Quem manda aqui?

Disputa de poder entre franquias e atletas fica mais tensa durante a pré-temporada da NBA

Arthur Sandes e Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Andrew D. Bernstein/NBAE via Getty Images

Durante muito tempo a NBA esteve inteiramente nas mãos de pouquíssimas pessoas, os donos das equipes, que escolhiam o futuro dos jogadores como preferiam — e pagando o salário que quisessem. Este, no entanto, já é um passado distante na liga norte-americana de basquete. Dez anos após uma decisão histórica que mostrou um novo caminho na gestão de carreira dos atletas, nesta temporada são os astros quem estão dando as cartas.

O caso mais noticiado é o de James Harden, um colosso de jogador que, mesmo tendo a melhor média de pontos da NBA por três anos seguidos, ainda não sabe o que é ser campeão da liga. A estagnação no Houston Rockets esgotou sua paciência, e ele tem feito tudo a seu alcance para sair de lá. Tudo, mesmo, ainda que prejudique sua própria imagem.

Giannis Antetokounmpo foi outro que movimentou os bastidores da liga. Ele deu recados públicos ao Milwaukee Bucks, associando a renovação de seu contrato a "decisões corretas" que o time deveria tomar. Ao que parece a franquia acertou nas escolhas, pois o MVP da temporada passada assinou por mais cinco anos.

As duas situações são semelhantes: trata-se de dois grandes nomes da NBA forçando a barra para fazer valer suas vontades, seja moldando decisões de seus times ou exigindo uma troca. Nos detalhes, porém, são casos muito diferentes. Giannis tinha um contrato prestes a terminar e poderia deixar os Bucks de graça em 2021, por isso, apostou em um cabo de guerra que a liga já se acostumou a ver. Já Harden dá um passo a mais nesse jogo de pressões e se mostra inflexível mesmo sob contrato longo.

São negociações impensáveis em outros tempos. Esta mesma liga já teve uma regra (a reserve clause) que mantinha o atleta sob propriedade de um time mesmo depois do fim do contrato — mais ou menos como era no futebol brasileiro antes da Lei Pelé. Com o tempo, a regra na NBA foi substituída pela agência livre, o que abriu um outro mundo de possibilidades, novos limites que ainda hoje os atletas experimentam jeitos de explorar. Os tempos mudaram.

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Larry Busacca/Getty Images Larry Busacca/Getty Images

A decisão que mudou tudo

Parecia um programa de entrevistas. Durou uma hora, tinha plateia, roupas sociais, respostas longas e intervalos comerciais, mas era na verdade um pronunciamento. Há pouco mais de dez anos, em 8 de julho de 2010, LeBron James concentrou as atenções de todos os Estados Unidos e boa parte do mundo para anunciar em qual franquia da NBA passaria a jogar.

Ele revelou com estilo, em uma frase que virou praticamente marca registrada. "Vou levar meus talentos para South Beach e me juntar ao Miami Heat", disse na ocasião. Era o início do trio com Chris Bosh e Dwyane Wade, um Big3 que renderia dois títulos e seria a inspiração para a formação de outros times estrelados por toda a liga.

LeBron James não foi o primeiro astro da NBA a escolher seu próximo time, mas as nuances daquela decisão e o tempero de espetacularização ficaram marcados na história da liga, que mudaria para sempre: agora são os jogadores que mandam em suas próprias carreiras.

Desde então, LeBron voltou ao Cleveland Cavaliers para ser campeão em casa e, mais recentemente, virou uma espécie de diretor esportivo dos Lakers: influenciou em decisões da franquia, atraiu Anthony Davis e tem sido fundamental para a equipe chegar a esta temporada com um time ainda melhor do que o campeão em outubro.

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Harden estica a corda e quer sair

A percepção de uma NBA mais na mão dos atletas que das equipes ronda a situação envolvendo James Harden. Há oito anos na franquia, ele parece ter ficado cansado de esperar sua vez de ser campeão e não esconde o desejo de vestir outra camisa. O Barba recusou uma renovação antecipada do seu contrato, que lhe renderia US$ 103 milhões (cerca de R$ 527,6 milhões na cotação atual).

Na disputa por poder, os Rockets precisam lidar pela segunda vez com a insatisfação de mais uma de suas estrelas. Incomodado com seu papel na franquia, Russell Westbrook pediu e acabou trocado com o Washington Wizards. Agora, a equipe do Texas tem um dilema em suas mãos: tentar o melhor negócio possível ou apostar em uma reconstrução que deixaria James Harden feliz em cumprir os dois anos que restam de seu contrato.

A presença de Harden na franquia sempre foi representativa. Desde que o Barba chegou, a equipe não ficou fora dos playoffs. Em contrapartida, o ala-armador era regado a regalias, como revelou a ESPN dos Estados Unidos. Ele opinava sobre a escolha de treinadores (foram quatro desde que ele chegou) e era autorizado a curtir festas durante suas folgas. Mas a ausência de títulos parece falar mais alto agora.

O relacionamento do astro com a franquia estremeceu mais quando o ala-armador decidiu ir sem máscara ao aniversário do rapper Lil Baby. A situação, que já seria problemática do ponto de vista social, ficou pior no campo esportivo. Ele desrespeitou o pedido de quarentena feito pela NBA e acabou cortado dos treinos e jogos de pré-temporada dos Rockets até apresentar seis testes diários de Covid-19 com resultados negativos.

Harden voltou aos jogos de pré-temporada dos Rockets após dez dias de "castigo". Diante do San Antonio Spurs, apresentou o físico ainda muito longe do ideal. Resta saber se ficará em forma em Houston ou em outra franquia. Caso a segunda opção seja a escolhida, Harden já apresentou quatro caminhos que o interessaria: Philadelphia 76ers, Brooklyn Nets, Miami Heat ou Milwaukee Bucks.

Vocês precisam perguntar a ele sobre o nível de comprometimento [com os Rockets]

Stephen Silas, técnico do Houston Rockets

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Geração super poderosa, salário bilionário

A NBA chegou a um ponto em que seus principais nomes têm poder para fazer praticamente o que quiserem na liga. Em dois ou três anos, quase todos os astros demandaram trocas, mudaram de time ou foram ainda mais além, portanto não são só Harden e LeBron que andam fazendo valer as suas vontades.

Jimmy Butler, por exemplo, recentemente explorou limites antes impensáveis na NBA: o astro de Miami escolheu sair de duas franquias antes de chegar ao Heat — inclusive, humilhando companheiros em um treino.

Paul George também pediu para ser trocado duas vezes antes de chegar ao Los Angeles Clippers. Anthony Davis também demandou sua saída dos Pelicans, no ano passado, para se juntar a LeBron nos Lakers. Já Kevin Durant e Kyrie Irving passaram por duas franquias antes de fazerem a dupla atual no Brooklin Nets. Nesta dança das cadeiras cada vez mais comum entre os melhores jogadores, só um dos grandes nomes preferiu dobrar a aposta na própria equipe — e como um voto de confiança, não de fidelidade.

Giannis Antetokounmpo (foto) renovou por cinco anos com os Bucks, mas só depois de o time dar um jeito de conseguir mais uma estrela para ajudá-lo (no caso, o armador Jrue Holiday). O MVP assinou o maior contrato possível - 228 milhões de dólares (mais de R$ 1 bilhão) por cinco temporadas -, mas nem o recorde salarial da NBA garante a sua permanência a médio ou longo prazo.

O próprio Giannis já deixou bem claro que seu futuro em Milwaukee "depende das escolhas que eles fizerem". Eles, no caso, são aqueles que comandam a franquia. E se alguém não entendeu a mensagem, o astro ainda facilitou a interpretação. "Se eles tomarem a decisão correta, ficarei por muitos anos. Senão, então vamos ver. A NBA é um negócio, e lidamos com isso dia a dia."

Antes e depois

Como os jogadores da NBA forçam a barra para trocar de equipe

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Em 1968, Wilt Chamberlain rivalizava com Bill Russell no duelo entre os dois melhores jogadores da liga - e talvez de toda a história até então. Mas uma desavença com o dono dos 76ers fez Wilt querer ser trocado para os Lakers, onde veio a formar o primeiro super time da NBA com Elgin Baylor e Jerry West (o cara do logo da NBA).

Dick Raphael/NBAE via Getty Images

Em 1975 foi a vez Kareem Abdul-Jabbar forçar a ida para os Lakers. Ele era a grande estrela dos Bucks e tinha sido campeão em 71, mas não queria mais viver em Milwaukee. Nas palavras de um diretor dos Bucks, "o estilo de vida de Kareem não combina com o estilo de vida da cidade". No fim, foi para Los Angeles e ganhou mais cinco anéis.

Mike Lawrie/Getty Images

Não são só as maiores estrelas que batem o pé contra as franquias. Em 2014, o pivô Andrew Bynum queria tanto sair do Cleveland Cavaliers que resolveu implodir os treinos: ele arremessava todas as bolas que recebia nas atividades, dentro ou fora do garrafão. Insistiu até ser trocado para os Bulls, mas sua carreira só durou mais alguns meses.

Jennifer Stewart-USA TODAY Sports

Em um sábado de outubro de 2017, o Phoenix Suns sofreu uma derrota por 42 pontos de diferença. No domingo, o armador Eric Bledsoe escreveu "eu não quero mais estar aqui" em suas redes sociais. Na segunda, foi afastado do time. E pouco depois acabou trocado para o Milwaukee Bucks, pelo qual jogou por três anos -- hoje está nos Pelicans.

Nathaniel S. Butler/NBAE via Getty Images

Na antiga NBA, Pippen sofreu na mão dos Bulls

A história voltou aos holofotes na série documental "The Last Dance", lançada neste ano pela Netflix: Scottie Pippen era um dos melhores jogadores da NBA na temporada 1997-98, sem dúvidas, mas tinha apenas o 122º maior contrato — dentro do Chicago Bulls, era o sexto. O episódio ajuda a explicar como as coisas funcionavam em uma liga controlada pelos donos das franquias, não pelos jogadores.

Em resumo, Pippen assinou um contrato de US$ 18 milhões por cinco anos, em um negócio tão bom para os Bulls que chega a ser inimaginável nos dias de hoje. Mal comparando, é como se Anthony Davis — o fiel escudeiro do melhor jogador da NBA — recebesse 20% do que de fato recebe. E sem qualquer poder de barganha para renegociar os valores.

O contrato havia sido uma escolha extremamente conservadora de Pippen, que depois, naturalmente, se arrependeu e pediu uma renovação com um substancial aumento. Os Bulls se negaram. Na época, o jogador se vingou adiando uma cirurgia e perdendo quase metade da temporada regular. "Não iria f... meu verão", disse Pippen recentemente, ao relembrar a decisão.

No fim das contas, ele seria campeão de novo com o Chicago Bulls e, então, sairia para o Houston Rockets, onde ganharia um salário quatro vezes maior.

Brian Rothmuller/Icon Sportswire via Getty Images

Relação de LeBron com agente incomodou

A Guerra Fria causada pela disputa de poder já colocou LeBron James no centro de uma polêmica envolvendo Rich Paul, amigo de infância e agente dele e de várias estrelas da NBA. A relação dos dois fez com que o atleta do Los Angeles Lakers fosse acusado de usar a empresa de agenciamento em benefício próprio.

Um agente, que não quis se identificar ao site The Athletic, acusou James de fazer agenciamento ilegal de atletas. O argumento era de que a proximidade do astro com Rich Paul facilitaria os negócios para o agente e, ao mesmo tempo, reforçaria os times em que o camisa 23 estivesse jogando. As acusações nunca foram provadas.

A NBA nunca investigou diretamente o caso de James, mas foi a fundo na negociação envolvendo a ida de Anthony Davis para o Los Angeles Lakers. O ala-pivô é agenciado por Rich Paul e forçou sua saída do New Orleans Pelicans para se juntar a LeBron James na equipe da Califórnia.

A liga concluiu que não houve irregularidades na transação. A parceira de James com Davis rendeu o título da temporada passada da NBA para o Los Angeles Lakers.

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Empoderamento também fora de quadra

É verdade que a força conquistada pelos atletas tem ajudado a fazer uma batalha mais acirrada com as franquias nas negociações. Mas ao tempo que levantam a voz para discutir seu destino, os astros da NBA têm usado esse poder também para tentar mudar as coisas fora de quadra.

Quando George Floyd foi brutalmente assassinado por um policial em Minneapolis (EUA), os grandes nomes do basquete norte-americano usaram sua fama para apoiar o movimento Black Lives Matters (Vida Negras Importam). Nomes como Russell Westbrook, DeMar DeRozan e Steph Curry participaram ativamente das manifestações que explodiram após o crime.

A postura combativa dos atletas forçou a NBA a tentar mudar as coisas também dentro de sua própria casa. As quadras da "bolha" construída em Orlando, no complexo da Disney, exibiam a mensagem que vidas negras importavam; as camisas dos jogadores traziam palavras de ordem contra o racismo estrutural presente na sociedade.

A força dos jogadores ficou clara no boicote da partida entre Milwaukee Bucks e Orlando Magic. Os atletas se recusaram a entrar em quadra no mesmo dia em que um policial disparou sete tiros pelas costas de Jacob Blake, na cidade de Kenosha.

O episódio resultou em uma nova onda de protestos pelas ruas dos Estados Unidos, deixando evidente que a pressão feita pelos jogadores sobre a NBA não ficaria apenas nas palavras.

A onda de manifestações que tomou os Estados Unidos e o mundo rapidamente atingiu a liga. Os atletas passaram a cobrar mais representatividade de negros, tanto na NBA quanto nas franquias que a compõe.

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