Nocaute do milhão

Dificuldade fez brasileiros quase desistirem do MMA. Prêmio milionário da PFL é a chance de mudar de vida

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Ryan Loco/PFL

Natan Schulte vivia um dilema depois de voltar de um período de três meses trabalhando em Boston, no Estados Unidos. Morando na Flórida, o brasileiro cogitava largar o MMA para seguir como pintor. O bico que havia conseguido lhe dava uma renda de US$ 3 mil. Era mais que suficiente para manter um estilo de vida tranquilo em terras estadunidenses.

Ele ainda tinha contrato com a hoje extinta WSOF, mas não criava expectativas após perder para Islam Mamedov em 2017. Só que a WSOF virou PFL (Professional Fighters League) e criou um torneio diferente para 2018: um mata-mata parecido com os do futebol e um atrativo de US$ 1 milhão para o campeão de cada divisão.

Natan não estava entre os tops. Pouca gente sabia quem ele era, mesmo treinando na renomada American Top Team. Mas o contrato estava em vigor, e a PFL precisava de 12 atletas para completar o chaveamento. Natan foi chamado.

Como nos roteiros dos filmes de luta, ele saiu de azarão para campeão. Superou cinco adversários em seis meses e recebeu o cheque de US$ 1 milhão. No ano seguinte, Natan engatou mais uma sequência vitoriosa e levou para casa seu segundo milhão. Os dias de pintor ficaram para trás.

Depois de um hiato de um ano por causa da pandemia, a PFL começa hoje (23) seu quarto "torneio do milhão", em uma bolha na cidade de Atlantic City (EUA). Serão 14 brasileiros buscando o sonhado prêmio em seis divisões. Enquanto para uns o título vale mais que dinheiro, para outros é a chance de ser o Natan Schulte da vez.

Ryan Loco/PFL
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A última chance

Pensar em desistir é algo comum na carreira dos lutadores. A grana não chega para todos e, com o tempo, levar soco na cara por uns trocados deixa de ser boa ideia. Mariana Morais começou a pensar nisso depois de sua quinta derrota em seis lutas, em 2018. Os grandes eventos não costumam se interessar por quem tem muito revés no cartel, então, a cada vitória que escapava, Mariana via os rumos da carreira ficarem mais difíceis.

O medo de não dar certo a deixou grogue, como se tivesse levado um direto na cara. Depois de perder para Norma Dumont, ela pegou as coisas no Rio de Janeiro e voltou para São João da Boa Vista (SP), onde a família mora. "Não acreditava mais em nada: nem na minha carreira, nem no meu potencial".

Ela não pensou em luta durante seis meses. Entrou em contato com um amigo que era gerente de um McDonald's e cogitou trocar as luvas pela chapa quente. Mas, na hora "H", não conseguiu. Antes da entrevista, mandou mensagem para Gilliard Paraná, dono da PRVT, casa da ex-campeã do UFC Jéssica Andrade, e avisou que queria retornar para a equipe. "Então vem", ele respondeu.

Mariana teve mais um knockdown antes de entrar nos eixos. Perdeu para Vanessa Melo, no Future FC 5. Mas venceu as mais importantes da carreira. O Shooto Brasil realizou um torneio em que o vencedor conseguiria um contrato com a PFL. Mariana engatou três vitórias seguidas e ficou com a vaga.

A vida não será fácil no torneio do milhão dos leves feminino. Mariana estreia contra a bicampeã Kayla Harrison. "Eu tenho na minha cabeça que é a minha última chance. Eu tenho que vencer essas lutas e me tornar campeã desse evento".

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Recomeço

Larissa Pacheco conhece bem Kayla Harrison. Foi para ela a derrota na final de 2019 que tirou a chance de conquistar US$ 1 milhão. "Tenho ela entalada na garganta".

A paraense completava um intenso processo de recuperação quando disputou o prêmio. Era a primeira vez que fazia uma sequência de lutas sem que seu braço esquerdo quebrasse. Durante três anos, ela passou mais tempo em tratamentos do que dentro dos ringues. "Pensei várias vezes em parar".

O perrengue começou no auge de sua carreira. Aos 20 anos, ela era a atleta mais jovem a lutar pelo UFC. Depois de uma estreia apressada contra Jéssica Andrade, que terminou em derrota por finalização, enfrentou a ex-campeã Germaine de Randamie. A derrota por nocaute no segundo round em 2015 rendeu um braço quebrado.

"Toda vez que eu tentava me recuperar, me lesionava de novo. Passava o ano todo treinando bem, mas quando chegava próximo de uma competição, o braço quebrava", explica.

As sucessivas fraturas eram sequelas da cirurgia feita para colocar uma placa de platina no braço. Larissa admite ter apressado a recuperação, o que resultou em novas lesões. "Eu queria muito voltar, e nessa ansiedade acabei me lesionando duas vezes".

A última cirurgia retirou a placa de platina no braço. Dessa vez, ela seguiu as orientações e ficou um ano sem treinar forte. "Só estava treinando jiu-jitsu mesmo, porque não conseguia parar". O braço nunca mais deu problema.

Cooper Neill/Zuffa LLC via Getty Images Cooper Neill/Zuffa LLC via Getty Images

A outra luta de Larissa

A lutadora acredita que resolveu o problema no braço e volta ao torneio do milhão tentando estabilidade. A falta de grana vem de longe. Com 15 anos, Larissa debutou no trabalho. Se esgoelava na feira de Marituba (PA) anunciando a farinha feita pelo avô, dono da barraca.

Tirava R$ 20 por dia no trabalho. Era a única renda que entrava em casa. A mãe doméstica precisou parar de trabalhar por causa de uma mastectomia. Foram dois anos com Larissa sendo o arrimo da família. A grana da feira era completada com os R$ 50 por semana que conseguia trabalhando na loja de roupa da tia. "A gente só não passava fome porque comíamos na casa dos meus avós".

O sol chegava depois que a rotina de Larissa começava. Às 4h, ela já estava de pé rumo à feira. Ficava lá até às 12h, com um breve intervalo de duas horas para treinar. Na sequência, ia para a escola, que ficava a quatro quilômetros de casa. "Eu ia estudar com a bicicleta do meu amigo, mas quando ele usava, tinha que ir a pé". Saía do colégio às 18h e iniciava mais uma sequência de treinos até a hora que a academia fechasse. Por volta das 0h, chegava em casa e se preparava para começar tudo de novo.

A rotina que seguiu até os 18 anos trouxe a mesma dúvida que pairou sobre Natan Schulte na época de pintor. Era pouco apoio e muito trabalho para os R$ 300 que tirava a cada luta. Isso em dia bom, porque tinha evento que rendia apenas R$ 150. "Eu tinha outras prioridades naquele momento: eu precisava comer, precisava me vestir".

Larissa insistiu mais um pouco e começou a ter retorno aos 19 anos, quando foi contratada pelo Jungle Fight, em 2013. "No Jungle, as bolsas eram maiores. Tinha vez em que eu ganhava R$ 4 mil. O dinheiro que eu ganhava já investia no próximo camp. Nessa época, minha mãe já tinha se recuperado e voltado a trabalhar".

Depois de passar pelo UFC e superar as dificuldades com o braço, Larissa se encontra em uma situação financeira um pouco melhor. Morando em Ananindeua (PA) com a namorada, ela abriu um negócio de comida para a mãe. Os próximos passos ela espera que venham com o US$ 1 milhão da PFL.

"Ia mudar tudo na minha vida. Eu ia poder fazer as coisas com muito mais tranquilidade. Iria para os Estados Unidos fazer um bom camp e ficaria mais tranquila em relação à minha família e às pessoas que dependem de mim aqui no Brasil. Não dá nem para explicar, seria uma mudança radical".

A mudança

Natan sentiu essa mudança desejada por Larissa quando venceu o torneio da PFL pela primeira vez. As bolsas de R$ 1 mil que ele tirava em eventos no Brasil se transformaram em uma bolada de US$ 1 milhão na PFL. Tanto dinheiro permitiu uma extravagância que a infância não deu oportunidade.

Uma das primeiras coisas que Natan fez ao receber a grana foi comprar funkos pops, aqueles bonecos cabeçudos colecionáveis. "Eu tinha um ou outro, mas aí gastei uns US$ 800 neles. Tenho um quarto só desses bonecos aqui em casa".

Essa foi a grande extravagância feita por Natan com o dinheiro. "Nunca comprei uma Ferrari ou coisa do tipo". Ele estima ter ficado com 65% do milhão depois de pagar a academia onde treina, seu empresário e os impostos. Com o restante, comprou um carro e um apartamento na Flórida, nos Estados Unidos. Pouco tempo depois, adquiriu outra casa.

"Esse dinheiro me deu a independência financeira que eu precisava para só treinar e lutar. Eu nunca tinha ganhado dinheiro lutando, porque os eventos menores não pagam muito bem. A minha primeira bolsa boa foi na PFL, que me pagou US$ 16 mil na primeira luta que fiz em 2018. Foi dali para frente que tudo mudou".

Natan já estava mais estruturado quando o segundo milhão chegou. "Consegui investir, fiz um plano de aposentadoria e tudo mais". No caminho para o terceiro, ele sabe que será o alvo principal dos aspirantes a milionários da categoria dos leves.

"O campeão sempre vai ser o cara mais visto, vai ter um alvo nas costas, mas eu continuei treinando, tirei esse um ano sem evento para aproveitar para melhorar tudo que eu podia. Então vai ser um ano bom, que eu vou vir com bastante armas novas".

Ryan Loco/PFL
Reprodução/Mike Angel Vision

O embaixador

A relação de Fabrício Werdum com a PFL é diferente das histórias contadas até aqui. Ele chega não como alguém em busca de um espaço, mas como o lutador capaz de levar a organização para a mesa das gigantes. O brasileiro foi contratado junto com Anthony Pettis, também ex-campeão do UFC, para ser o novo rosto da organização. No anúncio da contratação foi chamado de "o melhor de todos os tempos".

Mais do que lutar pelo milhão, ele tem a missão de ser embaixador do evento. "Eu quero levar uma edição do PFL ao Brasil para poder dar chance a outros atletas também".

A preocupação de Werdum é evitar que a função fora do ringue atrapalhe o dever dentro dele. Ele quer afastar a impressão de que tem menos fome por já ter uma carreira consolidada e uma vida financeira estabilizada.

"Eu não posso pensar desse jeito porque senão vou ficar com menos vontade do que eles e nada a ver. Estou com a mesma vontade deles. Quem não quer 1 milhão de dólares? Quem não quer, o que seria no Brasil, R$ 5 milhões? Óbvio que qualquer lutador quer isso".

Entenda o formato

Quantos atletas disputam a temporada 2021?

São 60 atletas divididos em seis categorias: leves feminino, pena, leves masculino, meio-médio, meio-pesado e pesado.

Quantos se classificam para o mata-mata?

Por causa da pandemia, o torneio da PFL será mais curto esse ano. Apenas quatro lutadores de cada divisão se classificarão para a próxima fase. Eles disputarão a semifinal e a final, que dará ao vencedor US$ 1 milhão.

Como funciona a pontuação da PFL?

A temporada regular é definida por pontos corridos. A pontuação é distribuída da seguinte maneira*:

Vitória - 3 pontos
Empate - 1 ponto
Derrota - 0 ponto

*Caso um lutador não bata o peso, mas seja autorizado a lutar, ele não somará pontos, independentemente do resultado, terá um ponto retirado da classificação geral e dará 20% de sua bolsa ao rival. O adversário somará automaticamente três pontos e poderá conseguir pontuações extras se vencer por paralisação.

Os lutadores ainda recebem pontos extras se a vitória vier por paralisação (nocaute, finalização ou nocaute técnico)*:

Vitória no round 1 - 3 pontos
Vitória no round 2 - 2 pontos
Vitória no round 3 - 1 ponto

*Caso um lutador desista entre os rounds, a pontuação para o vencedor será referente ao último round completado.

A posição do mata-mata será definida pela classificação da temporada regular. O primeiro lugar enfrentará o quarto na semifinal, enquanto o segundo pega o terceiro.

E se um lutador se machucar?

A PFL conta com atletas reservas para substituírem os lesionados da temporada regular. Caso o lutador machucado tenha feito apenas uma das lutas na temporada regular, seus pontos seguem valendo e ele tem chance de avançar ao mata-mata. Para a fase eliminatória, a PFL indicará dois reservas que substituirão possíveis lesionados na semifinal e na final.

Confira os cards já confirmados

PFL 1 - 24 de abril

Card Principal

Leves: Anthony Pettis x Clay Collard
Leves: Natan Schulte x Marcin Held
Penas: Movlid Khaibulaev x Lazar Stojadinovic
Penas: Lance Palmer x Bubba Jenkins

Card Preliminar

Leves: Loik Radzhabov x Alexander Martinez
Leves: Joilton Lutterbach x Raush Manfio
Leves: Akhmet Aliev x Mikhail Odintsov
Penas: Chris Wade x Anthony Dizy
Penas: Sung Bin Jo x Tyler Diamond
Penas: Brendan Loughnane x Sheymon Moraes

PFL 2 - 29 de abril

Card Principal

Meio-médio: Rory MacDonald x Curtis Millender
Meio-médio: Ray Cooper III x Jason Ponet
Meio-pesado: Antônio Cara de Sapato x Tom Lawlor
Meio-pesado: Emiliano Sordi x Chris Camozzi

Card Preliminar

Meio-médio: Magomed Magomedkerimov x João Zeferino
Meio-pesado: Vinny Magalhães x Jordan Young
Meio-pesado: Cezar Mutante x Nick Roehrick
Meio-médio: Gleison Tibau x Alexey Kunchenko
Meio-médio: Sadibou Sy x Nikolay Aleksakhin
Meio-pesado: Dan Spohn x Marthin Nielsen

PFL 3 - 6 de maio

Card Principal

Pesado: Fabrício Werdum x Renan "Problema" Ferreira
Leves feminino: Kayla Harrison x Mariana Morais
Pesado: Ali Isayev x Hatef Moeil
Leves feminino: Genah Fabian x Laura Sanchez

Card Preliminar

Pesado: Mohammed Usman x Brandon Sayles
Pesado: Denis Goltsov x Justin Willis
Leves feminino: Larissa Pacheco x Julija Pajic
Pesado: Ante Delija x Bruno Cappelozza
Leves feminino: Cindy Dandois x Kaitlin Young
Leves feminino: Olena Kolsnyk x Taylor Guardado

Eventos a serem anunciados da temporada regular:

PFL 4 - 10 de junho (penas e leves)
PFL 5 - 17 de junho (meio-médio e meio-pesado)
PFL 6 - 25 de junho (pesados e leves feminino)

Os eventos dos mata-matas ainda não têm data confirmada.

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