A era das vacas magras

Especialista projeta Flamengo modesto no mercado, Palmeiras vendendo e cita Corinthians de exemplo a declínio

Mauro Cezar Pereira Colunista do UOL Photo by blende11.de/ullstein bild via Getty Image

Nos últimos anos o futebol brasileiro viu clubes tradicionais em decadência devido aos problemas financeiros, enquanto os que conseguiram se organizar passaram a dominar os principais títulos, casos de Flamengo e Palmeiras, os últimos dois campeões brasileiros e da Libertadores. Em 2020, veio a pandemia, que passou a afetar até quem vivia situação mais estável nas finanças. Como resultado, o torcedor deve se preparar para ver seu time perder jogadores.

Em entrevista a Mauro Cezar Pereira no programa Dividida, do UOL Esporte, Cesar Grafietti, especialista em gestão e finanças do futebol e responsável pelo relatório anual Itaú BBA, fala sobre a queda de receitas dos clubes e vê como inevitável a venda de jogadores uma situação financeira saudável. Grafietti alerta que o torcedor não deve se surpreender com saídas como a recente do meio-campista Gerson no Flamengo, negociado com o Olympique de Marselha.

"Praticamente todos os clubes vão precisar vender atletas, até os mais organizados, como a gente viu com o Flamengo. O Palmeiras vai ter que vender atleta, o Grêmio tem que vender atleta, todo mundo precisa vender, acho que o único time que hoje não precisa vender atleta e que ainda assim vende é o Athletico-PR, todo o resto vai precisar de alguma forma correr atrás ali para fazer algum dinheiro", completa.

Analisando os balanços financeiros do futebol brasileiro, Grafietti faz um diagnóstico dos principais clubes do país e avisa: mesmo clubes como Flamengo e Palmeiras dificilmente farão grandes contratações.

Arte/UOL Arte/UOL
Marcelo Cortes/Flamengo

'Improvável que o Flamengo faça grandes contratações'

Desde que o Flamengo conseguiu se reorganizar economicamente, o torcedor rubro-negro se acostumou a contratações e time formado por estrelas, mas na temporada atual houve uma baixa significativa, com a venda do meio-campista Gerson para o Olympique de Marselha.

A saída do jogador acontece no momento de arrecadação em queda, com uma difícil meta de arrecadar R$ 100 milhões em bilheteria. Em um cenário de estádios vazios, ainda que a situação financeira do clube não seja ruim, vender um atleta importante foi uma saída. Grafietti avisa ao torcedor para que não espere reforços caros.

"A restruturação do Flamengo aconteceu, foi ótima, mas mesmo nos últimos anos o clube dependeu muito da venda de jogadores para fechar suas contas. Ele vinha entrando em um modelo onde dependia cada vez menos dessas operações, a pandemia obviamente atrapalhou esse processo. Para 2021, o que vemos é que com a venda do Gerson a situação fica equilibrada", explica.

"Não vejo muito espaço para o Flamengo fazer grandes contratações, o elenco já é qualificado, especialmente para o padrão brasileiro, vai ter que talvez se virar com o que tem e esperar uma retomada do cenário geral a partir de 2022, onde devemos ter público pleno. Para esta temporada me parece improvável que o clube consiga fazer grandes contratações, exceto um atleta pontual aqui e outro ali, mas para completar elenco e não alguém para substituir o Gerson, por exemplo", completa.

Rodrigo Coca/ Ag. Corinthians

'Corinthians não vai resolver problema em dois ou três meses'

Há uma década o Corinthians brigava pelos principais títulos dentro de campo, além de contar com boa saúde financeira, mas a realidade do clube mudou muito, com times menos competitivos e o endividamento com o futebol e com a construção da Arena Corinthians.

Grafietti analisa o clube e chama a atenção para o quase R$ 1 bilhão em dívidas mesmo com alta capacidade de arrecadação. O analista cita os protestos recentes de torcedores e explica que é preciso que eles entendam que, para se recuperar, o Corinthians precisará reduzir gastos e a situação não será resolvida de imediato.

"O Corinthians talvez seja o clube que tem mais dificuldades entre os que ainda não entraram naquele processo de forte deterioração, mas ao mesmo tempo é o que tem mais oportunidades de sair da situação em que está. É um clube que fatura, sem as receitas de bilheteria, cerca de R$ 400 milhões por ano, com R$ 900 milhões de dívida. Ele teria capacidade até pela força da torcida, da marca, de conseguir sair da situação em que está", diz Grafietti.

"É um trabalho de longo prazo, ele não vai resolver esse problema em dois ou três meses. A gente viu recentemente a torcida reclamando, discutindo com a diretoria, mas não tem outra alternativa que não seja cortar custos e isso significa reduzir fortemente a quantidade de atletas no elenco, não investir em contratação, investir no lugar certo, que é em tecnologia para contratar bem, contratar barato, jogadores eficientes", completa.

Cesar Greco/SE Palmeiras

Com queda na Copa do Brasil, Palmeiras terá que vender mais

O Palmeiras conseguiu nos últimos anos uma situação financeira estável que minimizou os efeitos econômicos negativos da pandemia, Muito disso deve-se a cortes de custos e também às conquistas da Copa do Brasil e da Libertadores em 2020, além da venda de atletas. Os valores, entretanto, caíram nessa temporada com a eliminação precoce na Copa do Brasil para o CRB.

Cesar Grafietti afirma que o clube já tinha a previsão de venda de atletas para manter sua saúde financeira, mas pontua que a queda para o clube alagoano tem impacto significativo e deve fazer com que se tenha a necessidade de vender mais jogadores do que a gestão atual previa.

"O Palmeiras fechou bem a temporada por conta dos dois títulos que conquistou ali no começo do ano, o recurso ficou em quase R$ 200 milhões entre premiação de Copa do Brasil e Libertadores e participação no Mundial. Para 2021 o cenário não é o mesmo, continua sem público, perdeu uma possibilidade de fazer dinheiro com a Copa do Brasil e vai precisar vender jogador sim. Já tinha um pouco disso no orçamento, agora com essa eliminação vai precisar vender atleta sim", afirma o analista.

"O cenário não é ruim, até porque tem um volume de outras receitas, mas o volume de vendas de atletas será maior e talvez haja uma necessidade de cortes de custo ainda mais significativos do que os feitos no ano passado. O cenário eu não diria que é confortável, tem alguns desafios para encerrar o ano sem ter que elevar as dívidas", completa.

Divulgação/Atlético-MG

Atlético-MG tem plano ousado e dependência de investidores

Um caso que se difere dos demais clubes da elite do futebol brasileiro é o do Atlético-MG, que está com um processo de construção de seu estádio, além de contar com aportes financeiros de um grupo de investidores para contratações e a manutenção de um elenco caro com uma dívida de R$ 1 bilhão. Grafietti afirma que há muito otimismo por parte de torcedores e dirigentes com a estratégia adotada, mas ressalta que a situação é mais complexa do que se imagina e que é preciso considerar também o caso de o resultado não ser o esperado.

"Quando você desenha o projeto, você coloca na planilha, você tem uma visão sempre otimista, mas nem sempre acontece da forma como você projetou. Eu acho que esse é o grande risco do Atlético-MG. Eu fui questionado nas redes, 'você fala mal, você não leva em consideração que vai ter atleta para vender, que o estádio vai gerar R$ 120 milhões de receita por ano'. Tudo bem, se der tudo certo como planejam, lá na frente a gente vai ver", afiirma.

"Conhecendo um pouco da estrutura do futebol, não tem muito segredo. Dinheiro de TV é negociado a cada quatro ou cinco anos, não dá para triplicar o dinheiro da TV. Dinheiro de publicidade é isso aí, não dá para crescer muito mais. Ainda parte da dívida que tinha com um desses investidores foi renegociada e virou patrocínio a partir do ano que vem na base de R$ 10 milhões por ano, o patrocínio master. Já travou por seis anos um patrocínio que o clube que poderia ganhar mais, já está travado em R$ 10 milhões", completa.

Grêmio e Inter vivem realidades financeiras distantes

O Internacional fechou o ano passado com aumento de dívidas, conseguiu reduzir pouco os seus custos e teve impacto na receita. Entra em 2021 com um desafio imenso, de conseguir, dentro de um universo político bem complexo, implantar as mudanças necessárias: cortar custos, negociar jogadores, reforçar as categorias de base. Acho que terá boas dificuldades pelo começo de ano que nós vimos aqui de conseguir se recuperar em 2021 dos desafios que surgiram em 2020.

César Grafietti

A vantagem do Grêmio hoje é que é um clube que deve pouco. Como deve pouco, tem mais liberdade para trabalhar, não tem que sobrar muito dinheiro para pagar dívidas. Foi um dos clubes que mais reduziu dívida nos últimos três anos. É um clube que sabe até onde pode ir, então eu não tenho grandes preocupações com o Grêmio, mas vai sempre precisar vender um jogador aqui e outro ali para ajudar a fechar as contas, é um pouco da dinâmica do futebol brasileiro

César Grafietti

São Paulo continuará negociando jovens para bancar elenco rodado

O São Paulo investiu em algumas contratações na temporada atual, com a chegada de jogadores veteranos e, como resultado, chegou ao título paulista que encerrou um longo jejum de conquistas. No lado financeiro, ainda sem um patrocínio master na camisa, com dívidas, a gestão iniciada há sete meses sob o comando de Julio Casares terá alguns desafios para resolver.

"O São Paulo também é uma situação estranha, porque é um clube que está muito limitado na sua capacidade de gerar receita, não consegue explorar a marca, então a receita de patrocínio do São Paulo é pífia perto do potencial que o clube tem. R$ 20 milhões, R$ 30 milhões por ano, é muito pouco, depende muito de venda de atletas para fechar suas contas. Essa nova diretoria colocou como prioridade a conquista do Campeonato Paulista, investiu em atletas de certa forma veteranos, caros", analisa.

"A gente só vai descobrir o real efeito do que essa diretoria planeja no final do ano, por enquanto não me parece razoável o que está sendo feito, porque trouxe atletas caros. O clube trabalhou para conquistar um campeonato no começo do ano e agora vai ter que correr para tentar resolver os problemas do ponto de vista financeiro. Vai ter que vender atleta de novo, ou seja, vai ter que continuar negociando os seus bons ativos, ativos jovens, para dar conta de um elenco um pouco mais rodado. Eu tenho sérias desconfianças e dúvidas de como vai encerrar o ano", completa.

Erico Leonan/São Paulo FC

Fluminense e Santos muito dependentes de vendas da base

O Santos vive uma realidade interna de achar que com essa receita dos atletas que forma ele consegue competir em pé de igualdade com o Flamengo, com o Palmeiras, com o Corinthians, com clubes que faturam o dobro ou mais do que ele. Então, vira e mexe ele erra o passo, que foi o que aconteceu em 2019 ali com o Sampaoli e perdurou por 2020. O cenário é de total reconstrução, a nova diretoria tem capacidade de fazer isso, mas tem dificuldades, é muito difícil conseguir reformular e pagar as dívidas, reestruturar um clube com o nível de receita que tem

Cesar Grafietti

A gente olha o Fluminense e fala 'não está tão mal', mas ele não está tão mal porque dentro do mercado onde ele atua tem Botafogo e Vasco, que destoam para baixo, e o Flamengo que destoa para cima, então ele fica ali no meio desses dois blocos e parece que o Fluminense está ok ali, reduz um pouquinho do custo, trabalha dentro das possibilidades, mas é um clube que ainda tem muita dívida, é um clube que depende muito de venda de jogador, então o Fluminense precisa se encontrar, precisa achar um equilíbrio, porque no ano em que não vender jogador, aí vai estourar

Cesar Grafietti

Os rebaixados levarão anos para se recuperarem

  • Cruzeiro

    "O Cruzeiro vai ter enormes dificuldades em voltar a ser competitivo. Vai viver outra temporada na base de R$ 80 milhões de receita, sendo que uma parte grande vai ter que servir pagamento de dívida, então a dificuldade do Cruzeiro é continuar na Série B. Na hora que voltar à Série A, talvez comece a ter algum fôlego, volta à Série A, a hora que voltar a ter bilheteria, isso só em 2022, e ainda assim vai ter que ter um longo trabalho de reestruturar os passivos, um longo trabalho de paciência da torcida", explica Grafietti. "Não vai ter dinheiro para pagar dívida e investir em jogador, o Cruzeiro é um caso que talvez a gente leve uns bons talvez cinco ou seis anos para, se tudo acontecer direito, para ele voltar a ter o mínimo de competitividade numa Copa do Brasil, por exemplo. É um caso de um clube que quase acabou do ponto de vista esportivo e que vai levar algum tempo para se recuperar", completa

    Imagem: Gustavo Aleixo/Cruzeiro
  • Vasco

    "Do ponto de vista prático o Vasco tem muita dívida de curto prazo, a única vantagem que eu vejo no Vasco hoje, em relação especificamente aos últimos dois ou três anos, ou aos muitos anos anteriores, é que tem uma gestão que tem uma visão clara de para onde quer chegar. Sabe que tem problemas de finanças, que vai ter que cortar custos, que vai ter que fechar uma série de esportes olímpicos, aqueles gastos todos que o clube tinha e focar no futebol, mas é um processo também muito longo", diz Grafietti. "Vai ter times frágeis, mas vai voltarm e quando voltar para a Série A, vai voltar fragilizado, tem um longo caminho aqui para o Vasco conseguir se recuperar", completa.

    Imagem: CARLOS COSTA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
  • Botafogo

    "A saída do Botafogo é ainda mais complicada. Eu vejo o Botafogo muito próximo do Cruzeiro, com uma diferença que eu acho que o torcedor do Botafogo, especialmente o torcedor, e o próprio dirigentes aposta muito nessa história de S/A, de clube-empresa, para escapar de um problema que é estrutural, que é um que não tem capacidade de crescer as receitas muito além do que tem hoje. Não vai triplicar as receitas em dois ou três anos só porque virou uma empresa. Diferente do que o torcedor acha, não vai ser um clube que vai ter R$ 500 milhões de receita. Não é possível com o nível de torcida quer tem, com o tamanho de torcida que tem e tudo o mais, realavancar tanto assim, crescer três vezes o seu volume de receitas, que é o que a gente ouve nas redes sociais, que a S/A vai transformar o clube", explica Grafietti.

    Imagem: Vitor Silva/Botafogo

Trio nordestino se destaca como exemplo de organização

Ao mesmo tempo em que clubes como Botafogo, Cruzeiro e Vasco vivem situação delicada, outros de estados do Nordeste nos quais as condições são mais desafiadoras por menor circulação de dinheiro, maiores distâncias em relação ao Sudeste, o que requer viagens mais longas, superam as dificuldades e hoje se colocam em condição financeira estável, casos de Bahia, Ceará e Fortaleza. Na análise de Grafietti, o trio se coloca como um exemplo de organização na gestão e de engajamento com torcedor.

"Bahia, Fortaleza e Ceará, são exemplos bastante bons de engajamento do torcedor. Por mais que ainda a média seja menor, o tíquete médio possível é menor, o torcedor participa muito, então isso ajuda a trazer ali e a melhorar o desempenho, melhorar o relacionamento e até agrega algumas receitas, então o trabalho que esses três clubes fazem é tão bom que mesmo em um momento de pandemia eles aumentaram muito suas dívidas. Por que? Porque eles trabalham de uma forma organizada, o fato de eles não terem esportes olímpicos, de não ter clube social, não ter outros gastos faz com que eles direcionem todos os recursos para o futebol e de uma forma organizada", explica.

"O clube do Nordeste hoje que não encarar Ceará, Fortaleza e Bahia como exemplos a serem seguidos é fadado a voltar à Série B. São clubes que souberam os seus tamanho e quando um clube de futebol sabe o seu tamanho, ele consegue ser mais eficiente no gasto que ele tem", conclui.

MARLON COSTA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
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