Feridas abertas

Grupo terrorista Sendero Luminoso foi responsável por milhares de mortes há décadas e ainda divide o Peru

Adriano Wilkson Do UOL, em Lima (Peru) Greg Smith/Corbis via Getty Images

Alerta: esta reportagem contém imagens de conflitos armados e violência.

Considerada uma das organizações terroristas mais cruéis da história, o Sendero Luminoso promoveu uma guerra para tentar chegar ao poder e implantar o comunismo no Peru. Seus métodos incluíam carros-bombas, massacres de povoados inteiros, degolamentos e assassinatos de lideranças rivais.

Desde julho, o país recebe a 18ª edição dos Jogos Pan-americanos, o maior evento esportivo de sua história e se esforça para se mostrar uma sociedade plural, aberta à diversidade étnica e cultural que compõe o seu território. Mas, 27 anos depois da prisão do líder Abimael Guzmán, as feridas abertas pelo grupo continuam sangrando.

Em Lima, o UOL Esporte conversou com sobreviventes dos atentados, parentes de vítimas, ex-policiais e seguidores de Guzmán para entender como o país pretende se recuperar do período mais sombrio de sua história.

Greg Smith/Corbis via Getty Images
Palácio do governo do Peru/AFP

A máquina de matar do terror

Os militantes do "caminho luminoso" eram dissidentes do Partido Comunista Peruano que, diferentemente de outros ramos comunistas dos anos 60, propunham a tomada do poder por meio da luta armada. Seu líder era Abimael Guzmán, um professor de filosofia da Universidade Nacional de San Cristóbal, em Ayacucho, no sul do Peru, que adaptou postulados de Marx, Lênin e de Mao Tse-Tung à realidade peruana.

Em 1980, quando o Peru organizou a primeira eleição presidencial depois de 12 anos de ditadura militar, os senderistas convocaram a população a boicotar a votação. Mais que isso: na véspera do pleito, invadiram um local de votação na pequena cidade de Chusqui, mataram um segurança e queimaram urnas e cédulas de papel. O episódio renderia apenas notas discretas nos jornais de Lima, um pequeno incidente na festa democrática que o país organizava.

Nos anos seguintes, convencendo milhares de jovens campesinos e universitários a pegar em armas para mudar sua realidade social e econômica, o Sendero Luminoso promoveu atentados contra alvos específicos e, depois, contra vilas inteiras. Usou carros-bombas e apagões como métodos para submeter populações. Assassinou dirigentes sindicais de esquerda que discordavam de suas ações. A reação do Estado peruano, sob o comando de três presidentes diferentes, também levou a mortes de inocentes.

Uma comissão da verdade calculou, em 2003, que a guerra entre o Sendero e as forças de repressão tenha custado 69 mil vidas em todo o país. Apenas pelas mãos do Sendero morreram mais de 31 mil pessoas, segundo esses dados. Mas isso é só uma estatística. Muitos corpos ainda não foram encontrados. O número real talvez nunca seja conhecido.

Oscar Medrano/AP Oscar Medrano/AP

O terror e o futebol

Quando a violência armada encontrou o esporte no Peru

AFP

Uma fuga na final da Copa (1990)

Em 8 de julho de 1990, integrantes do MRTA, que também produziam atentados no Peru, se preparavam para uma fuga cinematográfica. A organização cavou um túnel a 15 metros abaixo do solo para resgatar 47 presos, incluindo o líder Victor Polay. A preparação para a fuga aconteceu enquanto a Alemanha vencia a Argentina pela final da Copa, na Itália, ocasião em que a segurança da prisão Miguel Castro Castro estava mais distraída.

Deportivo Municipal

Uma bomba no vestiário (1991)

Em 9 de maio de 1991, os jogadores do Deportivo Municipal, de Lima, encontraram o que parecia ser um desodorante aerossol na janela do vestiário. O estádio em que treinavam ficava na frente do quartel San Martin, que vinha sofrendo ameaças de ataques. Quando resolveram chutar a lata como uma bola, uma explosão matou o lateral direito Hector Mathey e feriu outros três. Até hoje não se sabe quem plantou a bomba.

El Peruano/AP

Um clássico esquecível (1992)

Em 12 de setembro de 1992, o Universitário venceu o Alianza Lima no clássico mais pegado do país. Os jornais já tinham preparado a notícia para suas primeiras páginas, mas não contavam com um novo fato. A 4 km do estádio, Abimael Guzmán seria capturado, o que e fez o futebol ficar em segundo plano no noticiário. Informes policiais relataram que a TV do escritório de Guzmán estava sintonizada no canal que transmitia a partida em videoteipe.

Oscar Medrano/AP Oscar Medrano/AP

O terrorismo bate à porta

No distrito de Villa El Salvador, onde três décadas depois se ergueria a Vila Pan-americana dos Jogos de Lima, as irmãs Martha e Maria Elena Moyano costumavam passar os dias na quadra de vôlei. Martha, seis anos mais nova, se atirava ao chão para ver a irmã sacar, saltar e atacar - ou apanhar dos outros irmãos se o time da família perdesse.

Se sobrava aos homens Moyano competitividade esportiva, às mulheres coube organizar a vida social da comunidade, que no começo dos anos 80 tinha cerca de 30 mil habitantes. Maria Elena se tornou voluntária no restaurante popular e, para se sustentar, trabalhava como professora nas escolas infantis do bairro.

Logo, fundou uma associação de mulheres para lutar por melhorias em Villa El Salvador e conseguiu articular com o governo peruano um programa para garantir a cada criança um copo de leite diário. Sua personalidade agregadora e a capacidade de conciliar os opostos transformou aquela mulher alta, magra, negra e de cabelo curto em uma ativista conhecida no distrito, cuja população crescia desordenadamente. "Era um animal político, nasceu com a vocação de estabelecer laços entre quem estava a sua volta", conta Martha.

À frente da associação de mulheres e tendo sido premiada pelo rei da Espanha por seu trabalho comunitário, Maria Elena não teve dificuldade de se eleger como "tenente alcaidessa" de Villa El Salvador, cargo que equivaleria ao de vice-prefeito.

Era 1989 e ideias radicais de um grupo político que nascera vinte anos antes para virar o país do avesso já haviam chegado por lá. Bandeiras da foice e do martelo apareceram nas montanhas que cercam o bairro e adolescentes começaram a falar em fazer a revolução. Desprezando qualquer tentativa de conciliação com o governo, o Partido Comunista Peruano - Sendero Luminoso tentava tomar o poder pelas armas.

Quando Maria Elena soube que um dos dirigentes do programa "Copo de Leite" havia sido morto por militantes do Sendero, começou a fazer discursos inflamados contra o radicalismo do grupo. Um panfleto assinado por ela postulava que mudanças sociais não viriam pela violência. A reação veio na forma de ameaças. "Eles escreviam nas paredes da nossa casa, com sangue de galinha, coisas como 'Cadela', 'Vai morrer'", relembra Martha, hoje com 54 anos.

O terrorismo batia à porta das irmãs Moyano.

Frédéric Soltan/Corbis via Getty Images Frédéric Soltan/Corbis via Getty Images

Em fevereiro de 1992, Maria Elena desafiou um toque de recolher imposto pelos terroristas na cidade. "Eles diziam que matariam quem saísse à rua", conta Martha. "E matavam mesmo." Maria Elena, que a essa altura vivia escondida por causa das ameaças, foi a uma reunião de líderes sindicais e saiu de lá à frente de uma passeata pela paz em Villa El Salvador. As emissoras de TV mostraram a ativista de camisa amarela, liderando um grupo de sindicalistas que levavam bandeiras brancas na mão. O Sendero Luminoso não permitiria o ato passar impune.

No dia seguinte, após levar seus dois filhos à praia, Maria Elena decidiu participar de uma "pollada", uma festa para arrecadar fundos para uma entidade local.

Martha estava lá. Mas dessa noite, a partir desse momento, ela esqueceu de quase tudo.

Martha lembra de um apagão e de alguém gritando "Pegaram uma negra!" Ela lembra de ir à casa de um amigo que tinha um dos poucos telefones da cidade, discar números de conhecidos e ouvir sempre a mesma frase: "Eu já sei, eu já sei."

Ela lembra de ter sido levada a um apartamento em Lima e de encontrar os filhos de Maria Elena, atônitos. Eles a confundiram com a mãe. Lembra também do sangue e dos pedaços de carne e cabelo que eles tinham pelo corpo. E de saber que, além de terem matado sua irmã, os senderistas haviam amarrado dinamite a seu corpo e acendido o pavio na frente de seus filhos. Os garotos tinham 8 e 10 anos na época.

Maria Elena tinha 33.

"Eles não conseguiam fazer sentido daquilo. Me diziam que a mão da mãe tinha caído na cabeça deles e ao mesmo tempo perguntavam quando ela ia voltar."

Milhares de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre da ativista. "Não contentes com a barbárie, ainda fizeram chegar à minha família durante o velório fotos do que sobrou de Maria Elena. Entregaram à minha mãe uma bolsa com restos dela. Faziam isso para gerar terror", conta a irmã.

O assassinato de Maria Elena Moyano mostrou ao mundo a crueldade na atuação do Sendero e provocou uma onda de indignação na população de Lima. Mas o grupo ainda tinha planos a se desenrolar na capital nos meses seguintes.

Arquivo/Cantuta

Kike Ortiz, o boleiro interrompido

Quando decidiram deixar a pequena cidade de Chachapoyas, na Amazônia peruana, os irmãos Luis Enrique e Gisela Ortiz não imaginavam o mundo que se abriria diante deles na capital do país. Luís Enrique, chamado de Kike pela irmã, depois de anos atuando pelo Sachapuyos, o time local, escolheu cursar educação física sonhando em um dia virar treinador de futebol.

Gisela, um ano mais nova, foi cursar letras e literatura. Como o Peru vivia uma crise econômica, e os irmãos não vinham de família rica, escolheram a Universidade La Cantuta, a 40 km de Lima, porque ela oferecia alojamento e alimentação a seus estudantes. A virada dos anos 1980 para os 90 foi de agitação política no Peru, e os atentados terroristas do Sendero Luminoso saíam do campo para assombrar a vida das cidades.

Como em muitas universidades, La Cantuta estava cheia de militantes e grupos de esquerda. Em seu primeiro ano, Kike se filiou ao Pátria Vermelha, uma corrente comunista legal que havia participado das eleições democráticas da última década e se opunha às ações violentas dos senderistas. "Mas ele logo se desencantou e saiu", afirma Gisela. "Nossa atuação na universidade passou a ser nos comitês internos que demandavam melhorias para o cotidiano estudantil."

Juntos, os irmãos pleiteavam melhorias nos restaurantes universitários, atendimento médico aos estudantes e regularidade no abastecimento de água, mas as ações vinham sendo limitadas desde que o presidente Alberto Fujimori decidira intervir nas universidades com o objetivo de combater a subversão.

Lima nessa época vivia sob a ameaça de constantes apagões, a explosão de carros-bombas e o assassinato de autoridades e líderes sindicais promovidos pelos Sendero Luminoso e pelo MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru). O cerco aos universitários tinha fechado desde que o governo e a população passaram a associá-los aos terroristas. "Policiais paravam nossos ônibus e pediam nossos documentos", lembra Gisela. "Se vissem nossa carteira de La Cantuta já nos chamavam de terrucos [terroristas]."

Martin Mejia/AP

E então, no dia 16 de julho de 1992, dois carros-bombas com 750 kg de dinamite explodiram no meio da rua Tarata, no bairro cosmopolita de Miraflores, em Lima. A detonação provocou a morte de 25 pessoas e deixou mais de 200 feridas, entre elas uma menina de cinco anos que ajudava a mãe no trabalho e perdeu a perna.

As cenas de destruição chocaram a capital do país e criaram uma onda de repulsa popular contra o Sendero Luminoso. E, em alguma medida, contra os estudantes universitários de instituições como a La Cantuta.

Dois dias depois do atentado na rua Tarata, o Grupo Colina, uma unidade militar até então desconhecida, entrou nos alojamentos da universidade para dar uma resposta aos terrucos que eles acreditavam viver ali. Levaram embora um professor de pedagogia chamado Hugo Muñoz, que havia protagonizado embates contra a intervenção militar na universidade, e mais nove estudantes.

Gisela estava em Lima na casa de uma tia quando a namorada de Kike avisou que ele havia sido preso em uma operação policial na universidade. Ela saiu a procurá-lo na reitoria e nas delegacias aonde se costumava levar suspeitos de terrorismo, em hospitais e necrotérios, mas não havia sinal dele.

Quando ela voltou para casa no Amazonas e seus pais começaram a perguntar onde estava Kike e por que ele havia parado de lhes escrever cartas, ela teve que contar a verdade, e a verdade era que o exército havia levado o seu irmão e ela não sabia onde mais procurá-lo.

Prefiro que esteja morto do que sendo torturado. Que nos devolvam morto e não doente ou louco.

disse o pai de Kike, segundo a memória de Gisela

Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL
Claudia Daut/Reuters

A família só foi ver Kike novamente em outubro de 1993, mais de um ano depois de seu desaparecimento. A investigação do jornalista Edmundo Cruz, da revista "Si", levou à descoberta de um fosso clandestino no qual estava o corpo do estudante, o único que ainda estava preservado - os outros nove haviam sido queimados em outro fosso.

Em 2009, Alberto Fujimori, responsabilizado pelas ações do Grupo Colina, foi condenado a 25 anos de prisão pela morte de 25 pessoas, entre elas os estudantes de La Cantuta. O ex-ditador hoje cumpre pena em Lima.

Gisela Ortiz, que se tornou ativista pelos direitos humanos, sentiu então que a justiça por seu irmão havia sido feita. "Quando saí de Chachapoyas, não tinha ideia da violência política que tinha tomado conta do país. Com o desaparecimento de meu irmão, pude conhecer outros familiares de vítimas do terrorismo de grupos como o Sendero e de vítimas do Estado", disse ela. "Não há nenhuma diferença entre as nossas dores."

Anibal Solimano/Reuters Anibal Solimano/Reuters

Amor nos tempos de cólera

Em setembro de 1992, Abimael Guzmán era um fantasma que habitava os pensamentos dos peruanos. Ninguém sabia se o líder da "organização terrorista mais cruel do mundo", como descrevia a imprensa internacional na época, estava vivo ou morto. E se estava vivo, onde?

No dia 12 de setembro, Ana Cecília Garzón estava ao lado do namorado Júlio Becerra em um bar em uma área residencial de Surquillo, em Lima. Quem visse o casal talvez estranhasse que eles estivessem há mais de quatro horas observando atentamente a movimentação no sobrado ao lado do bar. Mas mesmo quem olhasse muito atentamente não perceberia que por baixo da roupa, Ana Cecilia e Júlio traziam microfones com os quais se comunicavam com a equipe do Grupo Especial de Inteligência (Gein).

Nos últimos três anos de trabalho intenso, Ana Cecília era chamada de "Gaivota" dentro do Gein, enquanto Júlio era "Esquilo". Os colegas não eram um casal de verdade, mas estavam disfarçados ali para aquela que no dia seguinte seria chamada pelos jornais peruanos de "a captura do século."

Quando Gaivota e Esquilo perceberam a entrada de um casal no sobrado, descobriram que havia chegado a hora de agir. Esquilo os abordou e enfrentou resistência. Na confusão, Gaivota deu um tiro para o alto que assustou o casal e permitiu aos agentes disfarçados invadir a casa. No segundo andar, Esquilo teve uma surpresa.

O Gein sabia que naquele sobrado estavam escondidos dirigentes importantes do Sendero, mas não suspeitava que aquele fosse o esconderijo do próprio Abimael Guzmán. O "presidente Gonzalo" não ofereceu resistência e foi preso em seu escritório.

"Nos anos 80, a ideia era que o melhor terrorista era o terrorista morto, ao passo que nós pensávamos que era preciso vencer sem lutar. Era preciso primeiro investigar e depois prender", disse Benedicto Jimenez, chefe do Gein e responsável pela estratégia da "Operação Victoria", que capturou Guzmán.

O ditador Alberto Fujimori se superou ao explorar politicamente a prisão do cabeça do grupo terrorista. Convocou as emissoras de TV, vestiu Guzmán com um uniforme cenográfico nunca utilizado por prisioneiros no Peru e o expôs em uma jaula à audiência do país. Na frente das câmeras, o líder terrorista cantou o hino da internacional socialista e disse que sua luta ainda não havia acabado.

Para os agentes Gaivota e Esquilo a história ainda teve um epílogo. Seis meses depois de protagonizarem o cerco a Guzmán, Ana Cecília e Júlio se casaram na vida real. Sua história virou romance e filme. "Foi um período de calvário, de incerteza. Minha família temia pela minha vida e sabia que eu podia morrer. Mas, como peruana, eu sabia que era isso que precisava fazer", conta a policial aposentada.

Hoje Ana Cecília roda o país fazendo relatos do período de violência a crianças e adolescentes no programa "Terrorismo Nunca Más" do Congresso peruano.

Quando Abimael Guzmán cai, a organização toma um choque do qual não é possível se recuperar. Sua captura economizou muito sangue e até a soberania do Peru.

Gustavo Gorrit, jornalista, autor de "Sendero: Historia de la guerra milenaria en el Perú"

Nos 80, dizia-se que no Peru só funcionavam duas coisas: a seleção de vôlei e o Sendero. Era um grupo pequeno, mas tinham uma máquina de guerra. Como chegaram tão longe, é um mistério para mim.

Orin Starn, antropólogo, autor de "The Shining Path: Love, Madness, and Revolution in the Andes"

Adriano Wilkson/UOL

Guzmán desistiu de violência e quer perdão, diz seguidor

Mesmo 27 anos após a prisão de seu líder, o Sendero Luminoso continua a mobilizar parte da discussão política no Peru. Em um escritório de um prédio antigo no centro de Lima, o advogado Alfredo Crespo (foto acima) se tornou figura pública e o principal defensor de Abimael Guzmán, que hoje tem 84 anos.

Em 2009, ele foi um dos fundadores do Movadef (Movimento para Anistia e Direitos Fundamentais), uma organização que tentava se tornar um partido político para participar das eleições do ano seguinte. Com membros processados e condenados por terrorismo, o grupo passou a ser chamado de "fachada legal" dos senderistas.

Com base em leis antiterroristas criadas durante a ditadura de Fujimori, o Estado peruano vetou a inscrição eleitoral do Movadef, que não aceitou tirar de seu estatuto a referência ao "pensamento Gonzalo" como eixo ideológico. O "pensamento Gonzalo" é como se chama o conjunto de ideias e métodos de Abimael Guzmán.

"Não propomos o uso da violência como arma política", afirmou o advogado em uma entrevista de uma hora em seu escritório. "Quando formamos o Movadef, tomamos algumas ideias do doutor Abimael Guzman, mas o 'pensamento Gonzalo' de hoje não é o mesmo adotado pelo Partido Comunista Peruano durante a guerra. O pensamento é luta política, mas sem guerra."

Desde 1984, Crespo atua como advogado de militantes acusados de terrorismo. Apesar de nunca ter pegado em armas, ofereceu com seu trabalho um suporte importante aos membros do partido que se viam em problemas com a Justiça. Quando Guzmán foi preso, Crespo esteve entre os primeiros a lhe prestar auxílio jurídico.

Até que em 1993, o próprio advogado foi preso, processado e condenado a prisão perpétua por terrorismo. "Como eu defendia presos políticos, fui acusado de pertencer à organização, mas nunca militei nela", afirma. O advogado conseguiu reverter sua pena perpétua e saiu da cadeia após 13 anos.

Ele contesta que o Sendero Luminoso tenha sido uma organização terrorista, como classificaram a ONU, os Estados Unidos e a União Europeia. Abimael Guzmán, segundo ele, hoje reconhece que houve "excessos" por parte de seus comandados. Nos tribunais que julgaram a cúpula do Sendero, Crespo sempre defendeu a tese segundo a qual os líderes da organização jamais deram o aval ou concordaram com massacres e atentados contra a população civil.

"O que houve foi uma guerra popular. Não foi terrorismo. O terrorismo é o uso exacerbado da violência com o fim de aterrorizar a população, fazer massacres que causem terror e por esse terror dominar", disse o advogado. "Na guerra, houve, sim, fatos que poderiam se encaixar como terrorismo, mas não foram fatos ordenados pelo comitê central. Foram excessos dos que executavam."

Uma anistia geral vai implicar que as partes assumam sua responsabilidade. O doutor Guzmán disse que sua organização deve fazer uma autocritica diante do povo, pelos erros, excessos e limitações. Mas ele quer que haja uma disposição do Estado de fazer o mesmo.

Alfredo Crespo, advogado e seguidor de Abimael Guzmán

Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL

Famílias perdem direito de velar seus mortos

O cemitério repousa no alto de um monte envolto em neblina. Aqui, as velas que homenageiam os mortos estão protegidas por pedaços de garrafas pet e as sepulturas se espalham pela terra de forma desordenada. Barracos de madeirite se levantam na montanha íngreme e os cachorros passeiam livremente entre as urnas funerárias e as casas da vizinhança. Não há muros. No distrito de Comas, ao norte de Lima, não há fronteira visível entre vivos e mortos.

No final de um dos poucos caminhos transitáveis do cemitério, Miguel Canales aponta os destroços do mausoléu destruído no final de 2018. As pedras se misturam com arame retorcido e a terra escura do monte. Miguel é o presidente da Afadevig, Associação de Familiares de Desaparecidos e Vítimas Genocídio, que havia construído o mausoléu para homenagear a memória de oito homens mortos pela ação da Marinha em 1986 em "El Frotón".

"El Frotón" era uma das prisões em Lima aonde se levavam os acusados de terrorismo. Em 18 de junho daquele ano, presos de lá e de outras três cadeia de Lima se rebelaram e o governo autorizou o uso da Força para retomá-las. 133 custodiados morreram.

As famílias tiveram que esperar mais de três décadas para ter os restos de volta. No enterro, milhares de familiares e simpatizantes prestaram homenagem aos mortos e repetiram cânticos entoados pelos subversivos nos 80. A cena provocou o rechaço em parte da população, que viu ali um gesto de apologia ao terrorismo, crime que pode render até 15 anos de cadeia no Peru.

O Congresso então criou uma lei para permitir a destruição do mausoléu, e os restos mortais foram espalhados pelo cemitério.
"Todos estavam presos acusados de ser terroristas, mas nenhum deles tinham sido sentenciado", conta Miguel. "Um deles já tinha ordem de liberdade, mas não o deixaram sair. O Estado os identifica como terroristas e, como terroristas, eles não têm direito nem a ser enterrados."

Para evitar novas reuniões, o poder municipal decidiu espalhar os restos mortais em sepulturas de difícil acesso no cemitério. "A maioria dos familiares são pessoas de idade. Como eles vão conseguir chegar aqui para homenagear seus parentes?", questiona Miguel.

Ele próprio é parente de um desaparecido. Seu irmão, Carlos Alberto Canales Sermeño, sumiu de Villa El Salvador aos 16 anos e até hoje nunca foi encontrado. Miguel acredita que ele tenha sido morto e incinerado em um forno crematório clandestino mantido pelo aparato de repressão ao terrorismo.

Mesmo 27 anos depois da prisão do líder do Sendero, o cemitério de Comas continua sendo o cenário de histórias de terror que se desenrolam até hoje. Histórias como a da mãe que morreu no mesmo dia em que enterrou o filho, depois de 32 anos buscando por ele. Ou da mulher que foi demitida por participar do velório tardio do pai e ser considerada no trabalho "filha de terrorista".

A violência fanática do Sendero e a reação descontrolada do Estado peruano não tiraram apenas vidas inocentes, mas roubaram a dignidade dos mortos. O túmulo da ativista Maria Elena Moyano, assassinada pelo Sendero em 1992, foi bombardeado um ano depois de sua morte. O mausoléu de Kike Ortiz e seus colegas mortos pelo Grupo Colina não pôde ter uma escultura oferecida por um artista que queria homenageá-los, sob risco de ser considerado apologia ao terrorismo.

Suas irmãs, Gisela Ortiz e Martha Moyana, que os perderam no mesmo ano, estão em campos políticos diferentes, não se entendem até hoje e trocam acusações. Martha é vereadora em Lima e fujimorista aguerrida. Gisela Ortiz denuncia os atos Fujimori, que ela considera criminosos.
Seguidores de Abimael Guzmán cobram do Estado o reconhecimento de seus excessos e pedem anistia geral, para que os agentes que produziram violência extrema sigam suas vidas. O Estado diz que não negocia com terroristas.

Talvez leve anos para o Peru se recuperar da tragédia que o dividiu. Talvez isso nunca aconteça.

Cris Bouroncle/AFP Cris Bouroncle/AFP

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