"Pelé quebrou minha perna"

Zagueiro Procópio Cardoso conta sobre entrada do Rei que o deixou cinco anos fora do futebol

Bernado Gentile, Enrico Bruno e Vanderlei Lima Do UOL Acervo/Cruzeiro

Jogar contra as grandes estrelas é o desejo de qualquer atleta de futebol. Imagina duelar dentro das quatro linhas com o Rei do futebol? Mas o que era para ser a realização de um sonho mudou para sempre a trajetória do zagueiro Procópio Cardoso. Para o pior.

Em uma partida em 13 de outubro de 1968, Procópio e Pelé dividiram uma bola. O cruzeirense ganhou e, na sequência, driblou o camisa 10 do Santos. Pelé não perdoou. "Ploc", rangeram os ligamentos do joelho esquerdo do defensor. A dor foi tão forte que o zagueiro desmaiou. Espectadores daquele jogo garantem que o barulho que a lesão causou foi tão alto que foi possível ouvir das arquibancadas do Morumbi.

"Pelé quebrou a minha perna covardemente, eu preciso dizer isso. Covardemente, covardemente. Eu digo isso em bom e alto som. Eu tirei a bola com a perna direita, a perna esquerda apoiada no chão, e ele foi no meu joelho. Houve ruptura em tudo, do tendão rotuliano. A minha rótula foi parar na minha virilha", contou Procópio, atualmente com 81 anos, ao UOL Esporte.

Aquele fatídico 13 de outubro foi apenas o primeiro dos 1.869 dias em que o zagueiro ficou afastado do futebol. Desses cinco anos, passou mais de três internado em um hospital. O joelho jamais foi o mesmo, mas a força de vontade do jogador, que hoje se define como "aleijado", foi mais forte. E a bola voltou a rolar.

Acervo/Cruzeiro
Reprodução/Que Fim Levou

Pai foi assassinado na sua frente

Procópio Cardoso é natural de Salinas, no norte de Minas Gerais. A cidade com pouco mais de 40 mil habitantes é conhecida principalmente pela sua famosa produção de cachaça. Mas Procópio não teve tempo (nem idade) para usufruir dos atributos etílicos de Salinas. Deixou a cidade natal aos 11 anos, com destino a Belo Horizonte, dois anos depois que uma tragédia se abateu sobre sua família.

Aos nove, viu o pai, promotor público, ser assassinado com tiros nas costas em uma praça local. "Foi uma coisa terrível. Hoje as pessoas estão mais acostumadas, mas naquela época era uma coisa indescritível, né? Eu vi, eu cheguei na hora. Corri, tentei chamar um médico. Atiraram nele pelas costas", contou.

Na capital mineira, Procópio teve seu primeiro contato com o futebol no time juvenil do Renascença (na foto), extinto clube de BH. Quando Gérson dos Santos, ex-jogador do Botafogo, foi apresentado como novo técnico da equipe principal, o então adolescente, que atuava como ponta de lança, foi assistir ao treinamento e acabou sendo escolhido para "quebrar o galho" como zagueiro. Nunca mais foi para o ataque.

Durante a década de 1960, o zagueiro ainda rodou por Cruzeiro, São Paulo, Fluminense, Atlético-MG e Palmeiras.

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Temperamento forte e briga no vestiário

Se tem uma coisa que Procópio não nega é seu temperamento forte. Entre as histórias que gosta de relembrar está um episódio polêmico em sua segunda passagem pelo Atlético-MG.

Em 1966, o campeonato estadual foi disputado no sistema de pontos corridos. O Atlético venceu seu jogo por 2 a 0, mas o Cruzeiro (que se sagrou campeão naquele ano) também fez sua parte e goleou por 5 a 0. A torcida, insatisfeita com a posição do alvinegro na tabela, abaixo do rival, vaiou o time, apesar do trunfo no Mineirão. Os membros da diretoria, alvos da revolta dos torcedores, foram até o vestiário e colocaram os jogadores contra a parede.

O diretor reuniu a turma e falou de uma maneira muito grosseira: 'Não haverá bicho. E amanhã cedo, às 7h da manhã, todo mundo em Lourdes [bairro de Belo Horizonte onde ficava o antigo estádio do Atlético]. Como eu era capitão, tinha que tomar uma atitude. Ele gritou muito e eu respondi à altura. Botei ele para fora do vestiário com um pé na bunda. Aí deu-se o impasse, né?"

A situação dele no clube tornou-se insustentável. O zagueiro abriu mão do que tinha a receber e deixou o Galo. Acabou "caindo para cima", como define: foi convidado para servir o histórico Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes e Piazza, campeão brasileiro de 1966.

Reprodução/Que Fim Levou/ASSOPHIS Reprodução/Que Fim Levou/ASSOPHIS

Cinco anos sem jogar

Essa passagem pelo Cruzeiro, a sua segunda no clube, ficou marcada pela dura entrada de Pelé (na foto acima). A recuperação não foi fácil, e Procópio passou quase quatro anos em um hospital, em Belo Horizonte. Submetido a uma complicada cirurgia, ouviu de médicos que jamais voltaria a jogar.

"Eu fiquei cinco anos, um mês e treze dias, dos quais três anos e oito meses no hospital para dobrar a perna até 90 graus, é o que eu consegui", recorda.

No período em que esteve afastado dos gramados, Procópio cursou educação física e voltou a se exercitar para ser aprovado nos exames físicos previstos para a admissão na faculdade. Aprovado, voltou até a bater uma bolinha. A evolução era clara.

"Os fios de aço, que foram amarrados na minha rótula, estão na minha perna até hoje. E, graças a Deus, mesmo com essa deficiência, eu voltei a jogar. Com 33 anos, fiz teste no Cruzeiro e voltei", comemora.

Perdeu tudo, mas voltou a jogar

A entrada dura de Pelé que mudou o rumo da história do zagueiro aconteceu 18 dias antes do fim do contrato com o Cruzeiro. Temendo que o jogador nunca mais fosse voltar aos gramados, o clube mineiro não renovou o acordo. Segundo o zagueiro, o clube não deu nenhum suporte a ele, que teve que realizar todo o tratamento na rede pública de saúde.

Depois que Procópio deixou o hospital, um amigo lhe ofereceu emprego em um banco, mas ele durou apenas um mês na nova função. E, para garantir o sustento da família, foi obrigado a se desfazer de todos seus bens. Vendeu uma fazenda, duas casas e um apartamento.

"Eu era casado, tinha mulher e dois filhos. Vendi tudo, tudo, tudo. Mas não vendi a minha honra, a minha dignidade e nem vendi a minha fé", relembra com orgulho.

Mesmo após voltar aos gramados, a vida financeira jamais foi igual. "Eu perdi o meu INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). O Cruzeiro não pagou e não recolhi. Não sabia, né? Ignorância na época. Eu sou aposentando hoje e ganho a metade do que deveria ganhar. Vivo como um brasileiro comum, sem trabalhar, sem luxo, mas também com muita dignidade", declarou.

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O reencontro com Pelé: "Cumprimentei por educação"

Após a saga para retornar aos gramados, Procópio Cardoso, jogando pelo Cruzeiro, conseguiu viver o momento que tanto sonhava: reencontrar o Santos, de Pelé,

Era fevereiro de 1974, e o time mineiro derrotou o Peixe no Pacaembu, em São Paulo. Na época, o Jornal do Brasil narrou a conversa como como amistosa e livre de rancor, com um pedido de desculpas do Rei, o "perdão" do zagueiro e um abraço emocionado entre os dois. A versão é diferente das declarações do ex-zagueiro 46 anos depois.

Ao UOL, o ex-zagueiro disse que não se lembra os detalhes da conversa pois estava focado e no jogo e não tinha nenhuma vontade de falar com o Rei do Futebol. "Ele veio me cumprimentar, eu cumprimentei por educação, né?".

A partida terminou 1 a 0 para o Cruzeiro, gol de Dirceu Lopes. Pelé? Segundo Procópio, o craque não teve grande atuação. "Mas o Cruzeiro jogou muito bem, aliás, como jogava sempre bem contra o Santos, né?"

Reprodução/Que Fim Levou/Levi dos Santos Xavier

Cardoso com Z ou com S? Exceção na própria família

Em materiais divulgados pelos clubes e em reportagens ao longo dos anos, o sobrenome Cardoso costuma ser escrito com a letra S. No entanto, o próprio Procópio utiliza a grafia com Z nas redes sociais. Mas essa divergência tem uma explicação.

Segundo o ex-zagueiro, para se apresentar ao Cruzeiro, em 1959, precisou tirar novos documentos, mas um escrivão de Salinas registrou seu nome de forma errada.

Embora não veja problema e aceite a escrita com a letra S, já que faz parte do nome verdadeiro da família, Procópio é exceção entre os integrantes da família Cardoso, e ainda hoje possui todos os seus documentos (inclusive o antigo registro na CBF) com o Z no sobrenome.

Acervo/Cruzeiro

Pelo sofá, o fã da NBA não abre mão de um espetáculo

Depois de se aposentar como jogador em 1974, Procópio virou técnico. Comandou o Grêmio, o Atlético-MG, o Internacional e o Fluminense. Chegou a atuar no exterior, em países como Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.

Com nove títulos à beira do campo, suas maiores conquistas foram justamente no Atlético-MG (seis taças), em que ocupa o posto de segundo treinador com mais jogos pelo time (foram seis passagens no clube). Longe dos gramados e da prancheta de técnico desde 2007, Procópio mantém a sinceridade nas palavras, mas adotou um estilo mais tranquilo.

"Sou um homem muito feliz e que gosta de ver bons esportes. Gosto de ver o LeBron na NBA, um bom vôlei, o Roger Federer no tênis, o Messi no futebol... Eu admiro o espetáculo, sou exigente e gosto disso", brincou.

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