A dor que fica

Familiares e feridos tentam seguir a vida um ano depois do incêndio que matou 10 atletas no Ninho do Urubu

Alexandre Araújo e Brunno Carvalho Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo Folhapress

"Quando você perde um pai ou uma mãe, você vira órfão. Mas quando perde um filho, vira o quê?". As famílias das vítimas do incêndio do Ninho do Urubu ainda não encontraram esta resposta. Estão ocupadas em assimilar o que aconteceu. Amanhã (8) a tragédia completa um ano, e a dor é imensurável.

Algumas se agarram à fé, enquanto outras preferem falar sobre o filho como uma espécie de terapia. Ao mesmo tempo, a disputa pelas indenizações segue. O Flamengo fez acordo com três famílias e um pai, mas outras ainda devem entrar na Justiça contra o clube carioca.

Um ano após a tragédia, há também aqueles que conseguiram escapar. Para eles, a vida continua. Nunca da mesma maneira. Mas o futebol voltou à rotina dos três feridos, e os nomes dos meninos que se foram estão marcados em sua memória e na pele de alguns deles para sempre. Independentemente do que viveram nas dependências do Centro de Treinamento em 8 de fevereiro do ano passado, o clube rubro-negro ainda é visto como um caminho para o sonho de jogar futebol.

Familiares das vítimas do Ninho falaram com o UOL Esporte. O depoimento deles você lê abaixo.

"Falar do Bernardo me alivia"

"A perda de um filho é imensurável, insuportável. Sempre digo que quando você perde um pai ou uma mãe, você vira órfão. Mas quando perde um filho, vira o quê? Não tem expressão nenhuma para definir isso. Mas falar do Bernardo me alivia, me fortalece e me conforta. Ele tinha uma frase de que gostava muito que era 'nem ganhar nem perder, sempre evoluir'. A gente tem que levar isso com a gente.

O Bernardo começou no futsal com oito anos, queria a seleção, queria um clube maior. Ele tinha muita fome de viver.

Não tenho mágoa do Flamengo como instituição. Tenho mágoa da diretoria. Tudo poderia ter sido tratado de outra forma por eles. O presidente [Rodolfo Landim] esteve lá no dia do acidente, nos cumprimentou. Mas naquele dia ninguém estava com cabeça para nada. A gente nem sabia qual era o estado dos corpos, que horas eles seriam liberados...

Um simples bater nas costas da diretoria depois faria todo efeito, toda a diferença. Esperamos até hoje o bater nas costas. Esse gesto faria toda a diferença. Cara, embarca num avião uma semana depois, vem conversar com as famílias. Vem aqui em casa. 'Olha, Darlei, aconteceu um acidente, vamos apurar o que aconteceu... Quanto às indenizações, os advogados vão conversar, mas nós estamos aqui para prestar todo apoio possível'.

Não estaria essa confusão toda que está hoje. Só queríamos uma satisfação. Sobre o dinheiro de indenizações, cabe a cada um julgar. É uma briga que os advogados devem conduzir.

O que realmente me importa é a saudade do Bernardo. A falta que ele faz é enorme todo dia e nunca vai ser superada. Eu e minha família tomamos remédio para depressão e estamos fazendo sessões com psicólogas. Se não for assim, não aguentamos. É uma dor muito forte".

Darlei Pisetta, pai do goleiro Bernardo Pisetta

"Vou deixar a alma dele descansar"

"O Vítor ia fazer 16 anos em 1º de janeiro. Foi nesse dia que determinei que ia deixar a alma dele descansar em paz.

A boca da gente é meia suja, né? A língua é suja. E eu estava sendo muito cruel, não aceitava de jeito nenhum o que aconteceu. Ia para o cemitério, fazia escândalo... Dizia para as pessoas que eu não era feliz. A gente fala as coisas sem pensar, solta as coisas da boca da gente sem vigiar.

O Vítor era meu filho, meu amor, a minha vida. E ele continua sendo tudo isso. A gente se amava muito.

Hoje, eu até consigo falar sobre o Vítor. Antes eu só chorava, não queria saber de nada.

Mas desde o dia 1º de janeiro, minha vida é outra. Estou sorrindo mais, e o vazio que sentia dentro de mim saiu. Eu sentia uma dor no peito dia e noite, ia ao médico e os exames não davam nada. Era tudo psicológico.

Aquela tristeza saiu de dentro de mim no dia em que subi ao altar e pedi perdão a Deus pelas coisas que eu falava. Prometi que ia deixar meu filho em paz.

Do jeito que eu estava, não queria mais viver. Se eu ainda vivesse sozinha, acho que teria feito uma besteira. Hoje, moro com o meu esposo Valmir. A gente já namorava havia dois anos e meio, mas assim que o Vitor morreu, ele veio ficar comigo. Graças a Deus tenho ele ao meu lado.

Hoje me sinto bem aliviada. E acredito que o Vítor também esteja".

Josete Ita Valda Adão, avó de Vítor Isaias

"Aqueles garotos não têm mais valor para eles"

"Às vezes, penso que o Rykelmo vai voltar a qualquer momento de viagem, sabe? Parece que ele está em algum campeonato, e que vou ver meu filho em breve.

É muito triste, porque todos esses garotos tinham os olhos brilhando por estarem em um clube grande. Eles tinham sonhos, queriam ajudar a família, dar uma condição boa. Eles lutavam muito por isso.

De repente, esse sonho é cortado. E, mais de repente ainda, você vê que aquilo ali era um lucro para o Flamengo. Eles estavam segurando aqueles meninos, porque sabiam que, mais para frente, eles iriam render. Só que como tiveram a vida cortada, já não têm mais valor.

Aquelas vidas, aqueles 10 garotos, já não têm mais valor para eles. Aí, eles ficam enrolando, e vem a revolta. Vem uma revolta que se pudesse sair para o mundo e gritar, saía. Não tenho nem palavras para dizer o quanto isso é revoltante. É uma humilhação...

Esses dias, eu estava vendo uma reportagem, e vi os comentários nas redes sociais. Querendo ou não, a gente acaba lendo. E dói muito, machuca. Às vezes comentam: 'queria eu ter esses R$ 10 mil de pensão'.

Não pensem isso, não. Isso é doloroso demais, dói muito. Eu não queria ter uma pensão de R$ 10 mil. Queria ter meu filho aqui comigo".

Rosana de Souza, mãe de Rykelmo de Souza Viana

Tenho um projeto social do qual o Samuel fez parte, e vamos tentar reunir alguns amigos e familiares para um jogo no sábado, quando completa um ano, para lembrar os bons momentos do Samuel. A melhor maneira de homenagear o Samuel é jogando bola

Milton Rodrigues de Souza, tio de Samuel Thomas

Além das 10 vítimas fatais, o incêndio no Ninho do Urubu feriu outros três atletas. Cauan Emanuel e Francisco Dyogo ficaram internados por um curto período e já voltaram a atuar pelo Flamengo.

O caso mais crítico foi o de Jhonata Ventura. O zagueiro teve cerca de 30% do corpo queimado e ficou internado em estado grave no Hospital Municipal Pedro II por pouco mais de dois meses. No meio de janeiro deste ano, ele comemorou ter voltado a correr ao redor do gramado do CT do Flamengo.

Cauan salvou dois amigos

O fogo começava a tomar conta do alojamento do Ninho do Urubu quando Cauan Emanuel se sentou no chão e conversou consigo mesmo. "Eu não vou morrer", disse o menino, como revelou ao pai John Emanuel dias depois no leito do hospital.

"Ele se sentou no chão e foi procurando a parede. O lugar estava com muita fumaça, mas ele conseguiu encontrar a janela. Com a ajuda dos monitores que estavam do lado de fora, ele quebrou a janela e ajudou a tirar o [Francisco] Dyogo e o Jonatha [Ventura]".

"Para mim foi um ato de orgulho. Me senti muito orgulhoso por ele ter feito esse gesto, não ter pensado só nele, mas nos amigos também", relembra o pai.

Cauan foi o primeiro dos três feridos a ir para casa. Ele ficou internado apenas por três dias e voltou a jogar pelo Flamengo quase dois meses depois da tragédia. Assim como Francisco Dyogo, fez uma tatuagem em homenagem aos amigos que se foram.

"Ele está levando essa lembrança com ele. Foram quase três anos convivendo com os meninos. Isso não é três dias ou três semanas. O que vai ficar com ele é todo esse tempo em que estavam juntos".

1º jogo inesquecível

O retorno de Francisco Dyogo aos gramados seria marcante de qualquer jeito. Fazia apenas dois meses que o goleiro se salvara do incêndio ao lado de Cauan e Jonatha. Mas a atuação contra o Barra da Tijuca deixou a partida especialmente inesquecível.

Francisco Dyogo achou o meia França com uma ligação direta para abrir o placar para o Flamengo, bem antes de Alisson dar assistência para Salah fazer o gol do Liverpool.

O lance, que sozinho seria suficiente para premiar a volta ao futebol, ficou ofuscado por outro grande momento: a defesa de um pênalti. Aos 9 minutos do segundo tempo, Julinho cobrou quase no meio, e Francisco Dyogo pulou para fazer a defesa, sem chance de rebote.

Pai do menino, Francisco José Pereira Alves chorava na arquibancada do CT do Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ele se afastara do emprego de representante de vendas em Fortaleza para cumprir a ordem do Ministério Público de ficar junto ao filho no Rio de Janeiro.

"Acompanhar o jogo da arquibancada foi algo muito apreensivo para mim. Fiquei muito nervoso. Foi um tipo de alegria ver meu filho jogando novamente pelo Flamengo, pelo clube que ele sempre teve vontade de jogar."

"Apenas números": Flamengo dispensa sobreviventes

Em janeiro deste ano, o Flamengo dispensou jovens integrantes de diversas categorias de base e, dentre eles, cinco sobreviventes do incêndio. Caike Duarte Pereira da Silva, Felipe Cardoso, João Vitor Gasparin Torrezan, Naydjel Callebe Boroski Struhschein e Wendel Alves Gonçalves estavam no alojamento da base quando o local pegou fogo e conseguiram escapar.

À época, a decisão foi tratada como um processo natural de reformulação e avaliação de desempenho dos atletas das categorias de base, que acontece ao fim de cada ano, após conversas entre a direção da base e as comissões técnicas das respectivas categorias.

Dias depois de ter sido liberado, Felipe Cardoso fez um desabafo em uma rede social. Na publicação, ele, que agora está no Red Bull Brasil, ressalta que a dispensa aconteceu por telefone e afirmou: 'somos apenas números'.

"Aprendi mais uma dura lição da vida em busca deste sonho ao ser liberado pelo Flamengo, no dia 13/01/2020 por telefone, não entendi e chorei, gritei, culpei tudo e todos, não quis falar com ninguém por um período, a dor foi gigante em meu peito. (...) Após refletir muito cheguei à conclusão de que somos apenas números para muitos".

Reprodução Reprodução

Como estão os acordos

Até o momento, o Flamengo fechou quatro acordos em 11 negociações. Dos casos finalizados, há os das famílias de Athila Paixão, de Gedson Santos e de Vitor Isaias, além do pai de Rykelmo.

Com a mãe de Rykelmo e com os familiares de Arthur Vinícius, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Jorge Eduardo, Pablo Henrique e Samuel Thomas ainda não houve resolução. Vale ressaltar que as defesas não são conduzidas de forma coletiva.

Por enquanto, o único caso que foi à Justiça foi o da mãe de Rykelmo, que entrou com uma ação apontando o Rubro-Negro e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Os familiares de Pablo Henrique, Jorge Eduardo e Christian Esmerio devem seguir o mesmo caminho muito em breve.

Uma decisão judicial de dezembro ordenou que o Flamengo pagasse R$ 10 mil por mês às famílias das vítimas. Tal pensão é válida até que saia a decisão final do imbróglio envolvendo clube e familiares das vítimas.

O caso, porém, pode ter um desdobramento social. Rosana de Souza, mãe de Rykelmo, não está recebendo o valor de forma integral. A defesa, porém, acredita que Rosana deva receber a quantia total determinada pela Justiça, uma vez que tinha a guarda e era quem cuidava do jovem.

Procurado pela reportagem do UOL Esporte, o Flamengo não quis responder a perguntas sobre as negociações, o acidente ou as vítimas. O clube optou por se manifestar apenas em seus canais oficiais. Tentativas de entrevistas com os sobreviventes também foram vetadas.

O que dizem os advogados

  • Alexandre Soares, advogado da família de Arthur Vinicius

    "Em relação à família do Arthur, não há e nem houve qualquer negociação com o Flamengo. O clube em nenhum momento procurou a família para negociar. Apenas houve uma tentativa, logo após o incidente, com a presença do Ministério Público e de todas as famílias, em encontro que ocorreu na Assembleia Legislativa, na qual o Flamengo se recusou a fazer o acordo sugerido pelo Ministério Público. E nada mais desde então."

  • Arley Carvalho, advogado da família de Christian Esmério

    "Desde a última vez que estivemos com eles [Flamengo], deve ter mais de cinco meses, eles não fizeram nenhuma proposta. Está tudo da mesma forma. Em contrapartida, estávamos aguardando a questão da conclusão do inquérito, o que também não aconteceu. Aguardamos o possível, mas decidimos entrar com a ação. A ideia [de entrar com a ação] é agora em fevereiro."

  • Eduardo Chow, defensor público que atua junto à família de Samuel

    "A Defensoria está atuando no caso do Samuel e na coletiva. Estamos tentando ajudar das duas formas. [No caso do Samuel] as negociações tinham sido praticamente suspensas por parte do Flamengo e estávamos aguardando, com essa nova decisão e mudança de toda a conjuntura, para chamar novamente o Flamengo para um eventual interesse em reabrir as negociações para um acordo com a família. Isso será feito a partir dos próximos dias. Sempre analisamos cada caso para verificar o 'timing' necessário para a judicialização ou para continuar buscando um acordo. Mas, nesse caso, acho que está chegando bem próximo do fim da paciência."

  • Gislaine Nunes, advogada da mãe de Rykelmo

    "Nós entramos com a ação. O juiz ainda não se manifestou em relação aos nossos pedidos, nem marcou audiência. Não houve nenhuma aproximação do Flamengo com a mãe do Rykelmo. Eles fizeram um acordo com o pai do Rykelmo, um acordo errôneo. No processo, eu peço para que conste no polo passivo a CBF, o pai do menino e o Flamengo. O pai tem de devolver esses valores porque isso não é herança, é uma indenização. Cabe à guardiã ficar com o valor da indenização e não a quem nunca cuidou do menino."

  • Mariju Maciel, advogada da família de Pablo Henrique

    "Nenhum contato [do Flamengo], para nada. A ação está pronta, mas no caso da família que defendo, com toda a repercussão que teve do Flamengo na mídia o tempo todo, o Uedson [pai da vítima] ficou muito mal emocionalmente e, por meio de uma recomendação quase médica, demos uma segurada."

  • Thiago d'Ivanenko, advogado da família de Bernardo Pisetta

    "Nos últimos meses, não houve evolução e já faz um tempo que a gente vem estudando os próximos passos. Estamos chegando em um limite, até emociona, porque vai completar um ano, a coisa não evolui. Então, a gente já começa a pensar em possibilidades futuras porque a coisa, realmente, não caminhou."

  • Paula Wolff, advogada da família de Jorge Eduardo

    "A gente não está mais negociando com o clube. O último contato deles já faz muitos meses. A gente preparou a ação, sim. Em um primeiro momento, iríamos esperar o término do inquérito e ver o que seria apurado, mas, pela demora, nem vamos mais nessa linha de esperar. Estamos, realmente, com tudo pronto."

Nós somos uma das famílias que aceitou o acordo. Depois disso, não entraram mais em contato. Não ligaram mais, não mandaram mensagem. Teve Dia dos Pais, data do aniversário do Gedinho... Então, foi como se 'fez o acordo e acabou'. Acho que se tivesse acontecido com um filho deles, teria tomado outro rumo desde o início. Mas como não foi, para eles, foi mais um negócio, como se fosse objeto.

Gedson Corgosinho, pai de Gedinho

Clube se diz aberto a acordos

O Flamengo se manifestou sobre o andamento do acordo com as famílias em um vídeo divulgado pela "Fla TV", no último sábado (1), uma semana antes do aniversário do acidente. Participaram o presidente, Rodolfo Landim, o vice geral e jurídico, Rodrigo Dunshee e o CEO, Reinaldo Belotti.

Landim não deu prazo para a solução das disputas com as famílias, mas disse que o clube está aberto para um acordo.

"Impossível a gente dizer. O que podemos dizer é que estamos abertos sempre para que esses acordos venham a ocorrer. A gente tem demonstrado isso ao longo do tempo na medida que toda vez que a gente consegue equacionar dentro do nosso teto, a gente tem um acordo. Não depende só do Flamengo, mas das famílias e do tempo delas. É muito difícil estabelecer um prazo. Vamos estar sempre abertos para fazer esse tipo de acordo".

O dirigente também negou que o Flamengo não tenha interesse em manter contato com os parentes das vítimas. De acordo com Landim, a aproximação é impedida pelos advogados. "A verdade é que às vezes essa aproximação é barrada pelos advogados. Eles têm criado uma barreira para falarmos com as famílias".

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