Moreno e o pódio divino

A história do piloto que mal se classificava para as corridas que deu ao Brasil sua última dobradinha da F1

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (Inglaterra) Paul-Henri Cahier/Getty Images
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Você não precisa ter visto nenhuma corrida de Fórmula 1 na vida para conhecer a essa cena: a McLaren branca e vermelha de Ayrton Senna toca a Ferrari de Alain Prost na decisão do campeonato de 1990. Com o abandono dos dois, Senna não apenas conquistava o bicampeonato em cima de seu maior rival, como também se vingava da batida que tinha decidido o título de 1989 a favor de Prost. Disso, todo mundo lembra.

Mas é apenas o começo da história de uma corrida que completa 30 anos nesta quarta-feira (21). E que é o melhor resultado do Brasil na história da Fórmula 1 até hoje. O GP do Japão, disputado em 21 de outubro de 1990, começou com a confirmação do título de Senna e terminou com o que seria a última dobradinha brasileira na história da categoria, com a vitória de Nelson Piquet e o segundo lugar de Roberto Pupo Moreno.

Seria, também, o único pódio de Moreno, e a culminação de uma das histórias mais incríveis dos 70 anos de F1. Mas como um piloto já relativamente veterano, com 31 anos na época, e que mal passava das pré-classificações até a etapa anterior, tinha sido escolhido para substituir Alessandro Nannini, que sofrera um acidente de helicóptero, e depois conseguido acompanhar um tricampeão como Piquet, sem experiência anterior no carro?

Primeiro ato: A equipe que não queria classificar

Moreno disputava a temporada 1990 com a EuroBrun. Era uma equipe familiar, que sempre estava entre os times que lutavam pela pré-classificação —a disputa era para entrar entre os 24 carros que tinham direito a partir para a definição do grid. Quer dizer, essa era a teoria.

O brasileiro descobriu, no GP da Espanha, em setembro daquele ano, outra história. Quando voltava para os boxes a pé, depois de ter ficado sem combustível no meio da pista, acreditava que tinha feito uma volta boa o suficiente para entrar na disputa pela classificação. O sorriso do chefe da equipe, que ele avistou de longe, parecia confirmar isso. Mas ele chegou próximo e o chefe deu um tapinha nas suas costas, demonstrando estar contente por seu piloto ter ficado de fora mais uma vez.

Mas por que uma equipe de F1 estaria contente em perder?

O filho do dono veio falar comigo, já que eu estava quase partindo para cima dele. Ele disse 'Roberto, vou te contar uma coisa: toda vez que você passa da pré-classificação, nós temos que comprar 20 pneus e pagar duas revisões de motor. Se você não passa, a gente usa o mesmo motor por quatro corridas e só precisa de dois jogos de pneus. E o patrocinador paga a mesma coisa, passando ou não. Então, quando você passa para a classificação, você cria um rombo muito grande'."

Depois de ficar sabendo que a sua equipe não tinha aspiração nenhuma de competir, Moreno decidiu que precisava encontrar uma vaga diferente para o ano seguinte. Ele nem imaginava que uma série de eventos o colocaria em uma das melhores equipes do grid apenas três semanas depois.

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Segundo ato: A busca por um emprego para 1991

O piloto brasileiro sabia que havia uma vaga aberta na Brabham, então ligou para Herbie Blash, que comandava o time. "É um cara que nunca fala não para mim. Gosto muito dele como pessoa, mas é meio vaselina: sempre diz o que você quer ouvir", conta Moreno.

Não foi surpresa, então, quando o britânico disse que eles poderiam conversar e que ele poderia ir para a fábrica da equipe, na Inglaterra. "Isso, era a quarta-feira antes do GP do Japão. No dia seguinte, ele me enrolou e falou para eu não ir. Então, na sexta, eu peguei o avião em Mônaco e fui. Liguei para ele do aeroporto em Londres. Ele falou 'poxa, você não deveria ter vindo, mas já que está aqui, posso te encontrar umas 17h'."

Eram 10h da manhã, então Moreno decidiu ligar para outros amigos que tinha na Inglaterra para ver como poderia passar o tempo. Uma das ligações foi para John Barnard, projetista da Benetton com quem Moreno tinha trabalhado quando testou pela Ferrari. "Ele estava precisando de um piloto para sentar em um molde de carro que ele estava fazendo e me convidou para ir na fábrica mais tarde."

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Algumas horas depois, Moreno apareceu na fábrica da Benetton e encontrou Barnard tenso. "Ele me puxou para dentro e disse 'você me ligou às 10h da manhã e aceitou vir fazer um favor para mim. Às 14h, o [piloto italiano Alessandro] Nannini (na foto acima) sofreu um acidente e perdeu o braço. Nós precisamos, por contrato, de dois pilotos no Japão, e eu gostaria de convidar você porque tem um monte de piloto ligando, o Briatore quer colocar algum pagante. Mas você é um cara que eu conheço e quero desenvolver o carro do ano que vem e posso contar com seu conhecimento. Eu caí para trás".

Mas e o contrato com a EuroBrun? "Peguei o telefone e liguei para eles, e eles me contam que tinham decidido não ir para as últimas duas corridas porque tinha acabado o dinheiro. Eu vejo isso como um agradecimento divino pela minha batalha para tentar chegar lá. Passei por situações que eram normais para mim, mas pelas quais muitos pilotos jamais passariam. Esse foi meu chamado para correr para o Japão".

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Terceiro ato: O desafio da primeira corrida do ano

Acostumar-se com o carro e a trabalhar com mecânicos e engenheiros diferentes nem foram o maior problema na adaptação no Japão, ainda que Moreno tenha ficado impressionado com a facilidade de pilotar em comparação com a sua EuroBrun. "Eu meti o pé no freio, o carro parou bem mais do que eu imaginava, e tive que acelerar de novo porque o ponto de freada era lá na frente", lembra. Porém, tendo feito só 67 voltas na primeira corrida, e só participado de pré-classificações em outras 11 etapas, ainda mais agora a bordo de um carro mais forte, o lado físico pesou.

Antes da prova, ele já tinha pedido a ajuda de um amigo fisioterapeuta, que o recomendara, ao invés de algum exercício, decorar o Salmo 23 da Bíblia. Com "o Senhor é meu pastor, e nada me faltará" na cabeça, ele foi para o GP do Japão naquele 21 de outubro, não sem antes dar sorte novamente: seu carro teve um problema já no domingo e o time lhe deu o reserva para correr. Foi Nelson Piquet quem acertou aquela Benetton e Moreno reconhece que "ninguém sabe acertar carro como o Nelson".

Moreno largou em oitavo, ganhou duas posições nos primeiros metros e mais duas logo adiante, justamente após a batida de Senna e Prost. "Eu adorei aquilo porque ganhei duas posições na primeira volta", ri. Na quarta volta, Berger rodou, e logo depois foi Mansell quem abandonou.

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Quarto ato: o pódio divino

Mesmo com os rivais saindo um a um da frente dos dois pilotos da Benetton, Moreno seguia Piquet com dificuldades. "Eu ia bater o carro, com certeza. Ou daria uma rodada, sairia da pista, porque eu estava muito cansado. E, naquela época, você pisava na embreagem e trocava a marcha no sistema H ainda, no caso da Benetton, e era muito cansativo", lembra.

"Eu tinha que segurar o fôlego para mudar a marcha, para frear. Já tinha dado três erradas de alta velocidade. Foi então que comecei a pensar no salmo. Não deu duas curvas e comecei a sentir uma mudança dentro de mim, e comecei a ficar mais alerta, meu cérebro voltou a funcionar rápido, não tinha mais problema de respiração e comecei a pilotar normalmente de novo".

Revigorado, Moreno cruzou a linha de chegada sete segundos atrás de Piquet, no que seria seu único pódio na carreira na F1. "Aquele final de semana, para mim, foi aquele em que pude mostrar, pela primeira vez, perante o público brasileiro, a possibilidade de andar bem e o que eu poderia fazer em um carro de F1. E veio junto com o Senna sendo bicampeão e com o Nelson voltando a ganhar uma corrida."

Na foto do pódio, Moreno aparece à esquerda. Piquet no centro. E Aguri Suzuki, da Larrousse, à direita. Foi também o único pódio do japonês na F1.

Pascal Rondeau/Getty Images

Mas e a manobra de Senna?

O revide do piloto brasileiro em cima do rival Prost causou muita polêmica na época. Mesmo tendo se beneficiado, Moreno não concorda com a versão de Senna de que apenas estava devolvendo na mesma moeda o que o francês tinha feito com ele na decisão de 1989 —na foto acima, Senna e Prost voltam aos boxes após a batida de 1990.

"Acho que ele foi sujo. Não acho que ele precisava ter feito aquilo para ter ganhado o campeonato. Poderia ganhar sem a batida. Ele fez o mesmo com o Martin Brundle na decisão da F3 em Oulton Park: coloca o carro por dentro e espera o outro entrar. Era uma tática dele".

"Foi meio polêmico na época. As pessoas que amam o Senna acham justificável, e as pessoas que são do nosso meio criticaram muito esse fato".

Ron Kuntz/Reuters

Moreno depois do pódio

Moreno conseguiu manter a vaga na Benetton para a temporada 1991, mas não voltou ao pódio. "Meu engenheiro era novo e queria fazer as coisas do jeito dele, mesmo que fosse muito mais fácil basear o nosso acerto no que o Nelson estava fazendo. Ninguém sabe acertar carro tão bem quanto ele", explica o ex-piloto. E, quando um certo Michael Schumacher apareceu, tendo feito uma ótima estreia pela Jordan, e ainda com o apoio da Mercedes, o chefe Flavio Briatore decidiu demitir Moreno e ficar com o alemão.

Ele ainda voltaria à sina da pré-classificação pela Andrea Moda em 92 e voltaria com a Forti Corse em 95, mas sua carreira já estava guinando para a Indy, nos Estados Unidos. Foi lá que Moreno ficou conhecido como o "super sub", ou o "substituto perfeito", em uma carreira longa, de 1994 a 2007 com algumas idas e vindas, um terceiro lugar em Indianápolis em 1996 e duas vitórias em 2000. Radicado em Miami até hoje, Moreno atua como instrutor de pilotos, ajudando na carreira de jovens promessas como Igor Fraga, atualmente na Fórmula 3. Nada mal para quem saiu do Brasil para "aprimorar o inglês" em 1979.

Paul-Henri Cahier/Getty Images Paul-Henri Cahier/Getty Images
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