"Me sinto completo aqui"

Rodrigo Caio supera "condomínio" e fair play para se tornar campeão de tudo no Flamengo

Rodrigo Caio, em depoimento a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Alexandre Vidal/Flamengo

Era um novo começo: contrato de cinco anos assinado com o Flamengo. Às 20h30, eu e meu irmão saímos da rodoviária de São Paulo rumo a Dracena, minha terra natal no interior. Poucas horas antes tínhamos voado do Rio para a capital paulista. Quase perdemos o voo por causa de uma ligação com a família anunciando a boa nova. Naquela hora, já não havia mais voos para Presidente Prudente, a cidade mais próxima de casa. Tivemos de recorrer ao ônibus.

A noite passava rápida pela janela na rodovia e, naquela escuridão, o filme da minha carreira foi passando. E fui comentando com meu irmão, na poltrona do meu lado no ônibus. Por dez horas, ali sentados, fomos recordando tudo o que passou até aquela conquista. As dificuldades na infância, as vitórias e os problemas no São Paulo e aquela decisão.

A manhã já estava começando quando chegamos a Dracena. Fui pra casa, tirei um cochilo que não durou mais do que três horas. Não estava fácil dormir. Quando acordei, meus pais já tinham ido para minha chácara, onde comemoraríamos o início desta nova fase. Jamais vou esquecer a recepção que tive quando cheguei ali.

O hino do Flamengo tocava em alto e bom som, minha família inteira, e alguns amigos, estavam uniformizados em rubro-negro. Um amigo conseguiu com um colecionador de camisas que morava na cidade e emprestou para todos. Foi um momento mágico. Dava para sentir aquela energia, sabe? Ali eu soube: tinha feito a escolha certa.

Alexandre Vidal/Flamengo

De criticado a campeão de tudo

Dormindo no estoque da mercearia

As pessoas que me veem têm uma imagem de mim que não é exatamente real. Não tive uma infância rica. As coisas nunca foram fáceis em Dracena. É verdade, meu pai herdou do meu avô uma mercearia. Só que, junto com ela, vieram todas as suas dívidas também. Eram poucos os dias em que, após fechar o caixa, sobrava alguma coisa. Por vezes, tínhamos que tirar de casa para pagar as contas do negócio. Isso se tornou algo tão grave que, um dia, tivemos que vender a casa onde morávamos.

Nessa época, dormíamos ali mesmo, no estoque da mercearia. Foi um momento de muita união. Minha mãe estava sempre dando aulas, muitas vezes fora da cidade. Eu sempre procurei estar perto do meu pai, entender aquilo que ele vivia. Isso me fortaleceu para buscar algo melhor para mim e para eles.

Minha infância foi de muito amor e carinho. Mesmo nas dificuldades, sempre aprendi que, com trabalho, respeitando o próximo e sendo justo, você vai alcançar seus objetivos. Sempre acreditamos que dias melhores viriam. E vieram.

Quando eu comecei no futebol e as coisas começaram a andar, eu fiz uma promessa. Antes de sair de casa, aos 12 anos, eu falei: "pai, eu vou realizar o meu sonho e o sonho de vocês. Quando eu assinar o meu primeiro contrato, eu vou dar uma casa pra vocês e a gente vai fechar a mercearia". Eu não queria mais que eles tivessem que tirar dinheiro da comida para pagar as contas do negócio. Aos 16 anos, com as luvas do meu primeiro contrato, cumpri essa promessa.

Marcello Zambrana/AGIF

Chuteira parcelada em mil vezes

Quando eu tinha 11 anos, fiz uma peneira e chamei atenção do São Paulo. Garoto do interior, passei uma semana vivendo debaixo da arquibancada do Morumbi. A "prova" era dividida em três treinos: segunda, quarta e sexta. Ao fim da última atividade, você recebia a resposta se tinha passado. No primeiro treino, a chuteira rasgou.

O que eu ia fazer? Ia perder a oportunidade da minha vida. Por sorte, minha mãe tinha sido transferida para dar aulas em Itapevi. Ficava a apenas 40 minutos do Morumbi. Eu liguei para ela desesperado. Ela me pediu para ficar tranquilo que daria um jeito. Mesmo com todas as dívidas da mercearia, comprou uma chuteira. Parcelou em mil vezes no cartão. Atravessou a cidade inteira, um percurso estranho para quem vem de uma cidade de 40 mil habitantes. Me entregou a chuteira na terça à noite. Graças a ela, eu passei no teste.

Aquele era o começo de um processo que durou um ano. Após a primeira aprovação, voltei para Dracena e, dali três meses, o São Paulo ligou novamente e pediu para voltar. Foram quatro testes até que o São Paulo me aprovasse de vez. O problema é que passaram cinco garotos e ofereciam alojamento para quatro. Eu era o quinto. Na mesma semana, o Santos me convidou para ir à Vila Belmiro. Tinham interesse que eu fosse jogador do Santos.

Naquela situação, meu pai ligou para o diretor da base do São Paulo, o Geraldo (Oliveira), para agradecer pelo período que passei no clube, mas dizendo que eu iria acertar com o Santos já que eles não tinham espaço pra mim. Foi então que o Geraldo respondeu: "Não, não. Eu vou dar um jeito aqui, vou arrumar espaço para ele. O Rodrigo vai ser jogador do São Paulo."

Marcello Zambrana / AGIF

Fair play e zagueiro de condomínio

Aconteceu na semifinal do Paulistão de 2017, no clássico entre São Paulo e Corinthians. O corintiano Jô dividiu o lance com Rodrigo Caio, que protegia a bola para a saída do goleiro. Rodrigo acertou a coxa de seu goleiro. O árbitro Luiz Flávio de Oliveira, porém, viu toque de Jô no goleiro são-paulino e mostrou amarelo para o atacante. Jô estava pendurado e ficaria fora do próximo jogo.

Rodrigo, porém, assumiu que o toque havia sido dele. O árbitro, então, retirou o cartão do corintiano. O São Paulo perdia por 1 a 0 naquele momento e ainda sofreria o segundo. Jô jogou a segunda partida, marcou o gol corintiano no empate por 1 a 1 que decretou a eliminação tricolor. A torcida do São Paulo nunca perdoou o zagueiro.

Já a expressão "zagueiro de condomínio" nasceu em 2016, quando um assessor do clube o criticou em uma rede social. Até sua saída do São Paulo, a expressão incomodou.

Marcello Zambrana/AGIF

"Não quero ser o bonzinho"

Foi um fardo muito grande, não posso negar isso para vocês, mas eu sempre fui assim: eu assumo as responsabilidades. Eu sei que elas têm que ser compartilhadas, não jogo sozinho. Mas sou assim. Acontece que, quando você é novo, isso acaba te machucando mais. Zagueiro de condomínio...

É difícil entender, sabe? Talvez seja pela minha aparência, pelo meu jeito de ser... Foi o começo da minha saída do São Paulo. Eu sempre gosto de deixar claro que vivi momentos maravilhosos no São Paulo. Não foi um fracasso. Depois disso, teve o episódio do fair play. Ali, tudo começou a desmoronar.

Eu não me arrependo de nada. Tenho a consciência limpa e é isso que importa. É o meu lema, sabe? A forma como eu encaro a minha vida, que eu quero ensinar pro meu filho: ser uma pessoa honesta, leal, de caráter. Não quero ser o bonzinho, que as pessoas falem "ah, o Rodrigo é honesto". Não. Eu nunca quis isso. Só preciso respeitar a forma como penso e ajo dentro de campo. A forma como eu encaro a minha vida.

Ale Cabral/AGIF

Em alguns momentos, começaram a me colocar como o errado da história. Isso me espantou bastante. Mas tenho que seguir a minha linha. Futebol é um esporte competitivo, em que muitas vezes o calor do jogo te tira a razão, te tira o senso do que é certo e errado. Preciso sempre ser o mais controlado possível nas minha ações para tomar a melhor decisão".

Rodrigo Caio, sobre o episódio do fair play

A saída do São Paulo

Divulgação

A relação com Aguirre...

A lesão que me tirou da Copa [de 2018] foi um baque psicológico muito forte. É o sonho de todo jogador e eu estava tão próximo... Quando eu voltei da lesão, tínhamos um técnico (Aguirre) que não contava comigo e não queria falar. Na época, ninguém olhou no meu olho e falou que não contava mais comigo. É algo que a gente vai aprendendo no futebol.

Thiago Ribeiro/AGIF

...e a decisão de sair

No meio de 2018, eu tomei a decisão: era hora de ir embora. Tive uma conversa franca com o Raí [então diretor do clube] e disse: "Eu vou embora e espero que vocês não dificultem a minha saída. Vai ser melhor pra mim e pro São Paulo por tudo que passei aqui". Ele foi bem bacana na época. O Barcelona se interessou, mas não deu certo. Então, veio o Flamengo...

Alexandre Vidal/Flamengo Alexandre Vidal/Flamengo

"Não tem como não ser campeão"

Quando eu saí do São Paulo, eu tinha o Barcelona como principal interessado. As coisas não deram certo e eles acabaram contratando o Murillo, Mas, sinceramente? Eu não me arrependo de nada.

Muita gente pode falar: "Pô, mas era o Barcelona, o sonho de todo jogador". Sim. Mas eu chegaria na temporada de inverno, com um contrato de seis meses. Será que eu teria oportunidade? O Murillo jogou dois jogos. Será que eu jogaria? Poderia ser mais ou menos, não sei. Eu tomei a decisão de vir para o Flamengo. Deus abriu as portas de um clube gigantesco pra mim e isso é o que mais me marca.

Minha confiança no meu futebol sempre foi muito grande. Sempre soube que chegaria a oportunidade para voltar a jogar em alto nível e eu teria que agarrar com unhas e dentes. Graças a Deus pude fazer minha história no Flamengo. Eu tinha convicção de que eu iria arrebentar no Flamengo.

Quando eu vesti essa camisa, eu senti que seriam momentos maravilhosos e que eu iria construir uma linda história no Flamengo. Só dependia de mim. Com o grupo que eu encontrei aqui, sinceramente, não tinha como não sermos campeões. Eu só senti algo parecido com isso nas Olimpíadas de 2016.

E é só a primeira página, tem muitas outras ainda em branco para serem escritas...

"Só senti isso que sinto no Flamengo com a seleção olímpica"

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

Era de títulos

E não vai parar por aí. Não vai parar por aí mesmo. Esse grupo é diferente. Eu vivo pela adrenalina de competir. Aqui, se precisar cobrar os mais experientes, um Filipe Luís ou um Diego Ribas, a gente vai cobrar. Se tiver que cobrar o atacante que faz 50 gols em uma temporada, que é o Gabi, a gente cobra. Se tiver que discutir com o treinador pelo melhor da equipe, a gente vai fazer. Essa é a diferença de um grupo vencedor.

Temos muito a escrever na história do Flamengo ainda. Ganhamos o bicampeonato brasileiro? Queremos o tri. É muito difícil de ganhar o tri, é muito difícil você ser campeão da Libertadores novamente, é difícil você ser campeão três vezes do Carioca. Faz quantos anos que a gente não é tricampeão carioca? É difícil a gente ganhar a Copa do Brasil.

Queremos construir uma Era de Títulos. Temos um comandante que respira conquistas, que aspira ser o melhor. Isso é o principal. E não é fácil. Estamos vendo o Liverpool na Premier League, olha o quanto é difícil um time do mais alto nível repetir um feito. Na Espanha, Real Madrid e Barcelona que nada, o líder é o Atlético de Madrid.

Conquistar títulos em sequência nunca é fácil. Fomos bicampeões, mas queremos mais. Sempre queremos mais...

Sonhos: Europa e Copa do Mundo

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