Uma estrela por ano

Há 20 anos, Real Madrid resolveu montar um elenco "galáctico" e uniu três melhores do mundo em um só time

Karla Torralba Do UOL, em São Paulo Christof Koepsel/Bongarts/Getty Images

A segunda vida de Ronaldo

Ronaldo ainda comemorava o pentacampeonato da Copa do Mundo do Japão pela seleção brasileira quando foi anunciado em 31 de agosto de 2002, às 23h25 (horário da Espanha), como o novo jogador do Real Madrid. À meia-noite, a janela de transferência se fechou, dando início a uma nova vida ao atacante. Falar em nova vida não é exagero.

Ronaldo já era Fenômeno, mas quando se recuperou da lesão no joelho que quase colocou fim a sua carreira o epíteto ganhou ainda mais força. Só que no Real Madrid esse status foi além. O camisa 9 mais famoso do mundo fez parte de uma constelação ao lado de Roberto Carlos, Zidane, Beckham e Figo. Os primeiros "galácticos" do clube espanhol reuniam, em um só clube, três jogadores que tinham conquistado o prêmio de melhor do mundo da Fifa. É algo inédito até hoje.

Não tem melhor combinação de cidade e equipe que a do Real Madrid e Madri. Foi uma das melhores épocas, se não foi a melhor época da minha carreira. As lesões que não de deram paz durante muitos anos. Mas logo veio a Copa do Mundo e o Real Madrid, que foi uma segunda vida para mim".

Ronaldo, em live com outros atletas da época.

É essa segunda do vida do Fenômeno, como um dos galácticos que saíram de um sonho do empresário da construção civil Florentino Pérez, que o UOL Esporte revisita a partir de agora.

Christof Koepsel/Bongarts/Getty Images
Reuters

Galáctico começou "roubando" Figo do rival Barcelona

Quem viveu na Espanha no início dos anos 2000 e gosta de futebol se acostumou ao "estilo do Real Madrid" de contratação. Na verdade, o estilo era de Florentino Pérez. Homem de negócios da área da construção civil, ele chegou ao clube com uma missão: impressionar o mundo do futebol com grandes jogadores.

Como promessa de campanha, dizia que compraria Luís Figo, vencedor da Bola de Ouro da France Football em 2000, do rival Barcelona caso vencesse. Quando venceu, cumpriu a promessa e o Real Madrid iniciou uma colheita de craques a cada temporada do mercado da bola.

"Luís Figo firmou um pré-contrato com o Real. Na verdade, esse pré-contrato não foi com o Real, mas sim com o 'Florentino Pérez candidato', porque ali tinha uma cláusula que, se Florentino ganhasse as eleições, ele jogaria no Real Madrid com Florentino pagando a cláusula de rescisão do Barcelona de 60 milhões de euros. Ele ganha e deposita o dinheiro", contou Carmen Colino, jornalista espanhola que acompanha o clube pelo jornal As desde 1996.

"Florentino é um homem que tem as coisas muito claras. É um dos grandes empresários da Espanha. Ele sabe o que quer e como conseguir. Ele trouxe para cá os melhores jogadores. Agora, também está deixando um grande patrimônio para o clube. Ele sempre pensa em construir. É uma das grandes figuras do Real Madrid no século 21", ressaltou.

Florentino é um homem que gosta de tradições. Como o Zidane tinha ganhado tudo, ele passou a sonhar com Zidane. As negociações aconteceram da forma mais secreta possível. Depois, veio o Ronaldo, que chegou se recuperando de lesão. Em 2003, o sonho era o David Beckham, sobretudo por ser o ícone que era, com a imagem de marca que tinha

Carmen Colino, sobre o "estilo galáctico" de Florentino Pérez

O Sergio Ramos, atual capitão do Real, foi o Vanderlei que trouxe do Sevilla. Ele começou a trabalhá-lo na lateral, porque ele era muito jovem, 19 anos, e depois o Sergio ramos foi para a zaga e a gente começou a notar o poderio que o Sergio tinha

Paulo Campos, auxiliar técnico de Luxa no Real, sobre "o dedo" do técnico nos galácticos

AP

Galáctico e celebridade

A fama de Ronaldo Fenômeno atraía fofocas sobre a vida pessoal que não acabavam mais. Entre histórias de festas regadas a mulheres na Espanha e traições à então esposa Milene Domingues, com quem o atacante foi casado por quatro anos até 2003, surgiu um romance digno dos tabloides. O auge foi a "paixão-relâmpago" com a modelo e apresentadora Daniela Cicarelli.

Após um rápido namoro, que incluiu comemorações de gol personalizadas e visitas à concetração da seleção brasileira, veio o casamento em 2005. A cerimônia, no Castelo de Chantilly, em Paris, entrou para a história das revistas de fofoca. Pessoas foram expulsas da cerimônia com direito a barraco e o amor acabou tão rápido quanto começou. O relacionamento chegou ao fim três meses depois de subirem ao altar.

"Não tivemos lua de mel, a gente teve uma lua de melda", disse Cicarelli no Domingão do Faustão, tempos depois. "Várias pessoas foram tiradas. Quer dizer, algumas... No dia do casamento, ex é mais ex ainda", completou a modelo, que teria sofrido com o jeito mulherengo do Fenômeno.

Toshifumi Kitamura/AFP

Muita mídia, pouco título

A primeira fase galáctica do Real Madrid rendeu publicidade, mídia, polêmicas nos jornais sobre festas e as relações das estrelas dos gramados com celebridades. A chegada de David Beckham, acompanhado pela ex-Spice Girl Victoria, gerou ainda mais aglomerações na Espanha do que na época de Neymar e Bruna Marquezine, o ex-casal Brumar.

Em campo, porém, nem de longe o quilate do time foi traduzido em troféus. O time que era imbatível nos videogames não era invencível na Espanha. Os galácticos com Ronaldo, Roberto Carlos, Zidane e David Beckham venceram apenas a Supercopa da Espanha, em 2003. A Liga dos Campeões de 2000 foi vencida antes de Figo. O título de 2002 não tinha Ronaldo e Beckham — a foto acima é do Mundial de Clubes de 2002, sem Beckham. O Campeonato Espanhol de 2003 veio sem o meio-campista inglês.

"Tem times que são vitoriosos no mundo esportivo, mas não tem toda essa mídia. Por exemplo, o Sevilla tem seis Liga Europa. Mídia atrai muita atenção, mas também precisa de resultados. O Real galáctico era um time que tinha grandes nomes, grandes jogadores na área esportiva, mas que, digamos assim, não teve tantos resultados como seus nomes", ressaltou o espanhol Albert Castelló, que chegou a jogar na base do principal rival do Madrid, o Barcelona, e hoje representa La Liga, o Campeonato Espanhol, no Brasil. .

Castelló também explica que aquele Real Madrid ajudou no crescimento da própria La Liga em uma época que as estrelas se juntaram a outros grandes times como o Barcelona — que, no início do milênio tinha Rivaldo, melhor do mundo em 1999, e depois teve Ronaldinho, Messi, Xavi e Iniesta. "Isso atraiu atenção para o campeonato. Tinham outras marcas fortes, mas o Real Madrid atraiu ainda mais. É como foi com o Neymar na França".

Sergio Perez/Reuters Sergio Perez/Reuters

Ciúmes e divisões

Rejeitar as oportunidades de marketing que tantas estrelas juntas geravam seria inimaginável para um empresário como Florentino Pérez. As oportunidades apareciam em pré-temporadas fora da Espanha. Os Galácticos começavam seu ano futebolístico em lugares como a China, lucrando até quando corriam em volta do campo. Mas entre sonhos, contratações e muitos euros, as divisões do elenco foram aumentando.

Pérez aspirava o encaixe em campo de galácticos com atletas modestos. O problema é que aspirantes a estrelas que vinham das categorias de base do time "atrapalhavam". E tudo isso era personificado na imagem do zagueiro Francisco Pavón. A ideia era que jogadores "eficientes" como Pavón corressem e fizessem o trabalho sujo em campo para que as estrelas apenas brilhassem. Essa divisão ficou conhecida como Zidanes e Pavones. Mas nunca deu certo. Enquanto em campo Pavones tentavam dar tudo de si, fora dele eram ignorados nas estratégias de marketing.

O auge da divisão aconteceu em 2003, quando Claude Makélélé, volante francês ruim de marketing, mas bom de bola, perdeu espaço para Luís Figo e David Beckham. Quando ele foi vendido ao Chelsea e virou um dos pilares do clube londrino que viria a ser bicampeão inglês três anos depois, os ânimos de atletas como o próprio Pavón e Fernando Hierro se acirraram. Em proporção menor, foi "racha" que Vanderlei Luxemburgo encontrou quando chegou ao time.

Existia um pouco de ciúmes, porque eram quatro brasileiros e uma comissão técnica de mais cinco brasileiros. Isso conta, mas é normal, porque qualquer treinador que se apresenta para um clube quer indicar alguns nomes

Paulo Campos, auxiliar técnico de Luxemburgo no Real Madrid em 2005, sobre o Real

Craque, nesse sentido da palavra, não te dá trabalho. Quem dá trabalho pra treinador é o perna de pau que acha que é craque. Esse que dá trabalho. Como no Real Madrid todo mundo era craque, ninguém dava trabalho

Paulo Campos, sobre o convívio da equipe técnica brasileira com os galácticos

AFP PHOTO/Pierre-Philippe MARCOU

"Eu queria jogar contra o Real pra mostrar que meu valor era igual"

Djalminha viveu a era galáctica do Real Madrid como adversário. "Todo mundo só falava deles", lembra o meia, destaque do Deportivo La Coruña de 1997 a 2004. Por lá, ele não se assustava com cada estrela que pousava no clube da capital. Pelo contrário: era um incentivo a mais para jogar contra. E ele sabia muito bem como enfrentar (e superar) o time estrelado.

Djalminha jogou seis vezes contra o Real da "era galáctica" e perdeu só uma vez. "Dentro de campo, não tem esse temor, esse medo todo. Eu tinha muita vontade de jogar contra eles justamente pra mostrar que estava no mesmo nível, que o meu valor era igual. Quando se tinha aquele time, todo mundo só falava deles. Com razão, porque eram todos craques. Eu gostava muito de enfrentar e me sentia muito à vontade nesses jogos. Eu tinha muita confiança".

O ex-jogador descreve exatamente como é ganhar do Real. "Eu me recordo de um jogo muito emblemático, quando eles estavam brigando pelo campeonato. Teve uma disputa de bola com o Beckham, eu subo nas costas dele e ele segue na jogada. Eu continuo, fico meio pendurado. Também teve um lance com o Zidane que foi praticamente o momento crucial do jogo. O Zidane levou o amarelo e depois eu esperei ele entrar por trás. Fez a falta e foi expulso. A expulsão dele facilitou e ganhamos de 2 a 0. Também teve o tão conhecido jogo que ganhamos de 5 a 2 em Coruña, que foi outro jogo emblemático, foi o jogo que eu dei a lambreta".

Além de muita qualidade, são jogadores muito famosos. Isso chama atenção. Por exemplo: eu sempre falo que o Beckham foi um excelente jogador, mas o entorno dele sempre foi muito maior do que ele como jogador. Apesar dele ter sido um grande jogador. De repente, sei lá, ele no Manchester, o Giggs, pra mim, era melhor, mas não tinha toda aquela fama que fez com que fosse para no Real Madrid

Djalminha, sobre Beckham

Quem está na Espanha está acostumado com esses barulhos que o Real Madrid faz. Sempre ia atrás de quem é o melhor do mundo no ano. A gente sempre ficava esperando mais um e veio o Ronaldo [Fenômeno]. Falamos: "pô, agora vai ser difícil segurar". Os únicos que não conseguiram foram Messi e Ronaldinho Gaúcho, porque todos os outros eles contrataram: Ronaldo, Zidane, Figo, Kaká, Cristiano Ronaldo

Djalminha

Lluis Gene/AFP Lluis Gene/AFP

"Ganhamos do Real e não tinha comemoração preparada"

Sávio teve um privilégio que qualquer jogador sonharia. Viveu grandes momentos no Real Madrid e conquistou três Ligas dos Campeões. "Esse time que ganhou três Champions em nenhum momento foi considerado galáctico. Isso vem na sequência, com o Ronaldo, o Beckham, um ano antes o Zidane", explicou Sávio. Sua passagem pelo clube chegou ao fim em 2002. Quando ele chegou ao Zaragoza, porém, sabia o que era preciso para ser campeão. E foi, em cima do ex-clube.

Em 2004, Sávio era uma das estrelas do clube que chegou à final contra o Real. Era um time consistente, sempre competitivo quando enfrentava o rival da capital. Vencer uma final, porém, era sonhar demais. Mas o Zaragoza de Sávio fez 3 a 2 no Real Madrid e levantou o caneco da Copa do Rei. Ninguém esperava. Nem eles.

"Nessa competição que a gente ganhou do Real Madrid, nas quartas a gente já tinha ganhado do Barcelona. Nós tínhamos um time muito competitivo, mas ninguém esperava [o título]. Nem os dirigentes. Não tinha nem uma comemoração preparada no vestiário para depois do jogo. Ganhar um campeonato é importante, ganhar contra quem foi valoriza um pouco mais", relatou Sávio.

Alberto Estevez//AFP

"Tinha 20 anos e tive que parar o Figo na minha estreia"

Fábio Aurélio, ex-lateral do São Paulo e do Liverpool, foi mais um dos rivais dos galácticos. Com 20 anos, recém-contratado pelo Valencia, ele estreou justamente contra o Real Madrid. E com a missão de marcar Luís Figo.

"Minha estreia foi contra o Real Madrid em casa. Eu, com 20 anos, tinha que parar o Figo. Meu primeiro jogo no Campeonato Espanhol e pegar uma pedreira dessas na época. Foi uma estreia positiva, apesar de sofrer como todos sofriam marcando ele, eu tive uma participação positiva. Nós perdemos [1 a 0], mas isso me ajudou a ganhar credibilidade no clube", contou.

O Valencia ganhou duas vezes o Campeonato Espanhol com Fábio Aurélio na equipe [2001-2002 e 2003-2004], enquanto a formação galáctica de Figo, Zidane, Ronaldo e Beckham não conseguiu nenhum.

"Nosso elenco sem estrelas era competitivo e conseguiu nesses anos ganhar dois títulos de campeonato espanhol acabando superando os galácticos, o que mostra que futebol não é só no papel. Tem que fazer essas estrelas funcionarem da melhor maneira possível. Era bonito de ver a união de talentos, apesar de rivais. Quando não jogava contra, a gente curtia vendo esse time jogar junto".

Domenico Stinellis/AP Domenico Stinellis/AP

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