O fim do futebol no domingo?

Jogadores estão ganhando ações por jogar aos domingos e após 22h. Qual será o impacto no esporte?

Do UOL, em São Paulo Miguel Schincariol/Getty Images

Nesta semana, duas decisões da Justiça do Trabalho deixaram os torcedores o futebol brasileiro com uma dúvida vital: será que os jogos às 16 horas de domingo e os duelos depois da novela da Globo, às 22h de quarta-feira, estão com seus dias contados?

A origem do ponto de interrogação é o sucesso do ex-zagueiro Paulo André, contra o Corinthians, e do meia Maicon, contra o São Paulo, em processos trabalhistas. Os dois receberam verbas referentes a, segundo os documentos obtidos pelo UOL, atuar aos domingos e jogar após as 22h em dias de semana sem compensação.

Ainda sem jurisprudência consolidada na Justiça brasileira (isso significa um conjunto de decisões que firma um entendimento predominante nos tribunais), a questão contrapõe os dias mais tradicionais do futebol brasileiro (domingo e quarta-feira) a direitos previstos na legislação trabalhistas (a folga semanal e o adicional noturno).

De um lado, clubes, patrocinadores e a televisão se reúnem em torno de um produto fechado, consolidado e comercializado todo ano. Exibir as partidas da TV aberta após a novela é uma exigência antiga da Globo. Os jogos de domingo são protagonistas de uma grade de programação já conhecida dos patrocinadores e que faz parte do dia a dia dos torcedores.

Do outro lado, advogados com décadas de experiência no meio do futebol, cientes de que falta uma legislação trabalhista específica para os atletas. O que gera uma cultura em que clubes não atendem todas as exigências previstas na Constituição Federal e na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). O alvo são os jogos no domingo e depois das 22h.

Após a derrota na ação movida por Paulo André, o Corinthians anunciou que não quer mais jogar nos domingos ou à noite. A atitude abre um precedente para que outros clubes adotem posturas semelhantes.

Agora, o UOL Esporte explica o problema, o que está por trás das ações o que pensam os atores da discussão e responde à pergunta: o tradicional futebol de domingo à tarde está ameaçado?

Miguel Schincariol/Getty Images
Ricardo Nogueira/UOL

Os jogadores e os jogos aos domingos

O primeiro personagem da história é o zagueiro Paulo André. Agora dirigente do Athletico, ele acionou judicialmente o Corinthians em 2014. Ele alegou que por diversas vezes não teve direito a uma folga semanal. O Descanso Semanal Remunerado (DSR) é previsto em lei.

A Justiça concluiu que Paulo André não teve descanso na semana por várias vezes e condenou o Corinthians a pagar dobrado os trabalhos feitos pelo ex-zagueiro aos domingos e feriados não compensados. O Corinthians fez acordo de R$ 750 mil para encerrar o processo trabalhista, que estava em 2ª instância.

Na ação de Maicon, protocolada em 2016, além de jornada dobrada aos domingos e feriados, seus advogados solicitaram verbas de horário noturno. A Justiça condenou o São Paulo, em 2ª instância, a pagar pelas horas trabalhadas após as 22h e pelos domingos e feriados não compensados. A condenação é de R$ 200 mil, mas pode subir para R$ 700 mil com juros e correções. Cabe recurso.

As ações vitoriosas causaram reações diversas. Maicon rebateu internautas nas redes sociais, declarando que por muitas vezes deixou de receber em outros clubes e que os jogadores "devem ir atrás de seus direitos". Vários atletas apoiaram a publicação de Maicon, entre eles Fred e o lateral Edilson.

Já os advogados de Paulo André enviaram nota oficial ao UOL, publicada no Blog do Juca Kfouri, dizendo que o processo "não tratou de jogos em horários noturnos ou aos domingos, nem reclamou de horas extras", mas, entre outros pedidos, "diz respeito ao Descanso Semanal Remunerado — que nada tem a ver com horas extras, adicional noturno ou trabalho aos domingos". A questão é que os jogadores discutem o DSR justamente por jogar em domingos ou feriados.

Pedro Vilela/Getty Images Pedro Vilela/Getty Images

O que diz a lei

Jogador do futebol, como qualquer trabalhador, tem seu contrato regido pela CLT. No entanto, a Lei Pelé corre paralelamente aos acordos trabalhistas: o artigo 28 informa que a legislação trabalhista prevalece ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei". Ou seja, a Lei Pelé vale em situações desportivas especiais.

Essa "disputa" entre CLT e Lei Pelé abre espaço para interpretações. Por exemplo: o artigo 404 da CLT proíbe o trabalho noturno para menor de 18 anos. No entanto, essa atividade tem característica desportiva (ligada à Lei Pelé) e é permitida. Além disso, o artigo 406 da CLT permite a atividade do menor desde que haja autorização do juiz de Menores e cujo trabalho seja indispensável para própria subsistência e dos pais. Ou seja: existem brechas dos dois lados que podem ser explorados.

Nos casos envolvendo Paulo André e Maicon, a Justiça seguiu a legislação trabalhista, condenando Corinthians e São Paulo em ações por adicional noturno e jogos aos domingos e feriados não compensados. Os tribunais rejeitaram os argumentos dos dois clubes de que atividades aos domingos, feriados e noturnas tinham características desportivas.

Miguel Schincariol/Getty Images

Corinthians quis mostrar que é vítima

Diante do risco de ter de lidar com ações trabalhista, o Corinthians tomou uma decisão polêmica na última segunda-feira (11). O clube enviou um comunicado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), à Federação Paulista de Futebol (FPF) e à Rede Globo. O texto foi assinado pelo presidente Andrés Sanchez.

Nele, o mandatário alvinegro formalizou um pedido para que "não sejam mais marcados jogos do time à noite ou aos domingos". De acordo com Andrés, o Corinthians "se reserva no direito de eventualmente não participar dos referidos jogos".

A carta irritou a Rede Globo. Segundo fontes ligadas à emissora, o Corinthians é um dos clubes que mais criticaram a redução dos pagamentos dos direitos de TV. Na avaliação global, a pressão foi desnecessária em meio às negociações.

A reportagem apurou que o Corinthians se vê como vítima da situação, pois não tem poder de mudar os horários dos jogos. Mesmo assim, precisa lidar com ações trabalhistas, vistas pelo clube como uma das maiores demandas financeiras hoje.

Para o clube, a situação pode ser mudada apenas por CBF, FPF e Rede Globo. Por isso, ao mandar o comunicado, tornando-o público de forma indireta, o Corinthians tentou mostrar que é "vítima do sistema".

Essa declaração [do presidente do Corinthians Andrés Sanchez] é quase uma confissão, né. De que tem direito, mesmo, se tiver jogo à noite e final de semana. O problema não é jogo ao final de semana. É a falta da concessão da folga. A folga não é no domingo, é no dia subsequente ao jogo do final de semana. Mas quando tem dois jogos na semana, não tem folga. O problema é a falta de concessão do descanso

Leonardo Laporta, advogado trabalhista

Quem faz a tabela é a Federação, o clube aceita. O trabalhador se submete ao cumprimento daquilo. Se perguntar para o jogador se prefere jogar às 22h ou às 18h, é claro que ele vai falar 18h. Por questões econômicas, jogos são disputados no horário de interesse das emissoras. É inerente jogar à noite, vão dizer. Ok, também é inerente ao vigia noturno, está até no nome. Ser inerente não afasta a obrigação legal

Leonardo Laporta, advogado trabalhista

Wagner Meier/Getty Images Wagner Meier/Getty Images

Ação não tem eco em outros clubes

A ação solitária do Corinthians não encontrou apoio em outros clubes do Brasil. Entre as agremiações consultadas pelo UOL, nenhuma cogita tomar a mesma medida de Andrés Sanchez.

A reportagem conversou com times do Sul e de Minas Gerais. Grêmio e Internacional, por exemplo, dizem não ter ações desta natureza em andamento. Gustavo Juchem, vice-presidente jurídico do Inter, disse que as decisões são casos isolados, mas ressalta: "Seria conveniente que a questão fosse resolvida de modo expresso pela lei. Aí teríamos mais tranquilidade, segurança".

O Atlético-MG venceu disputas desta natureza contra Gilberto Silva, Josué e Richarlyson. Todos estiveram no clube durante esta década. O advogado Lásaro Cândido Cunha, vice-presidente do Galo e um dos responsáveis pelo departamento jurídico, aponta as diferenças entre a legislação trabalhista e a Lei Pelé:

"A Lei Pelé estabelece uma série de vantagens diferenciadas para o atleta profissional e define, inclusive, o direito do clube de promover concentrações, respeitando os limites. A própria Lei Pelé diz que outras parcelas, devidamente questionadas, deveriam ser acertadas. É um trabalhador com uma série de vantagens que o trabalhador comum não tem, como o direito de arena. É uma atividade especial que não pode dividir vantagens da Lei Pelé e os benefícios da lei comum".

"O contrato do jogador é por prazo determinado. Se o clube quiser rescindir esse vínculo, ele deve pagar a integralidade do contrato. No caso do trabalhador comum que tenha um contrato por prazo determinado, o empregador paga só metade. Há uma série de vantagens previstas pela Lei Pelé, razão pela qual não se pode cogitar pedidos de um trabalhador comum", completou.

O Cruzeiro é quem demonstra mais de preocupação. Os dirigentes do clube mineiro se reunirão na tarde de hoje (14) a fim de discutir o tema. A cúpula, contudo, acredita que a mudança solicitada pelo Corinthians é inviável.

A reportagem apurou, ainda, que em um grupo de WhatsApp com advogados dos clubes da Série A e da Série B houve repercussão do ocorrido, mesmo que de forma superficial. Todos criticaram as decisões da justiça trabalhista favoráveis a Paulo André e Maicon.

Presidente do Saferj (Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio Janeiro) e membro da Fenapaf (Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol), Alfredo Sampaio também se manifesta de forma contrária. Ele, contudo, alega que não pode representar a voz uníssona dos atletas.

"Eu não concordo com jogos nesse horário, mas eu sempre fui contra a cobrança de hora-extra no futebol, por causa de concentração e viagem. Eu conheço muitos advogados que estão vivendo disso, dessas oportunidades que estão sendo dadas. A gente sempre defendeu que faz parte jogar à noite e aos domingos. Isso é inerente ao futebol. Você sabe, quando vai jogar, que terá que concentrar, viajar, jogar à noite. Não compactuo dessa visão [de cobrar horar-extra e adicional noturno], porque acho que é inerente à profissão. Mas acho que os jogos às 22h são excessivos", declarou.

"Eu nunca concordei com isso [cobrança de hora-extra e adicional noturno], já falei isso inclusive para alguns jogadores. Eu não concordo, eles não trabalham oito horas por dia, como um trabalhador comum. Mas também é uma situação inerente à profissão. Infelizmente, temos vários advogados vivendo disso. É complicado, mas não acho certo isso", acrescentou.

Pedro Vilela/Getty Images

O que dizem as TVs

O horário dos jogos de futebol no Brasil é definido prioritariamente pelos detentores dos direitos de transmissão. São as emissoras de televisão que indicam suas prioridades com base, claro, em audiência para conseguir atrair mais patrocinadores. Por mais que as tabelas sejam montadas por confederações e federações — a CBF elabora a do Campeonato Brasileiro, por exemplo -, é quem paga a conta que define a disposição das rodadas e em qual horário e dia serão disputadas as partidas mais atraentes.

Para a Globo, que detém os direitos para TV aberta, fechada e pay-per-view da maioria dos times da Série A do Brasileiro, os jogos aos domingos e em horários noturnos são uma tradição de décadas e se consolidaram como parte da rotina dos torcedores. Não há, portanto, qualquer intenção de mudar isso, pelo menos a curto prazo.

"Às autoridades cabe considerar as peculiaridades dessa atividade profissional [jogadores de futebol], inclusive dias e horários em que tradicionalmente é desempenhada, a fim de que se fortaleça e possa continuar a oferecer opção de trabalho para milhares de brasileiros", disse a direção da Globo, por meio de nota.

O UOL apurou que a Globo, apesar de admitir o movimento tem potencial para mudar a estrutura do futebol no país, viu a manifestação do Corinthians mais como uma maneira de levar à mídia o debate dos processos trabalhistas que sofre do que de fato algo que pretenda fazer. Os contratos mostram que são os detentores de direito que definem os horários e, portanto, não jogar se a tabela marcar uma partida para domingo significa não receber o dinheiro que, para muitos clubes de grande porte, vale um terço de toda a receita anual.

Saindo do cenário nacional, na Copa Libertadores a situação se torna ainda mais crítica no que se refere aos jogos noturnos. O torneio continental ocorre aos meios de semana e a Conmebol tenta evitar ao máximo confrontos no mesmo horário, justamente para evitar concorrência entre as partidas e agradar a todos os players que detém os direitos de transmissão. Isso deixa inviável não ter partidas com times brasileiros começando após às 21h.

Por exemplo: o Facebook, que tem exclusividade em partidas às quintas-feiras, teria sete partidas de times brasileiros na fase de grupos da Libertadores-2020 antes da paralisação por causa da pandemia do novo coronavírus, todas começando às 21h por contrato. A avaliação das emissoras é que um time brasileiro que não quiser jogar à noite terá que abrir mão da Libertadores.

Miguel Schincariol/Getty Images Miguel Schincariol/Getty Images

Federações temem ações coletivas

CBF e federações estaduais, por enquanto, observam como espectadores o que parece ser um início de batalha entre clubes e jogadores com relação a acordos trabalhistas. Internamente, a direção da CBF avalia que será preciso que clubes e associações de jogadores sentem para conversar e, se possível, acertem contratos que sejam benéficos aos dois lados.

Por enquanto, a entidade não vê como viável qualquer mudança em dias ou horários de jogos que já estejam consolidados — avaliação parecida com a dos detentores dos direitos de transmissão.

A preocupação se estende a clubes menores de estados fora da elite do futebol. Se houver ações coordenadas de associações de atletas por processos, algo que a cartolagem desconfia que possa acontecer, isso pode atingir em cheio clubes menores que já estão em crise financeira por causa da perda de receita com as paralisações.

Leonardo Laporta, ouvido pela reportagem, por exemplo, cuida de 42 casos que se encaixam nessa situação. Por isso não é descartado que seja criada uma comissão, caso seja necessário, para tratar do assunto com todos os entes envolvidos.

Assista: "Futebol acontece quando torcedor pode ir ao estádio"

Solução passa pela segunda-feira

A solução para evitar que o futebol aos domingos deixe de ser uma tradição passa, curiosamente, pela segunda-feira. A conclusão de vários profissionais envolvidos ouvidos pelo UOL é a de que o ajuste para evitar ações judiciais milionárias de jogadores contra os clubes é procurar saídas para se adaptar à legislação. E utilizar a semana útil para conceder o descanso remunerado aos atletas.

"O problema é que fazem o treino regenerativo na segunda. Aí treina na terça, concentra, joga quarta. Quando tem um jogo só na semana eles tem o descanso, quando tem dois, nunca tem. Então o problema não é o jogo de domingo em si, é a não concessão da folga. É o descanso semanal. Para todo o trabalhador é no domingo, para o jogador poderia ser na segunda, nada impede até de ser na terça", explica o advogado Leonardo Laporta.

Utilizar a segunda-feira para descansar os jogadores, porém, traz uma série de obstáculos. Primeiro porque o dia passou a ser usado, também, para a realização de partidas — algo consolidado no futebol europeu e que serviu de modelo para a implementação no país a partir de 2016. Além disso, a recuperação física dos atletas para as partidas de meio de semana precisa ser otimizada. E treinos presenciais nos dias seguintes aos jogos são usados justamente para isso. Além disso, existem as tradicionais concentrações, que ainda são regra nos clubes brasileiros e ocupam o dia anterior às partidas.

Fazendo as contas, em uma semana de sete dias, temos dois de jogos, dois de recuperação, dois de concentração. Sobra um. Para treino ou folga.

Especialista em processos de trabalho, o advogado Eduardo Galvão destacou que é questão de "ajustes contratuais". O advogado sugere a realização de acordos de compensação de horas, previsto em lei, e que os departamentos de RH dos clubes estreitem conexão com a área de futebol para sincronizando orientações laborais com a programação de jogos e treinos. "É como um contrato de banco de horas. Se o atleta trabalhar a semana sem nenhum dia de descanso, essas horas podem cair no banco de horas ou serem remuneradas. Essas horas podem ser descarregadas no fim do ano ou quando abrir um espaço no calendário".

Solucionar a questão passaria por uma mudança, no mínimo parcial, de cultura. Se não é possível tirar o futebol dos domingos e quartas depois da 22h, será necessário rever outras particularidades, como as concentrações ou a necessidade de ir ao clube para os treinos regenerativos pós-jogo.

"Concentração é um pouco retrógrado, o atleta tem que dormir lá para saberem se vai para a balada ou não vai. O atleta é profissional, tem que saber das obrigações e cumprir. Se ele não cumpre, o clube que penalize. Ou então, que se mude a legislação para que haja previsões específicas para os jogadores de futebol", fala Laporta.

"Talvez seja o momento de a relação atleta/clube evoluir na questão do condicionamento físico fora do clube. Se um atleta jogar no domingo, ele vai precisar ir mesmo ao clube no dia seguinte para se recuperar? Será que a partir de agora esse atleta não poderá realizar essa recuperação de casa?", completa Galvão.

+ Especiais

Divulgação/Santos FC

Santos de 2010: dez anos depois, Dorival Júnior conta histórias do time que fez o Brasil dançar.

Ler mais
Bruno Ulivieri/AGIF

Alexandre Mattos relembra chapéu por Dudu do Palmeiras: "Ninguém imaginava nem tentar".

Ler mais
Divulgação/NWB

Fred, do Desimpedidos, mudou de vida após bombar no YouTube. Hoje, virou profissional no futsal.

Ler mais
Zô Guimarães/UOL

Ruy Rey foi acusado de ser expulso de propósito em final do Paulistão. Após 42 anos, nada mudou.

Ler mais
Topo