como patinação no gelo. Natália vai liderar a cobertura no Sportv ao lado de Sergio Arenillas.

"Não imaginava que teria um espaço nessa proporção que eu vou ter agora, de encabeçar as transmissões. É um desafio muito grande, uma preparação em que tem dias que eu estou muito feliz, tranquila e outros em que eu estou descabelando. São esportes que eu nunca fiz, nunca transmiti nenhum deles. Não faz parte da nossa cultura. Mas eu estou muito animada".

Acho que é um evento que tem muito brilho. Olimpíadas têm muito brilho. São sempre histórias de superação, onde a gente vê atletas se destacando e puxando limites. Nas Olimpíadas de Inverno não é diferente. Sempre tive muita expectativa de fazer e agora estou pronta para esse desafio".

Natália Lara

Globo/Sérgio Zalis

"A gente pode fazer algo tão bem feito quanto os homens"

A carreira ainda curta e já bem sucedida não é por acaso, segundo Natália. Ela sente que ser mulher no mundo da comunicação esportiva traz uma carga de cobranças muito maior e, por consequência, uma entrega volumosa.

"Estamos ganhando um espaço que a gente deveria ocupar há mais tempo. É muito importante que a gente ocupe a posição de narração, mas que, efetivamente, as portas sejam abertas. Nunca tivemos mulheres ocupando esse espaço e agora temos que demonstrar que a gente pode fazer algo tão bem feito quanto os homens. É um movimento natural conquistar essas coisas de forma rápida", disse

"Eu fico muito feliz de ser uma das pessoas que está fazendo isso, mas tenho plena consciência de que, para chegar aqui, apesar de eu ser nova, e de ter relativamente pouco tempo de carreira, eu já fiz muita coisa. Tenho muitas transmissões, trabalhei de graça, bati na porta de vários lugares. Eu insisti muito. A necessidade de ocupação do local e o tipo de entrega e determinação justificam eu ter chegado lá tão rápido."

"Isso é uma característica do que significa ser mulher dentro do mercado de trabalho saturado por homens. Os homens não têm o mesmo nível de cobrança que a gente. Não estou dizendo que não é o mesmo nível de trabalho, mas a cobrança que a gente recebe é muito diferente. Uma transmissão minha é observada de lupa. Um erro meu toma proporção muito maior. Uma fala minha que agrada ou desagrada — para coisas boas ou ruins — toma proporções muito grandes", destacou Natália.

Como ela chegou lá

A primeira vez que Natália narrou um jogo de futebol foi em 2014, durante uma aula da faculdade de Rádio e TV. A professora propôs o exercício, ninguém teve coragem de participar e a jovem se colocou à disposição. A partida? O fatídico 7 a 1 que o Brasil levou da Alemanha nas quartas de final da Copa do Mundo narrado por Galvão Bueno.

"Tinha um módulo na minha faculdade que era focado em esporte. Em uma das aulas, decidi narrar porque ninguém na minha sala queria. Eu sei que foi bem confuso. Basicamente, era só eu gritando 'gol da Alemanha'. Mas foi uma experiência divertida. Acabei gostando porque uma professora deste módulo falou que eu tinha uma voz muito boa para narração e que, de repente, seria um caminho interessante para procurar. Disse que poderia ter um pioneirismo na área. Ela sabia do meu gosto por teatro, por falar. Então, foquei muito nas matérias de locução", relembrou Natália.

A radialista, então, pegou gosto pela coisa e decidiu focar na narração, mesmo sabendo que era a área estava fechada para mulheres. Natália fez cursos de locução e de narração esportiva, em que sempre foi a única presença feminina na sala de aula.

"O primeiro pontapé de procurar o curso de narração já foi um processo interno de acreditar muito na minha capacidade de fazer. Eu saí de um curso de locução em que eu sabia que era muito diferenciada, parece até arrogância falar assim, mas não é isso. Eu tinha mais facilidade em aprender mesmo. Acabei entrando no curso com a cabeça muito forte. Mesmo sendo a única mulher e sabendo que não seria fácil, eu confiei justamente pela minha característica de ser uma pessoa que aprende muito rápido, que se desenvolve muito fácil. Por algum motivo, eu acreditei que eu poderia fazer. E aí, eu fui mesmo".

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Natália Lara é ligada ao mundo das artes e trabalhou como DJ por seis anos

Nos embalos das noites

Antes de engrenar na narração esportiva, Natália trabalhava como DJ em festas, principalmente em celebrações universitárias das faculdades Cásper Líbero e Getúlio Vargas. Quem frequentou as baladas entre 2013 e 2020 pode lembrar do nome. A Natália Lara DJ é a narradora.

"Comecei no primeiro ano da faculdade, quando coloquei funk para tocar em uma festa, e não parei mais. Aprendi a mexer nos equipamentos sozinha. Foi um trabalho que eu levava muito a sério. Eu tinha muitas festas por mês, por ano. Fazia viagens. Esses famosos JUCAs (Jogos Universitários de Comunicação e Artes), Jogos Jurídicos, Economíadas, essas coisas que o cenário universitário tem muito. Eu fui para cima e para baixo trabalhando como DJ, fazendo muitas festas. E era uma área que eu gostava muito. Cheguei a investir em equipamento e eu me dei muito bem", relembrou Natália.

"De 2014 para frente, não teve uma festa da Cásper em que eu não toquei. Foi bastante. E de 2017 até 2019, eu toquei em todas as festas em todas as viagens da FGV. Foi na FGV que eu parei. Até o pessoal da Atlética de lá começou a acompanhar minha transição de DJ para narradora. Eu lembro que um dos integrantes do time de eventos lá falava: 'É muito legal ver como você está deixando de tocar para mudar para essa área'. Eu gostava bastante. Era um hobby, mas dava um bom dinheirinho".

Narra quem sabe

Uma das primeiras oportunidades que Natália Lara conquistou veio com o "Narra Quem Sabe", em 2018, da Fox Sports. O programa foi criado para incentivar e abrir caminhos para mulheres que sonham com a narração esportiva.

"Foi um processo extremamente intenso, em que eu me desenvolvi muito. Acho que meu ponto alto lá foi quando a gente teve a narração da Copa América Feminina com a CBF. Foi a primeira narração oficial mesmo. E com a seleção feminina sendo heptacampeã da Copa América, Marta levantando a taça", contou Natália.

Apesar de toda a experiência positiva no processo, a radialista não ficou entre as finalistas. Frustrada, pensou em desistir. Ela se reergueu meses depois com um convite para liderar transmissões do Pan-Americano Universitário de 2018, no canal da CBDU (Confederação Brasileira de Desporto Universitário).

"Fiz várias modalidades diferentes, principalmente atletismo, futsal e futebol. E aí, lá me reacendeu um negócio que eu senti no 'Narra quem sabe'. Pensei: 'realmente tem gente que acredita em mim, tem espaço para isso'. Aí, eu trabalhei em web rádio, em transmissões que quase não tinham audiência, por muito tempo de graça. Pagava para ir aos estádios, para estar nos lugares", relembrou.

Depois do Pan-americano Universitário, eu coloquei na minha cabeça que ia dar certo, que eu ia atrás disso, que eu ia conquistar meu espaço. As coisas começaram a fluir depois disso. Eu comecei a fazer muitas coisas, atirar para tudo quanto é lado: gravar podcast, fazer entrevista, participar de programa das webrádios. Aí, comecei a trabalhar com futebol feminino: fiz o Paulistão de 2019, abriu espaço para o Brasileirão também, comecei na Cultura, no mesmo ano. Então veio a DAZN, ESPN e, então, a Globo desde o ano passado".

Natália Lara

Globo/Sérgio Zalis

Deixa ela

Não tem como negar que a carreira de Natália é meteórica. Aos 28 anos, ela está no auge: em menos de um ano no Grupo Globo, ela já narrou Olimpíadas de verão e vai comandar as transmissões dos Jogos de inverno. Mas ainda tem muito mais pela frente e, para isso, ela só quer trabalhar em paz, com respeito.

Quem trabalha com narração, reportagem, comentário, é ser humano também. A gente está muito exposto? Sim, é verdade. A gente está muito exposto, mas, esse simples fato não dá o direito de ninguém vir esculachar a gente. De tratar mal, de xingar, ameaçar. É muito triste que tenha gente maldosa a ponto de fazer isso. É o famoso ditado: 'Deixa ela trabalhar'. Aquela campanha que tinha um tempo atrás, né. A gente não está fazendo nada de mais, só trabalhando".

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