A culpa é do bilionário

Por que torcedores alemães consideram Dietmar Hopp, um dos 100 mais ricos do mundo, o maior vilão do futebol

Fátima Lacerda Colaboração para o UOL, em Berlim (Alemanha) Cathrin Mueller/Bongarts/Getty Images

A vida sem futebol é possível, mas não faz nenhum sentido. Essa frase é uma adaptação livre do grande mestre da sátira alemã, Loriot. O coronavírus marcou um gol contra num momento literalmente explosivo das arquibancadas do futebol alemão. Dinheiro e um dos 100 homens mais ricos do mundo estão no centro de um debate violento.

Hoje, o maior inimigo das torcidas alemãs é o futebol-comércio. Após ondas de protestos contra o Red Bull de Leipzig, que incluiu até uma cabeça bovina arremessada contra o campo por torcedores rivais em um jogo da segunda divisão (o clube hoje é um dos melhores times da elite da Bundesliga), os ultras agora se voltam contra Dietmar Hopp.

Aos 80 anos, ele é dono do Hoffenheim desde julho de 2015. E também um dos fundadores da SAP, uma das gigantes do mercado de software no planeta e empresa hoje avaliada em 134,9 bilhões de dólares segundo a Forbes. Ainda de acordo com a publicação especializada em economia, a fortuna de Hopp é de 14,7 bilhões.

A partir de agora, você vai ver de onde vem a raiva contra ele.

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Incêndio nas arquibancadas

Imagine uma arquibancada pegando fogo durante um jogo do seu time. A cena assustadora é rotina em partidas com torcidas mais violentas na Alemanha. O fogo é causado por artefatos pirotécnicos infiltrados ilegalmente nos estádios. Chega ser irônico que o início do returno do Campeonato Alemão 2020/21 não tenha sido marcado por fogo.

O fogo seria a representação perfeita para o que sentem os torcedores. Há ódio nas arquibancadas. Nos fins de semana de fevereiro e março, elas se tornaram plataformas políticas para extravasar o sentimento acumulado por anos contra o futebol-comércio, personificado por Hopp e pela Federação Alemã de Futebol, a DFB (Deutsche Fussball-Bund).

A empresa do bilionário tinha uma parceria de negócios com a federação. A SAP criava softwares de gestão para a Federação. Para os torcedores, era como se o Hoffenheim estivesse ditando como a entidade é comandada.

Ninguém nunca aceitou muito bem essa parceria - principalmente quando é lembrado que o clube em questão, que nunca foi muito forte, passou a disputar as primeiras posições após virar parte do conglomerado Hopp.

Para surpresa de poucos, esse ódio uniu até clubes rivais como o Borussia Dortmund e o Schalke 04.

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Bayern de Munique, Dortmund e outros se unem em protestos

As coisas começaram a escalar em setembro de 2019, quando torcedores do Borussia Dortmund exibiram faixas com ofensas a Hopp. Depois, foi a vez de a torcida do Bayern de Munique, também em jogo contra o Hoffenheim, em fevereiro de 2020, repetir os protestos.

Foi a gota d'água. O placar já estava 6 a 0 para o clube bávaro e o jogo foi paralisado. Houve confusão no gramado e a polícia entrou em campo. Quando o jogo foi retomado, atletas gastaram o tempo que sobrava tocando a bola de lado.

Os torcedores do Eintracht Frankfurt exibiram na semana seguinte uma faixa irônica com o nome de seu técnico, Adi Hütter, mas que tinha como alvo a federação alemã: "Adi, se você quiser uma interrupção do jogo, é só avisar".

Um dos maiores clubes do país jogou lenha na fogueira. O CEO do Bayern de Munique, Karl-Heinz Rummenigge com a frase: "Essa é a face mais horrorosa do Bayern". Campeão da Champions em 1974/75, ele não é exatamente o melhor exemplo quando o assunto é combate ao futebol-comércio. Além de ser CEO de um dos clubes mais ricos do mundo, já foi pego no aeroporto por não declarar na alfândega dois relógios Rolex. Desde então, foi apelidado pelas torcidas como Rollex-Kalle.

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O líder em protestos

A brincadeira da torcida do Frankfurt, campeão da Taça Uefa (que virou Liga Europa em 2009) em 1980, mostra que humor ácido é sua especialidade. Entre as faixas mais emblemáticas das semanas do protesto, uma delas dizia: "Nosso futebol foi vendido por vocês. A conversa de vocês é só para inglês ver" ("Unser Fußball durch euch verkauft, euer Dialog nur Schall und Rauch", em alemão).

É a prova de que há tempos não há diálogo entre arquibancadas, chefes das torcidas e federação. Quem vive na Alemanha e acompanha futebol percebe que não há vontade política (nem um plano B) para minimizar o abismo entre torcida e cartolagem.

O lema "Fale conosco e não sobre nós", um apelo das arquibancadas que ficou famoso entre 2012 e 2014, continua ignorado. A convulsão nas arquibancadas fez crescer um outro fenômeno: a politização dos Ultras, que durante muito tempo foram rotulados pelos analistas esportivos de "apolíticos".

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Bilionário disse não a Donald Trump sobre vacina contra coronavírus

Odiado entre torcidas, Hopp se tornou assunto nas últimas semanas por um motivo longe do futebol, mas que tem tudo a ver com seu dinheiro. Ele encarou os Estados Unidos ao dizer "não" a ninguém menos que Donald Trump. Em poucos dias a atitude o transformou em benfeitor.

Tudo começa com a busca de uma vacina para o novo coronavírus no laboratório CureVac, localizado na cidade-universitária de Tübingen, no sul da Alemanha. Ali, a equipe vem trabalhando intensamente para a criação de uma vacina contra a Covid-19. Hopp é seu maior acionista.

O embate com Trump se deu quando ele tentou convencer cientistas do laboratório a trabalharem nos EUA oferecendo a fortuna de 1 bilhão de euros para obter a vacina em primeira mão. Tudo com uma condição: ela só poderia ser utilizada nos EUA — ou seja, somente os americanos desfrutariam da vacina. Hopp disse "não".

Com o aval da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, ele alegou que caso o laboratório ganhe a corrida e seja o primeiro a fabricar a vacina, ela seria para todos. A notícia quebrou a internet. A postura do bilionário encantou os alemães, que "esqueceram" o "lado feio do futebol" protagonizado por Hopp. Sem a bola rolando por causa da pandemia, ele ainda vai demorar para saber se essa nova fama terá efeito nos estádios.

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Os jogos-fantasma

O foco de quem fala e vive do futebol hoje é a sobrevivência financeira. Enquanto analistas de futebol discutem o prejuízo para os clubes (direitos de TV, venda de artigos esportivos, bilheteria), incluindo a atual ameaça de falência do Schalke 04 e a preocupação com times da segunda e terceira divisões, as arquibancadas se mostram, em esmagadora maioria, contra a realização de jogos sem público. Na Alemanha, são chamados de jogos-fantasma.

Várias enquetes realizadas no país nos últimos dias provam isso. Nesse quesito, a rivalidade entre as torcidas se neutraliza e mostra que sim, é possível um consenso e aderir, juntos, àquilo que o momento exige: Ficar em casa. "Jogo Fantasma não é a solução", diz uma faixa na cidade de Stuttgart.

Pressão para volta do futebol

A Liga Alemã de Futebol (DFL, na sigla em alemão) criou uma Força Tarefa para o reinício da Bundesliga com jogos de portas fechadas a partir de maio. Segundo o tabloide Bild, um dossiê de 41 páginas com instruções meticulosas sobre como deve ser a logística e o comportamento de todos os envolvidos foi feito para garantir a segurança.

Entre os primeiros passos para o reinício da Bundesliga está a missão de testar todos os jogadores. O sinal verde para a retomada do campeonato, porém, precisa vir do setor político. E isso dependerá do percentual de achatamento da curva de contágios da população geral, não dos índices de atletas que não foram afetados.

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Memórias de um tempo remoto: quando o futebol ainda 'existia'

A Alemanha decretou o lockdown para controlar o coronavírus em 22 de março e hoje em dia fevereiro parece distante. O país viveu uma onda de contaminações, diminuição de infectados e hoje faz uma lenta reabertura.

Em fevereiro, a bola ainda rolava e no primeiro fim de semana, eu estava nas arquibancadas do estádio Signal Iduna Park, a casa do time do meu coração, o Borussia Dortmund. Era uma tarde nublada em uma cidadezinha em que até o ponto de ônibus remete ao futebol.

Dortmund foi destruída pelos bombardeios da II Guerra Mundial. Reconstruída, vive dos desdobramentos da paixão pelo Borussia.

Naquela tarde de sábado, o time jogaria contra o União Berlin, novato na primeira divisão. Nos restaurantes de beira de estrada, era possível vislumbrar um mar vermelho de torcedores a caminho -são quase 500 km entre Berlim e Dortmund. Para quem acha que lugar de mulher não é em um estádio de futebol, a imensa quantidade de adesivos do time berlinense colada no banheiro feminino do estádio serviria para mudar de opinião. Uma nítida atitude de rebeldia em terreno inimigo.

Naquela tarde, o inglês Jadon Sancho abriu o placar aos 13 minutos, seguido por Haaland aos 18. Naquele jogo, o jovem norueguês balançou as redes mais uma vez e o Dortmund venceu por 5 a 0. A partida também teve gols de Reus e Wizel.

Ainda não chegamos ao meio do ano e essas memórias parecem de um passado muito remoto em um mundo com as arquibancadas em silêncio e prioridades bem diferentes.

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