Eu só escolhi outro caminho

Goleiro vivia o auge da carreira e tinha proposta da Série A. Até que a religião mudou toda a história

Vitor Costa Em depoimento para Gabriel Carneiro, do UOL, em São Paulo Raul Spinassé/UOL

Eu sei que poderia ter tido uma carreira de mais sucesso no futebol. Eu sei. As coisas não aconteceram da forma como eu esperei, como planejei, como eu quis, como era mais fácil para mim. O futebol era a minha zona de conforto desde os 14 anos, cara. Mas a vida não é matemática. Existe aquilo que você aprende no meio do caminho. Meu sonho de ganhar muito dinheiro e jogar na Série A estava me levando para a morte.

Eu poderia não ver meus filhos crescerem. Não tem nada pior do que isso. Hoje eu tenho dois filhos educados e saudáveis, próximos de mim. Tenho um casamento de 13 anos. Tenho uma base espiritual forte na Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Não me deixaram continuar jogando porque eu comecei a guardar meu sábado, como diz a Bíblia. Tudo bem. Me desafiei, virei escritor e palestrante. Estou terminando um curso da CBF para treinador, pronto para uma missão a 10 mil quilômetros daqui. E fui livrado de uma tragédia. Aquela tragédia. Dá para dizer que eu não estou sendo um campeão? Que eu não tenho uma vida de sucesso? Eu só escolhi outro caminho.

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A questão financeira sempre está acima de tudo e passa por cima de seus valores e princípios. Mas eu decidi que, na minha vida, não passaria.

Há mais de 15 anos eu estudava a Bíblia. O ingresso na Igreja Adventista foi consequência, na verdade, de descobrir uma igreja que respeitava os Dez Mandamentos de Deus. Eu era católico, mas lia muito, pesquisava tudo. No catolicismo, aprendi que deveria guardar o domingo, ir à igreja no domingo, mas quando fui para a Bíblia, ela não diz isso. Então o que eu ouvia da minha avó, da escola e até da igreja que eu frequentava não se confirmou quando comecei a estudar a Bíblia. Sempre tinha umas práticas que não condiziam. Então eu decidi seguir a Bíblia, Jesus e seus ensinamentos. Não igrejas.

Assim como não matar, não adulterar e não cobiçar a mulher do próximo, guardar o sábado é mais um mandamento. Não quis fazer um filtro e pegar só o que serve para mim, e sim tentar viver a verdade do que a Bíblia ensina. Tem pessoas que abrem mão e pegam só o que é conveniente, vivem o que se encaixa na vida delas. Mas eu me neguei a fazer isso. O mais conveniente seria adequar a minha crença à vida que levava e viver simplesmente assim. Isso teria feito eu continuar no futebol.

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Eu era o goleiro titular do Londrina. Cheguei em 2013, subi da Série D para a Série C e da C pra B. Até esse ano, o clube estava na Série B, só caiu de novo agora. Infelizmente. Fui campeão paranaense contra todos esses gigantes, Athletico, Coritiba, Paraná... Mais de 80 jogos, cotado para ser vendido. Estava no auge.

Até que acabou 2015 e eu passei as férias em Salvador, minha cidade. Foi quando tomei a decisão que já vinha amadurecendo dentro de mim. Superei esse conflito interno por causa da minha profissão. Me apresentei para a pré-temporada de 2016, e a primeira pessoa que encontrei foi o treinador, Cláudio Tencati. Ele contava comigo para a temporada e tinha até pedido a renovação do meu contrato.

Cá entre nós, eu podia ter renovado antes das férias. Mas já estava pensando na decisão de me batizar, então renovar poderia ser uma decisão de má fé.

Fui para casa, disse para ele ficar tranquilo, que quando eu voltasse de férias falaríamos de novo. Aí no estacionamento do clube eu contei do meu batizado e que isso me faria ter que guardar o sábado. Significa que eu não poderia treinar ou jogar aos sábados, quer dizer, do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado.

Ele tomou um susto. Ficou sem saber o que fazer. Pediu um tempo para pensar. Enquanto isso, continuei trabalhando, participando de todos os treinos. Exceto aos sábados.

Um pouco antes do campeonato começar, fui informado de que o Marcelo Rangel seria titular e preparado para disputar a Série B, porque eu não estaria mais lá e meu contrato não seria renovado. Não teriam como ficar comigo com essa condição. Eu respeitei, cumpri meu contrato até maio, mas já estava no banco.

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Ali eu já sentia na pele a rejeição pela minha escolha religiosa. Eu era titular, vivia um momento mágico na carreira e de repente fui para o banco. A mensagem ficou clara. Depois, conversei com o presidente, e ele me chamou de maluco, lembrou que eu vivia indo à sala dele pedir para aumentar meu salário e agora que as coisas estavam bem eu mudei tudo por causa de religião.

Eu coloquei no papel quando saiu a tabela dos campeonatos. Metade dos jogos do Londrina na Série B seria sexta à noite ou sábado à tarde, que eu não jogaria. A outra metade, às terças-feiras, eu poderia jogar. Eu fiz uma proposta: por que vocês não revezam? Teria dois goleiros de confiança, de nível alto, com liderança do grupo. E os dois felizes por estarem jogando. Seria bacana.

Eu jogaria quase 50 jogos na temporada, Estadual completo, Copa do Brasil e Primeira Liga, além de metade da Série B. Tem muitos jogadores que o clube paga o ano inteiro e não jogam nem dez vezes. Mas não entenderam assim e optaram por não renovar.

Coisas da vida.

Foi nesse momento que eu senti na pele que a liberdade religiosa no Brasil é falsa. O Londrina só decidiu não renovar o meu contrato pela minha crença religiosa.

Vitor, após ver seu contrato finalizado

Eu não tive respeito em um país que se considera livre. Isso ficou claro nas entrevistas dos envolvidos. Ficou claro que eu não me encaixava e que isso não tinha a ver com a minha capacidade técnica.

Falta um pouco de esclarecimento e conhecimento às pessoas. Eu lembro que repórteres me perguntavam coisas sem contexto, sem nexo, sem saber o que é. A falta de conhecimento é uma porta aberta para o preconceito.

Fui uma vez a um programa de TV, uma roda de debate. Me perguntaram por que eu guardava o sábado. Eu respondi: "Porque está na Bíblia". Aí o comentarista falou: "Mas eu aprendi na escola que era para guardar o domingo. Não é para guardar o domingo?". Aí perguntou aos outros, e ninguém sabia responder. Aí eu disse: "Se você abrir todas as Bíblias do mundo, o quarto mandamento é para guardar o sábado, não o domingo". Ele ficou surpreso. Isso acontece porque falta informação.

Hoje quando penso nisso tenho a certeza que Deus sabe de tudo, porque minha vontade teria me levado à morte. Vou explicar.

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Eu fui eleito o melhor jogador da Série C de 2015, e a Chapecoense veio atrás de mim no fim do ano. Eles teriam um ano de 2016 cheio de competições e queriam alguém para substituir o Danilo quando precisasse.

Sabia que essa seria a terceira vez? Eu substituí o Danilo no Arapongas, quando ele foi para o Londrina, e depois substituí ele no Londrina, quando ele foi para a Chapecoense. Ele tinha ofertas na época, não sei se estavam se preparando para a saída dele quando eu fui procurado. Mas seria o terceiro time em que eu o substituiria. Tinha algo estranho acontecendo. Na época, achávamos engraçado. Eu comentei com a minha esposa, 'quando o Danilo for para algum clube, já sei que é meu próximo'.

Pois é. O negócio com a Chapecoense só não foi fechado pela minha crença religiosa.

Minha vontade era de ir para a Chapecoense, meu sonho era jogar em um time de Série A. Desde 14 anos jogo futebol com esse intuito. Quando eu soube do assunto ,era o pessoal me dizendo que já estava tudo certo. Entre as discussões salariais e de tempo de contrato eu só coloquei uma condição, como atleta que tem uma religião que não se separa do ser humano.

Eu achei que a Chapecoense aceitaria, porque na Série A não tem jogo no sábado. E quando tem é de noite, então eu poderia jogar. Não aceitaram pelo meu motivo de fé. Tive sondagem do Atlético-MG e do São Paulo, mas também informaram que não aceitariam. A Chape um pouco depois contratou o Jakson Follmann, possivelmente para a vaga que seria minha.

Em novembro, teve o acidente com 71 vidas ceifadas.

Eu estava em Salvador, seis, sete meses sem treinar e sem jogar, ainda reflexivo sobre a minha decisão. E de repente veio essa tragédia, que passou muito perto de mim. Nunca imaginamos que algo assim pode acontecer com a gente. E dessa vez eu pude perceber o quão importante foi a decisão que tomei.

Para mim, foi a convicção de que eu tinha feito a melhor escolha da minha vida. Mesmo que eu estivesse passando por dificuldades financeiras, sem saber o que fazer da vida. Acabei abdicando do time em que eu ia ganhar dinheiro pela fé. Depois disso segui minha vida, já tirando um pouco o futebol do foco. Entendi que ali seria difícil ter essa aceitação.

Ficou curioso sobre as dificuldades financeiras, né?

Vitor

Não deu para evitar. Não tínhamos uma estrutura financeira, então voltei a morar em Salvador na casa da minha sogra, mas agora com dois filhos. Minha mais nova tinha acabado de nascer. O dinheiro que tínhamos nós investimos em mercadoria para vender. Minha esposa gostava de vendas e fomos por esse lado. Mas as dificuldades financeiras eram absurdas, tínhamos que vender muito por mês para viver disso e às vezes não dava.

Então fizemos uma readaptação total. Hoje, três anos depois, ainda temos dificuldades. Assim... vivemos tranquilo, não falta nada. A vida agora é sem luxo, sem nada sobrando. É uma experiência de fé. Nunca sabemos no fim do mês como pagaremos as contas. Bem diferente da época do futebol.

Para ajudar, eu escrevi um livro. Foi até bem rápido. Conto minha história até a decisão pelo batismo. Essa geração de internet tem um pouco de preguiça de ler, então botei 120 páginas, menorzinho, e vou vendendo. Eu não cobro nada para dar palestras, mas toda vez que viajo levo uma quantidade de livros e disponibilizo para quem está no auditório. As pessoas acabam comprando. Mas todo mês é uma surpresa. Às vezes fico dois meses sem vender um único livro, aí aparece convite para palestrar em um colégio, duas palestras de uma hora cada, e vendo 600 livros. Deus está provendo. Tenho um segundo livro já escrito, mas ainda não lancei.

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Em 2019 aconteceu uma coisa diferente. Meu ano começou com um convite para jogar futebol de novo. Nem acreditei. Eu estava há dois anos sem pegar em bola e apareceu uma proposta para disputar a Segunda Divisão do Campeonato Baiano pelo Olímpia.

Eu praticamente não joguei depois do Londrina, foram dois jogos pelo PSTC-PR em 2017 e me lesionei. Foi o único time que aceitou minha condição de não atuar aos sábados, até aparecer o Olímpia. Mas futebol é igual bicicleta, você não desaprende.

O técnico foi meu primeiro treinador na base do Vitória com 14 anos. Ele soube que eu estava em Salvador e conhecia minha história. Como o campeonato só tinha jogos aos domingos eu aceitei o convite e consegui conciliar o futebol com a minha crença. Abracei por gratidão. Fiz uma opção de fé, então deixei nas mãos de Deus a questão das oportunidades.

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Eu treinava de segunda a sexta e jogava aos domingos. Fizemos uma boa campanha, chegamos à final sem praticamente perder jogos. Infelizmente perdemos o último. Fizemos cinco pontos a mais que o campeão e não fomos campeões. Mas tivemos a melhor defesa e o melhor ataque, mais pontos e não subimos. Só sobe um. Foi uma boa experiência. Eu consegui entrar em forma, foi bem bacana o trabalho. No segundo semestre, como não tinha definição sobre ter campeonato ou não, eu decidi sair.

Mas isso acabou abrindo outras portas. Um mês e meio depois da final pelo Olímpia, recebi um convite da Jacuipense, que joga a Série D. Eles jogariam o jogo do acesso à Série C e o goleiro titular tinha tomado dois cartões, ia entrar nos jogos decisivos das quartas de final pendurado. Eles estavam preocupados de ele tomar o amarelo no primeiro jogo fora de casa e não poder atuar no segundo e decisivo jogo. Eles contavam com outros dois goleiros jovens, mas não para entrarem no jogo mais importante da história do clube. Aí me fizeram o convite para jogar caso precisasse. Eu só pude atender uma semana, só podia ajudar no segundo jogo.

Foi o contrato mais curto da história do futebol: uma semana. Eu treinei a semana e fui para o jogo no domingo. Não treinei no sábado, mas domingo estava lá. Só que o goleiro não tomou o terceiro cartão e não precisou de mim. Só fui para comemorar o acesso. Me fizeram proposta para renovar para 2020, disputar o Baiano e a Série C. Também tive outros convites, mas já tinha me comprometido com outro projeto.

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Esse compromisso já existia antes mesmo de jogar no Olímpia. Viajo em janeiro para um projeto missionário que apareceu num momento em que eu já tinha praticamente descartado a volta ao futebol. Vou para o Líbano integrar um projeto de ensinar futebol às crianças refugiadas da guerra da Síria. Legal, né? Quando me convidaram, vi que era exatamente isso que eu queria fazer da vida.

É um projeto desenvolvido por um pastor que me convidou para ser um dos caras que vai fazer o negócio acontecer no campo, na escolinha de futebol em Majdal Anjar. Também terá alguns serviços para as crianças, campo de futebol, salas de aula, refeitório, aula de inglês, atendimento médico, tudo de graça.

O carro-chefe são as aulas de futebol para tirá-los do ambiente em que vivem. Eles não têm expectativa e infraestrutura, é em assentamentos na fronteira do Líbano. Então, o projeto vai oferecer um pouco de qualidade de vida para eles. Vamos morar em Zahlé pelo prazo de cinco anos. Pode ser renovado, mas deixamos na mão de Deus.

Nesse período eu vou de mudança com meus filhos, Vitor Gabriel e Ana Valentina, e minha esposa, Gabriela. Eles não gostaram muito no começo, mas agora estão animados. Vai mudar a vida totalmente. Lá vou poder exercer minha profissão, o dom que Deus que me deu, e usar em benefício de outros. Será fantástico ajudar as crianças nesse projeto e ainda ter o salário para ajudar a minha família.

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Eu tiro uma conclusão de toda a minha história: se houvesse liberdade religiosa no Brasil eu não teria ficado dois anos longe do futebol. A gente diz que é um país livre, mas existe muito preconceito com muçulmanos, com religiões de matrizes africanas, com evangélicos. Há preconceito com todos.

Foi só o caminho que eu escolhi. Tem quem abra mão da fé pelo trabalho, pelo dinheiro, por medo de faltar algo em casa, medo do desemprego. Isso realmente acontece. E bastante. Mas eu não quis ser assim. Para mim, é algo que não deve se abrir mão. É em que acredito.

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