Desmistificando Garrincha

Ruy Castro desvenda os mitos que envolvem Garrincha, um dos maiores jogadores do futebol brasileiro

Beatriz Cesarini, Luis Augusto Simon e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo ullstein bild via Getty Images

Mané Garrincha foi um dos maiores jogadores do futebol brasileiro. Mas o que faz dele um gênio? O UOL convidou Ruy Castro, autor de "Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha", para falar sobre a história do bicampeão mundial, marcada por mitos e verdades que moldaram a imagem que você deve conhecer.

Faz parte do mito o relacionamento midiático de Garrincha com Elza Soares, que morreu no último 20 de janeiro, exatamente 39 anos depois da morte do "Anjo de Pernas Tortas". Ao contrário do que pensavam na época, a cantora lutou com unhas e dentes contra os problemas que Mané tinha com o álcool, mas não conseguiu evitar o pior — muito porque o próprio jogador não fez tanto esforço para deixar o álcool de lado.

E não para por aí: foi criado o mito que Garrincha era um homem ingênuo, burro e até imaturo. Não era bem assim. Ruy Castro conta que o folclore foi criado por um jornalista que acompanhava o jogador nos anos 60. Essas e outras fábulas sobre o craque foram desvendadas na edição de hoje de UOL Entrevista -Esporte, que você pode assistir e ler agora.

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Veja a entrevista completa

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Além do drible

Garrincha tinha as pernas tortas. Uma era aberta, a outra fechada e a diferença de tamanho entre elas era de quase cinco centímetros. Ruy Castro lembra que ele era considerado "quase um aleijado". Pensavam que ele não seria capaz de jogar futebol. Pelo contrário. Quando ele parava a bola, jogava o corpo para um lado e arrancava com a bola na outra direção, não tinha quem o parasse.

Essa finta foi uma invenção de Mané. Mas ele tinha outras artimanhas para passar por seus marcadores. "Essa história de que ele só tinha o drible pela direita é uma das coisas românticas do jornalista Mário Filho. Qualquer um que visse o Garrincha jogar sabia que não era verdade. O repertório dele era gigantesco. O Joel, ponta direita do Flamengo, barrado [na seleção] pelo Garrincha, falou que viu ele fazer jogadas que nunca tinha visto alguém fazer", disse Ruy Castro.

"Então, por que a gente acha que ele só tinha a jogada de jogar a bola para a frente depois de fingir que vai para um lado e pegar a bola? Primeiro, porque a quantidade de material filmado e gravado sobre o Garrincha é, lamentavelmente, mínimo. Então, em todo documentário você vê essa jogada. É sempre o jogo contra o Flamengo em 1962, alguns jogos da seleção em 1962. É muito pouca coisa. Eu gostaria de saber onde foi parar o material dos anos 1950", acrescentou o biógrafo.

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O que tornava Garrincha tão diferente

Ruy Castro conta que Garrincha foi amado pelo Brasil. O futebol do craque conseguia abrir sorrisos involuntários até nos rostos dos mais sérios e de quem não torcia para o Botafogo. Foi assim de 1958, quando estourou, até 1963, quando problemas nos joelhos e o álcool acabaram com a alegria das pernas de Mané. Antes disso, existiam restrições ao seu futebol.

"O Garrincha não era unanimidade antes da Copa do Mundo de 1958. Não tinha se tornado 'O Garrincha'. Por isso, quando começou o Mundial, o Joel foi titular nas duas primeiras partidas. Mané entrou no terceiro jogo porque o Joel se machucou. Aí, ele entra, contra a União Soviética, e se torna 'O Garrincha'. A visão que a gente tem sobre coisas do passado nem sempre corresponde ao que era aquilo mesmo", relembrou Ruy Castro.

"A partir de 1958 [veio a unanimidade] pelo que o Garrincha fez no jogo contra a União Soviética, pelas inúmeras vezes em que driblou o marcador e cruzou para o Vavá, para o Pelé, pela desmoralização dos laterais adversários, pela a bagunça que ele fazia em qualquer sistema defensivo adversário... O Garrincha armava uma bagunça na defesa adversária que levava a vitórias do Botafogo e da seleção brasileira. Ficou estabelecido: a partir de 1958 e até 1962 era toda semana oferecendo algo diferente. Até que, por todos os motivos, o futebol o abandonou", descreveu o jornalista.

O futebol abandonou Garrincha, mas ele não queria largar as chuteiras. Mesmo com os joelhos prejudicados e a dependência alcoólica, o jogador seguiu em campo, defendeu o Corinthians em 1966 e, no mesmo ano, chegou à Copa do Mundo da Inglaterra, em que a seleção brasileira foi eliminada ainda na fase de grupos.

Um olhar sobre a hipocrisia

Luís Augusto Símon, do Blog do Menon

A história de Garrincha, biografado brilhantemente por Ruy Castro, traz também, de forma paralela, um certo olhar sobre a hipocrisia da imprensa e da sociedade brasileiras da época. Será que mudou?

Garrincha é o tipo de jogador que todo brasileiro adora. Um driblador emérito, um Chaplin de pernas tortas, alguém que faz sorrir até àqueles a quem derrota. Um homem amado enquanto dava alegria. Um homem esquecido quando se mostrou triste, doente e bêbado, um homem atacado e desprezado quando, enfim, viveu seu grande amor.

Ele poderia deixar Nair e as oito filhas em Pau Grande, poderia viver dias pares com Angelita, dias ímpares com Iraci e fazer gols domingos pelo Botafogo e ninguém se incomodaria... Os jornalistas continuariam acobertando...A família tradicional continuaria fechando olhos e tapando ouvidos.

Mas bastou viver sua paixão com Elza Soares para que fosse transformado em um monstro, um pai desalmado, um marido que abandonou o lar. Os jornalistas que ocultavam suas escapadas agora faziam campana para denunciá-las.

E, para seu azar, tudo acontece no início da decadência futebolística, quando um drible já não era certeza de um sorriso...

O Brasil fez um jogo de despedida para Garrincha, mas Garrincha já havia se despedido. Como a Itabira de Drummond, era apenas um retrato na parede...

Faltava a última despedida. E ela veio aos 49 anos...

Seria diferente hoje? Com Sócrates, não foi.

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O ponto em comum entre Garrincha e Neymar

É nesse ponto que Ruy Castro vê relação entre Neymar e Garrincha. Segundo o biógrafo, a vida de ambos os craques longe das quatro linhas atrapalhou as carreiras. No caso do atleta do PSG, ainda prejudica o rendimento em campo.

"Hoje, o que eu fico sabendo muito do Neymar é fora de campo, vida social, comercial. A vida airosa que ele leva tem tido mais destaque nos últimos anos do que ele faz no futebol. (...) O Garrincha jogou o grande futebol de 1953, quando foi para o Botafogo, até 1962, quando foi bicampeão carioca em cima do Flamengo. Nesse ano, ele já estava com a Elza, tinha sido bicampeão mundial. Depois, tudo foi piorando", disse Ruy.

Eu, se fosse o Neymar, já teria encerrado a carreira e me dedicaria às coisas que me dessem prazer, que [no caso dele] é levar essa vida airosa. Acho que o Ronaldinho Gaúcho também deveria ter encerrado a carreira mais cedo. E o Garrincha também".

Ruy Castro, jornalista e autor da biografia sobre Garrincha

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Quem disse que Garrincha era burro ou ingênuo?

Outro mito sobre Garrincha desmentido por Ruy Castro tem relação com a inteligência do jogador. Entre os anos 50 e 60, o jornalista Sandro Moreyra descrevia o craque como uma pessoa ingênua, às vezes ignorante. Uma das histórias mais conhecidas é a de um rádio que o jogador comprou na Copa do Mundo da Suécia e que foi vendido ainda na Europa por só falar sueco.

"Havia uma exploração monumental em torno do Garrincha. Fazia parte do esquema de encobrir a situação verdadeira dele descrevê-lo como uma pessoa absolutamente ingênua, ignorante e que, fora do futebol, só queria saber de passarinho, de caçar gambá na terra dele, e que tinha ficado triste porque queria um filho homem e tinha oito filhas", falou Ruy Castro.

"É impressionante quando você pega o livro 'No subterrâneo do futebol', do João Saldanha, de 1963, ele descreve o que aconteceu no Botafogo entre 1957 e 1961, quando ele foi treinador do time. O Garrincha é personagem de várias histórias ali, que mostram um sujeito inteligente, esperto, rápido, com respostas inesperadas. De maneira alguma um quase retardado, como o descreviam", contou.

Quando eu comecei a trabalhar no meu livro, eu tive que responder a essa pergunta: 'Qual o verdadeiro Garrincha, o do João Saldanha ou o do Sandro Moreyra'. A Sandra, filha do Moreyra, me deu a resposta: 'Cuidado com as histórias do papai sobre o Garrincha, é tudo invenção'. Ela me colocou na pista

Ruy Castro

Keystone-France/GettyImages

Pensavam que Elza era a razão pela decadência...

Garrincha começou a cair de rendimento no fim de 1962, o relacionamento com Elza Soares estourou na mídia. Torcedores e diretoria do Botafogo queriam encontrar um culpado pelo futebol do ídolo em decadência. Então, uma das maiores cantoras do Brasil passou a ser perseguida e humilhada na rua.

Elza, porém, fez de tudo para ajudar o amado. Até raspou o cabelo como promessa para ver seu grande amor largar o vício em álcool e o perdoou pelo acidente, no carro conduzido por Garrincha, que matou sua própria mãe, Dona Josefa. Mas de nada adiantava. Ela também era vista como a grande culpada por Garrincha ter abandonado a mulher, Nair Marques, e as nove filhas em Magé.

"Não viam que a Elza estava tentando ajudar. A ignorância sobre o alcoolismo era mil vezes maior que hoje, que ainda é enorme. Ninguém achava que ele precisava de ajuda. Se revelou que ele bebia a partir de 1963. Até então, quem sabia eram os amigos dele, os jornalistas que o protegiam, isso não saía em lugar nenhum. Os repórteres sabiam, mas ninguém publicava", contou Ruy Castro.

"Não havia essa consciência de que o Garrincha era um homem doente que precisava de ajuda. E a Elza Soares era considerada culpada na história pela bebida do Garrincha. Porque antes de ela aparecer, era escondido o problema. Como coincidiu a revelação de que a Elza Soares estava com ele e o estado dele começando a ficar público, começaram a colocar a culpa nela".

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Djalma Santos, Pelé e Garrincha comemoram gol na Copa de 1958

Foi derrotado mesmo com a rede de apoio que achava que não tinha

No fim, Garrincha recebeu apoio de todos à sua volta. O Brasil o amava, mas ele não conseguiu abraçar toda a ajuda e se entregou à doença. Mané morreu com 49 anos de idade, em 20 de janeiro de 1983, vítima de cirrose hepática. A história de uma vida de sucesso interrompida pelo alcoolismo. Foi isso que chamou a atenção de Ruy Castro, que sofre da mesma doença.

"Eu precisava de um alcoólatra, mas não de um sujeito que bebesse por ser um derrotado, sem amor, abandonado. Eu queria o contrário. Contar a história de um vencedor, campeão, que tivesse sido destruído pelo álcool. E a imagem do Garrincha me veio automaticamente à cabeça. Eu me encantei com essa ideia porque eu vi, de saída, as possibilidades que eu teria se eu estudasse a vida dele", disse.

"Não só a figura trágica dele, mas como também o fato de que entre 1958 e 1962, quando ele ganhou Copas do Mundo, não houve ninguém no Brasil mais amado que o Garrincha. Ele era amado por todas as torcidas. Era uma instituição nacional. E ninguém foi tão amado por uma mulher como ele foi pela Elza Soares. Então, não foi por falta de amor que o Garrincha começou a beber. Restava, para mim, descobrir os antecedentes da coisa, e descrever em detalhes a trajetória de uma pessoa vítima disso. E, ao mesmo tempo, narrar toda a fabulosa carreira dele como jogador até quando o álcool começou a destruí-lo", concluiu.

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