Com ou sem pandemia, o calendário do futebol brasileiro há décadas é uma equação mal resolvida. Joga-se demais, atropela-se datas Fifa e, mesmo com o colapso gerado pelo coronavírus, os estaduais se mantêm no cronograma de partidas feito pela CBF a cada ano.

O tamanho atual deles é de 16 datas - a alegação da CBF é que o calendário é um reflexo dos contratos de transmissão assinados pelos clubes. Mas olhando uma década para trás, houve avanço: em 2012, os estaduais tinham 23 datas.

O término dos estaduais está marcado para 3 de abril. Com isso, serão dois meses e meio de competição, com torneios fincados em um período do ano que acaba espremendo a pré-temporada.

Em 2022, ano de uma Copa do Mundo agendada para novembro, a maioria dos torneios vai começar no próximo meio de semana (data-base é o dia 26). O Paulista tem uma variação por conta da agenda do Palmeiras, que em fevereiro disputará o Mundial de Clubes. Assim, a partida de domingo, contra o Novorizontino, foi uma antecipação da quinta rodada.

A decisão de alguns grandes, como é o caso do Flamengo, no Rio, é ignorar as primeiras rodadas e colocar o time principal em ação mais adiante. Neste ano, especificamente, na quarta rodada, em 6 de fevereiro.

No Paraná, historicamente o Athletico opta por colocar o time sub-23 em ação, guardando as energias para o sprint final do segundo semestre. A diretoria atribui essa estratégia a duas questões: revelação de jogadores e títulos recentes da Copa do Brasil e da Sul-Americana.

Os olhos marejados de Tiago Nunes indicavam uma óbvia emoção. O então técnico do Grêmio acabara de conquistar o título do Gauchão, seu primeiro pelo clube que admira e onde foi forjado como profissional. A cena tinha potencial para ser o fio condutor de uma história de sucesso. 42 dias depois, Tiago Nunes foi demitido por causa dos maus resultados no Brasileirão. O sucesso no estadual foi fugaz. O Grêmio, ao fim do ano, foi rebaixado para a Série B.

O episódio mostra como ser campeão na disputa doméstica não só deixou de ter uma representatividade esportiva robusta como também não segura o emprego de ninguém. O argentino Hernán Crespo experimentou isso no São Paulo também, sendo demitido 143 dias depois de tirar o time de uma fila que durava 15 anos. No Flamengo de 2019, Abel Braga foi demitido mesmo após a conquista estadual e abriu espaço para a chegada de Jorge Jesus e uma campanha que será para sempre lembrada.

Mas o próprio Mister mostra a outra face da mesma moeda. O título estadual de 2020 não foi motivo suficiente para que ele estivesse engajado em continuar o trabalho: dois dias depois, estava anunciado pelo Benfica.

Os exemplos recentes apontam que não basta dar certo nos primeiros três meses do ano. A longevidade no cargo necessariamente precisa se espalhar pelos torneios que estão no topo da prateleira.

"Quando você está em um time grande, você tem de vencer jogos. Se for do Estadual, do Brasileiro, de alguma competição internacional. Acho que a pressão e a cobrança por resultados, em clube grande, vai vir sempre", disse ao UOL Esporte o técnico Fabio Carille, campeão paulista com o Corinthians em 2017 e que hoje está no Santos.

"Eu tenho total ciência que, pelo momento do Corinthians ali em 2017, aquele título nos deu estabilidade e confiança para o restante da temporada, para buscar o título do Brasileirão e, pra mim, claro, pra ter tranquilidade de trabalhar", completa ele.

Dono do Boavista, clube de Saquarema que disputa a elite do Carioca, e bem relacionado no Rio por ser membro de uma família abastada, João Paulo Magalhães Lins ficou sabendo lá pelos idos de 2019 de um movimento na CBF que era simpático a uma mudança drástica nos estaduais. As informações dos bastidores apontavam para uma hipótese que resultaria na perda de espaço e relevância das competições. A ideia foi marcar um encontro com a cúpula da entidade na época.

Em mãos, João Paulo tinha um levantamento a respeito da contribuição dos clubes pequenos na formação de jogadores que ao longo dos anos serviram a seleção brasileira. De Cafu, no Itaquaquecetuba, a Neymar, na Portuguesa Santista, foram 40 nomes citados com raízes em clubes pequenos.

"Como clube pequeno, eu sei que o estadual é fundamental para toda a cadeia produtiva porque o Brasil é muito grande, é continental. Não é uma Alemanha ou Inglaterra. Se você olha para o mapa do Brasil, como é que você vai prestigiar 20 clubes? Para 20 se darem bem, o resto vira resto? Não concordo com isso", afirma o dirigente ao UOL.

O argumento vai na linha de que há uma "fábrica de talentos" espalhada no país que só funciona em decorrência dos estaduais e da vitrine que eles proporcionam. João Paulo ainda recorre ao Bira da Ferj, que é o sistema de registro de contratos dos jogadores, para reforçar o ponto de vista.

"Os quatro grandes têm 600 atletas registrados, profissionais ou com contrato de formação. Entre 17 milhões de habitantes do estado do Rio, vamos trabalhar com 600 jogadores?", questiona ele.

Mas mesmo com a permanência do estadual no calendário, o Boavista de João Paulo passa longe dos melhores dias em termos de saúde financeira, consequência de um Carioca que perdeu o poderio econômico. E disso faz parte uma batalha com a Globo que estourou em 2020, conjugada com a intenção da emissora de rever alguns investimentos.

Há também uma escassez de alternativas encontradas pela Ferj e sua parceira na venda dos direitos comerciais para rentabilizar a competição no mesmo nível de antes. A Globo pagava R$ 120 milhões por edição do estadual, em todas as plataformas. O contrato de TV aberta, com a Record, em 2022, renderá R$ 15 milhões. E, a exemplo de 2021, cabe aos clubes e a Ferj o trabalho de tentar turbinar o pay-per-view do estadual e as TVs próprias dos clubes.

Nesse quadro, os pequenos sofreram. O Flamengo levou a melhor em 2021, arrecadando cerca de R$ 14 milhões. O Vasco ficou na casa dos R$ 4,5 milhões. Mesmo para quem lidera na arrecadação pelo torneio, vira algo irrisório diante do R$ 1 bilhão que o Fla teve de receita bruta na temporada.

O espaço atual dos estaduais também fica em risco à medida que as receitas de transmissão, a linha mais representativa nos balanços, passam a ter conexão mais direta com o formato de pay-per-view e assinaturas.

"Há um paradoxo. Por um lado, os estaduais são a base da pirâmide no processo de formação. Por outro lado, o modelo atual de mídia e entretenimento está calcado cada vez mais em assinatura. Quanto menos dura o Campeonato Brasileiro, menos se consegue de receita para os clubes", analisa Gustavo Hazan, sócio de esportes da EY.

Essa linha de raciocínio sobre o Brasileiro considera que: com duração de oito meses, são oito mensalidades de PPV. Com dez meses e mais espaçado, é possível gerar dez mensalidades. Haveria um efeito não só na receita total, mas também no fluxo de caixa.

O estadual de São Paulo, pelo poderio econômico, conseguiu ser a exceção e diversificou os parceiros de transmissão: além do Paulistão Play e Premiere, terá jogos em YouTube, Record TV e HBO Max. Assim, gerou receita mais significativa do que no ciclo anterior, com a Globo dominando todas as plataformas. A emissora fechou contrato apenas para o pay-per-view. Assim como no Carioca, o contrato de TV aberta do Paulistão é com a Record. Mas a fonte tem secado também em Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Enquanto São Paulo puxa o carro para a manutenção de um estadual robusto em decorrência de questões financeiras, há uma metamorfose em curso, especialmente no Nordeste. Marcelo Paz, presidente do Fortaleza, adotou uma frase para bater na tecla da relevância dos estaduais:

"Se você acha que o estadual não é importante, perca. Aí você vê como é importante. A cobrança é grande".

O discurso sobre o estadual também vai numa linha afetiva e da rivalidade local.

"Tem um contexto histórico muito grande. Muitas memórias de torcedores foram forjadas em estaduais. A gente não pode desprezar isso. Neste ano, pode ser o tetracampeonato, o segundo da nossa história. E ainda podemos empatar com o Ceará em número de títulos oficiais (45)", acrescenta Marcelo Paz.

Mas, na prática, Fortaleza e Ceará experimentam uma versão já modificada dos estaduais. Nada de 16 datas. O Cearense 2022, para os grandes, não vai passar de seis datas. O "pulo do gato" foi compreender que a Copa do Nordeste tomou lugar de representatividade para o calendário da região. Como produto, como fonte de receita e como interesse esportivo, o Nordestão — que tem 12 datas — faz muito mais sentido. E a própria federação local participou dessa virada de chave.

"Hoje, a situação é que precisa haver a Copa do Nordeste. É lá onde tem verba para ajudar as federações menores, sobretudo as seis menores [MA, PI, RN, PB, SE e AL]. Por receberem valor maior na Copa do Nordeste, claro que deram preferência. Eu vi Bahia e Vitória colocando time sub-20 no estadual. Não queria isso para mim", conta Mauro Carmélio, presidente da Federação Cearense.

Para amenizar a reclamação dos clubes pequenos por causa da redução de jogos contra os grandes e, por consequência, a perda de oportunidades de enfrentá-los em casa, gerando renda com ingressos, há uma premiação — cujo valor Carmélio não conta.

Ednaldo Rodrigues foi presidente da Federação Bahiana por 18 anos e hoje é o presidente em exercício da CBF. A discussão sobre o calendário para 2023 será mais para o meio do ano, segundo ele, mas não passa pela cabeça extinguir os estaduais. Em entrevista ao UOL Esporte, o dirigente, ao mesmo tempo, valoriza iniciativas que enxergam a Copa do Nordeste como prioridade.

Qual sua visão sobre o futuro dos estaduais?

Ednaldo Rodrigues: "Eu respeito quem fala que estadual tem que acabar, mas acho totalmente o contrário. Os estaduais têm que continuar. As federações têm esse sentimento: elas têm reduzido. Não tem mais estadual de 20 rodadas, de cinco meses. Tudo tem sido enxugado. Eu coloco como referência os estaduais do Nordeste, que são conciliados com a Copa do Nordeste, uma competição pujante. Elas fazem o estadual e não traz transtorno".

Qual o papel que eles cumprem atualmente? Enxerga relevância?

Ednaldo: "Os estaduais são importantes para o futebol brasileiro. Muitos atletas servem os grandes clubes e vieram de clubes com orçamento pequeno, dos estaduais. Muitos se transformam em jogadores de seleção. Os presidentes de federação têm consciência de que precisam fazer campeonatos que deem condições para que seus principais clubes possam disputar bem as competições nacionais e internacionais. As federações não jogam futebol. Só vai melhorar no ranking com base na performance dos seus clubes. Elas têm consciência disso e têm se ajustado para melhor".

O poder na CBF, essa estrutura montada para que as federações tenham mais peso nos votos do que os clubes, depende dos estaduais?

Ednaldo: "O poder da CBF está nas suas ações. O apoio também. Quando as ações são corretas, vão agradar federações e também clubes. Não tem um poder da CBF vitalício porque os estaduais existem. Se a CBF não dialogar, ouvir, discutir o melhor, as federações não vão apoiar de qualquer forma. Os clubes também são eleitores. Estou como interino e não procuro fazer política com qualquer tipo de competição. Não é preciso pedir voto. O que fala são as ações.

Os contratos de televisão dão um norte a respeito do que será dos estaduais no futuro. O acordo da Globo pelo pay-per-view do Paulista, por exemplo, tem duração de dois anos. Não por acaso, ele vai terminar quando o atual ciclo de contratos de direitos do Brasileirão se encerrar. Ou seja, em 2025, pode-se abrir um leque de transformações profundas no futebol brasileiro. Nisso tudo, é preciso pontuar a iniciativa dos clubes principais de criarem uma liga. O que pode sair daí?

"A própria preservação do que está agora é um tiro no pé. O modelo está mostrando que não vai voltar a ser sustentável. A Copa do Nordeste eu acho que é um modelo a ser replicado. Demorou um pouco a ser sedimentada, mas mostrou que é um produto de sucesso. De público, de marca. Acho que há espaço para produtos regionais", avalia Gustavo Hazan, da EY.

Propostas de reformas de calendário, por consequência dos estaduais, vira e mexe aparecem. Até jogadores, via Bom Senso FC, já deram sugestões lá em 2013. Entre 2015 e 2016, houve até um Comitê de Reformas na CBF que, na real, não conseguiu tantos avanços na questão.

Recentemente, quatro estudiosos ligados ao Futbox, um centro de pesquisa gráfica sobre futebol, montaram uma proposta de calendário brasileiro. Nela, os estaduais podem ter de seis a 12 datas, dependendo do estado que respeitar a data Fifa. A sugestão vem acompanhada da criação da Série E, também regionalizada, para dar calendário anual aos clubes pequenos e manter a base da pirâmide em atividade.

"O fim do estadual é algo simplista e radical. Entendo que o estadual deve ser repaginado, sem ser um transtorno para os grandes clubes, mas mantendo seu charme. A proposta é um estadual mais enxuto, às quartas-feiras. E vai gerar emprego, novos jogadores", conta um dos participantes do estudo, Marcelo Paciello, mestre em gestão do esporte e consultor da Sportheca, um hub de inovação, desenvolvimento de serviços e produtos no esporte, acrescentando uma perspectiva que também desaguará nos regionais:

"O que manda é o dinheiro. Se não tiver uma mudança de cima para baixo, o mercado vai se movimentar. Já ouvi de gente da área que é um possível acontecimento em curto prazo ter o Paulistão, mas com Sul-Minas, Copa Verde, Nordestão".