Herança Maldita

Sede da Copa América, Cuiabá convive com obras milionárias da Copa de 2014 inacabadas e abandonadas

Bruno Braz Do UOL, em Cuiabá Aiuri Rebello/UOL

"Era melhor eu ter vindo com uma arma". Este foi o comentário do motorista de aplicativo à reportagem do UOL Esporte, misturando bom humor e receio quando chegou ao abandonado terreno do Centro Oficial de Treinamento Barra do Pari, previsto para um dia se transformar em pequeno estádio que receberia treinamentos das seleções no Mundial de 2014 em Cuiabá (MT). Ao invés de um complexo esportivo, o que se vê é um local tomado por bichos peçonhentos, um denso matagal, ferros retorcidos e estruturas abandonadas à própria sorte, que sofreram constantes furtos ao longo do tempo.

A cerca de dez quilômetros dali e também num cenário meio "The Walking Dead" (série sobre um apocalipse zumbi) se encontra outro rastro da "herança maldita" da Copa do Mundo, e o que mais trouxe prejuízo e revolta: os incontáveis trens do fracassado projeto de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), prometido para ser entregue em 2013 e que, ao custo de mais de R$ 1 bilhão até aqui e sob denúncias de corrupção, não chegou nem a 50% de conclusão, não sem antes de transformar a capital mato-grossense em um verdadeiro canteiro de obras, com suas estações e trilhos inacabados cortando a gigante avenida.

Passados sete anos, muito se fala e se promete, em meio a projetos retomados, redefinidos, em estágio inicial de execução e alguns poucos concluídos. No meio disso, Cuiabá volta a abrir suas portas para o futebol mundial sendo sede da Copa América, longe do "glamour" de outrora, e com a população calejada das literais cicatrizes urbanas deixadas pelo Mundial da Fifa.

As "heranças" da Copa do Mundo de 2014 em Cuiabá

  • COT Barra do Pari

    Planejado para atender treinos das seleções no Mundial de 2014, miniestádio foi abandonado à própria sorte muito antes de ficar pronto.

    Imagem: Bruno Braz / UOL Esporte
  • VLT

    O projeto do VLT já custou mais de R$ 1 bilhão e não ficou nem 50% pronto. Seus trens estão parados em um terreno ao lado do aeroporto.

    Imagem: Bruno Braz / UOL Esporte
  • Hospital Universitário Júlio Muller

    Obras foram paralisadas com apenas 9% de conclusão. Em 2020, o Governo emitiu ordem para retomá-las, mas elas ainda estão na "fase de projetos".

    Imagem: Secom-MT
  • Córrego da Avenida 8 de Abril

    Segundo a assessoria do Governo, 98% das obras estão executadas, mas ao se passar pela avenida ainda se encontram reparos no córrego.

    Imagem: Bruno Braz / UOL Esporte
  • Trincheira Jurumirim

    Foram diagnosticadas falhas no pavimento na obra original, o que fez com que o local passasse por novos reparos. E estes ainda estão em fase inicial.

    Imagem: Secom MT
  • COT da UFMT

    O Centro Olímpico de Treinamento da Universidade Federal de Mato Grosso ficou pronto somente ano passado, seis anos após a Copa.

    Imagem: Marcos Vergueiro/Secom-MT
  • Duplicação da Avenida Parque do Barbado

    Em janeiro de 2020 o Governo concluiu as obras de duplicação da Avenida Parque do Barbado.

    Imagem: Secom-MT
  • Arena Pantanal

    Inaugurada pouco antes do Mundial de 2014, Arena Pantanal passa por reformas que foram paralisadas por conta da disputa da Copa América.

    Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images
Bruno Braz / UOL Esporte
Arquibancada e tribunas inacabadas em estádio que deveria atender as seleções na Copa do Mundo de 2014

Governo quer entregar terreno de miniestádio para Secretaria de Segurança Pública

O inóspito e perigoso terreno do fracassado Centro Oficial de Treinamento Barra do Pari, projetado como local de treinamento das seleções que disputariam a Copa do Mundo de 2014, teria uma capacidade inicial de 10 mil pessoas que foi reduzida para 3 mil. Orçado em R$ 31,7 milhões, ele já teve um gasto de R$ 21 milhões, mas está completamente abandonado, com peças furtadas e tomado pelo matagal e por animais.

O atual Governo do Estado do Mato Grosso, porém, garante ter planos para ele, não mais esportivos. Segundo a assessoria de imprensa, a ideia é fazer dali uma "Academia Integrada da Segurança Pública":

"A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística está buscando, junto à empresa responsável pela construção do COT, um acordo administrativo para retomar a obra, que estava com 70% dos serviços executados na ocasião da paralisação. O objetivo é concluí-la para, posteriormente, repassar à Secretaria de Estado de Segurança Pública para abrigar uma Academia Integrada da Segurança Pública".

O projeto inicial do COT da Barra do Pari previa, além do estádio, salas de imprensa, cabine de transmissão, vestiários, camarotes, lounge, sala de musculação, sala de fisioterapia, alojamentos, lavanderia, cozinha, refeitório, restaurante e estacionamento com 250 vagas.

Bruno Braz / UOL Esporte
Incontáves vagões do projeto VLT inutilizados em terreno ao lado do aeroporto: obra já custou mais de R$ 1 bilhão

Projeto do VLT gasta mais de R$ 1 bi, é alvo de denúncias de corrupção e sofre "repaginada"

Este é, sem dúvida alguma, o projeto que mais gera revolta na população de Cuiabá. O VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) foi projetado inicialmente para ficar pronto em 2013 orçado em R$ 1,4 bilhão. Porém, passados sete anos, somente 50% das obras ficaram prontas, já com um gasto de mais de R$ 1 bilhão.

Em uma rua por trás do aeroporto internacional Marechal Rondon você encontra o incontável número de trens abandonados em um terreno. Percorrendo os quilômetros da longa Avenida da FEB, se depara com um extenso canteiro de obras daquele que deveria ser o corredor para o sistema de transporte. Trilhos, vigas e estações inacabadas dão o triste tom à região.

Segundo avaliação do atual Governo do Estado do Mato Grosso, para o VLT ficar pronto seria necessário gastar mais R$ 1 bilhão, o que fez com que, ano passado, o projeto fosse alterado, substituindo os Veículos Leves sobre Trilhos pelo BRT (Bus Rapid Transit). Ou seja, trocariam os trens pelos ônibus. A justificativa é de que sairá mais barato tanto para os cofres públicos como para a população.

Secom-MT
Promessa do Governo do Estado do Mato Grosso é a de concluir as obras do Hospital Universitário Júlio Muller

Hospital universitário praticamente não saiu do papel

A construção do hospital Universitário Júlio Muller foi iniciada com o objetivo de atender a eventual demanda ocasionada pelos jogos da Copa do Mundo de 2014, mas foi paralisada com apenas 9% de execução e, posteriormente, teve o contrato foi rescindido pelo não cumprimento do cronograma.

Seis anos depois, em 2020, o Governo emitiu a ordem para a retomada das obras e promete entregar o maior hospital do Estado, que atenderá a população e também servirá para a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Em contato com o UOL Esporte, a assessoria do governo informou que a obra ainda está na "fase de projetos":

"Sobre os projetos, até o momento, foi apresentado o mapeamento da estrutura antiga (escaneamento de toda estrutura existente, laudos estruturais, levantamento topográfico e patologias no concreto). Também foi apresentada a proposta de nova implantação do hospital, visto a necessidade de adequação dos blocos em relação ao previsto pela UFMT".

Segundo o Governo, o início das obras acontecerá em agosto deste ano:

"Atualmente está em elaboração o projeto do novo layout interno operacional e novas definições arquitetônicas, em razão das mudanças dos blocos. Já a obra em si tem previsão de início no mês de agosto, a partir da aprovação das iniciais dos projetos. Apesar disso, já foi realizada a limpeza total de toda a obra e está na fase de instalação dos demais canteiros".

A "Herança Maldita" em números

  • Mais de R$ 1 bilhão já gastos com VLT

    Orçado em R$ 1,4 bilhão para ficar pronto em 2013, o VLT já teve gastos de mais de R$ 1 bilhão e parou com 50% de execução.

  • Mais de R$ 21 milhões com mini estádio

    O Centro Oficial de Treinamento Barra do Pari já teve um gasto de mais de R$ 21 milhões, nunca ficou pronto e terreno está abandonado.

  • Mais de R$ 207 milhões para concluir hospital

    Em novembro de 2020 o consórcio Jota Ele?MBM venceu a licitação e será o responsável por concluir a obra do Hospital Júlio Müller com orçamento de mais de R$ 207 milhões.

  • Avenida custou R$ 29,5 milhões

    A obra de duplicação da Avenida Parque do Barbado foi retomada e concluída ano passado ao custo de R$ 29,5 milhões, segundo o Governo.

Bruno Braz / UOL Esporte
Cidadão em situação de rua se abriga em obra do Córrego da Avenida 8 de Abril, em Cuiabá

Obras de mobilidade urbana avançam

Antes tarde do que nunca, algumas obras de mobilidade urbana avançaram após sete anos. São elas a do Córrego da Avenida 8 de Abril e da Trincheira Jurumirim, apesar de alguns reparos ainda estarem sendo feitos.

"A obra [do Córrego da Avenida 8 de Abril] segue em andamento, com a execução dos serviços de implantação de mureta de proteção do córrego e da rotatória na Avenida Barão de Melgaço, além da limpeza da obra. Contratualmente, a obra está na reta final, com 98% dos serviços executados. O prazo do término do contrato é neste mês de junho. Contudo, a empresa vai continuar realizando os reparos já indicados pela equipe de fiscalização da Sinfra para a entrega definitiva da obra ao Estado", informou a assessoria do Governo.

Sobre a Trincheira do Jurumim, foram diagnosticadas falhas no pavimento na obra original, o que fez com que o local passasse por novos reparos. E estes ainda estão em fase inicial, embora o trecho já esteja liberado para o tráfego de veículos.

"A obra foi iniciada no último dia 9. Então, está bem no começo, com o início do serviço de escavação. O projeto de restauração do pavimento e recuperação da estrutura de concreto da Trincheira Jurumirim prevê a execução de obras e serviços para corrigir as patologias no pavimento ao longo da extensão da trincheira (parte inferior), entre os bairros Jardim Leblon e Bosque da Saúde, na Avenida Miguel Sutil. Também será feita a correção das infiltrações e de problemas com as juntas de dilatação nas cortinas da trincheira, além da recuperação das pistas marginais (parte superior)", destacou a assessoria.

Marcos Vergueiro/Secom-MT

Duas obras foram retomadas e ficaram prontas

Duas obras projetadas para a Copa do Mundo de 2014 foram retomadas e conseguiram ser concluídas em 2020 após quatro anos paradas: o Centro Olímpico de Treinamento da Universidade Federal de Mato Grosso e a duplicação da Avenida Parque do Barbado.

O complexo esportivo contou com investimentos de R$ 17,1 milhões e possui uma pista de atletismo aos moldes do padrão internacional estabelecido pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAT), um campo de futebol, uma arquibancada com capacidade para receber até 1.500 pessoas, dois vestiários climatizados, salas para comissão técnica e departamento médico, oito banheiros, elevadores, seis salas de aula, quatro camarotes, um espaço para lanchonete, sala antidoping, auditório, entre outros.

Já a avenida recebeu um investimento de pouco mais de R$ 29,5 milhões e ficou pronta em janeiro de 2020. Além da duplicação da via, também foram realizadas a implantações de galerias no Córrego do Barbado e de rotatória, sinalização, iluminação e paisagismo.

Bruno Braz / UOL Esporte
Maquinário para terraplanagem se encontra no pátio do complexo da Arena Pantanal durante a Copa América

Arena tem reforma interrompida por Copa América e pátio vira "estacionamento" de maquinário

Entregue pouco antes da Copa do Mundo de 2014, a Arena Pantanal passa por reformas que tiveram que ser interrompidas por conta da disputa da Copa América. O trabalho é de pequenos reparos e já foram feitos nos setores Oeste, Sul e Norte, faltando apenas os camarotes do estádio.

Um outro ponto que chama a atenção para quem chega no estádio durante a disputa da competição continental são as dezenas de maquinários para terraplanagem que se encontram estacionados no pátio do ginásio Professor Aecim Tocantins, que integra o complexo da Arena Pantanal.

Eles estão há cerca de um mês e a ideia é a de que sejam utilizados em manutenção de estradas não-pavimentadas em todo o Estado do Mato Grosso.

Engenheira civil da Secretaria de Infraestrutura e Logística (Sinfra), Patrícia Lima detalhou no dia 11 de maio, no site oficial do Governo do MT, o maquinário e o investimento:

"Do lote de 175 máquinas e outros equipamentos adquiridos, 100 são moto-niveladoras, 30 pás-carregadeiras, 30 escavadeiras hidráulicas e 15 pranchas. Foram investidos R$ 94 milhões na aquisição do maquinário com recursos oriundos do Programa de Financiamento à Infraestrutura e ao Saneamento".

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