A vida de um estádio

Nilton Santos faz 15 anos em 2022 e mostra como um estádio pode ajudar quem vive ao seu redor

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Ricardo Borges/UOL

"Quando eu cheguei para cá, não tinha estádio. Eles estavam começando a fazer. Aqui não era assim, eu cavei aqui tudo, levantei a loja. Aluguei o ponto e espero que consiga um dia comprar. Valorizou muito. Tem muito lazer aqui na área. Mudou muito, graças a Deus", disse Vicente de Jesus, um maranhense de 56 anos, dono de um bar ao lado do estádio Nilton Santos, o Engenhão.

A vida como vizinho de um equipamento esportivo pode ser boa. Vicente, por exemplo, era vendedor ambulante no Botafogo x Fluminense de 30 de junho de 2007, que inaugurou o local. 15 anos depois, mantém um negócio próprio. Mas nem sempre foi fácil.

Ele já tinha montado seu espaço, que hoje vende açaí, água de coco e outras bebidas, em fevereiro de 2017, quando o Botafogo recebeu o Flamengo no evento mais violento da história do estádio. "Vendia churrasco e cerveja naquele dia. Tinha umas cadeirinhas aqui. Quando olhei para lá [direita, no sentido da linha do trem], vi aquele formigueiro", conta Vicente.

"Fechei tudo, vi gente correndo para lá e para cá. Fui para dentro, portão fechado, mas voou spray para tudo quanto é lado. Minha mãe tinha 70 anos na época e estava aqui. Invadiu tudo. Foi uma coisa triste", lembra ele.

A rapidez para tirar a mercadoria da frente fez a diferença. Vicente perdeu apenas duas mesas, que foram quebradas. Um pedaço de uma delas foi encontrado na esquina. A hipótese é que foi usada como arma.

Um cliente meu estava tomando cerveja aqui e foi para lá [na briga]. Voltou todo moído, parecia um boneco".

Aquela briga ficou marcada pela morte de Diego Silva dos Santos, que tinha 28 anos. Ele foi atingido por um espeto de churrasco no meio da violência.

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Vicente de Jesus em seu bar, em frente ao estádio

Hoje, não tem jogo, não tem torcedor esperando por alguma delegação entrar no estádio. Em sua loja, Vicente observa o movimento. São duas janelas de uma casa adaptada para virar comércio. Apesar do trauma daquele dia de 2017, os 15 anos de história do Nilton Santos, que serão comemorados no meio deste ano, transformaram o entorno do local em um espaço com pulsação própria. Se a violência de torcidas é um problema para o qual as autoridades ainda não têm resposta, ao menos no Engenho de Dentro a segurança pública foi afetada de maneira positiva, na visão de quem vive ao redor.

Vicente usa uma máscara do Botafogo que entrega o clube do coração desse maranhense que adotou o Rio. Ele diz que conhece a área desde quando tudo "era mato", mas não era bem assim. O Engenho de Dentro é um bairro da zona norte carioca. A região era simples em 2003, quando começou a construção do estádio. O acesso era complicado, com ruas estreitas e uma estação de trem antiga. Hoje, as coisas mudaram. A estação Olímpica foi reformada e o acesso desde a Linha Amarela, a via expressa que corta a zona norte, ficou mais fácil.

Para além dos jogos de futebol, o que está em vigor hoje é um decreto da Prefeitura do Rio que classificou o espaço como uma "área de especial interesse cultural, turístico e desportivo". Tem gente correndo, food trucks, roda de altinha, brinquedos e até aula de capoeira. O entorno do Nilton Santos tem vida. E há uma perspectiva de que ele se desenvolva ainda mais em um futuro próximo, com uma parceria que está sendo costurada entre Botafogo e a construtora WTorre.

Há vida quando não há jogo. E onde há pessoas, a percepção de segurança é maior. Pode não ser a solução completa, mas é um caminho que parece estar dando certo.

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É muito bacana. Eu noto nesse um ano como cresceu praticante de exercícios. O estádio passou a ser uma área de lazer significativa. Tem muita gente de manhã. Mas à noite fica cheio. É muito bacana ver.

Durcesio Mello, presidente do Botafogo

A questão dos buracos no teto

Se o gramado do Nilton Santos é restrita a esportistas profissionais, o galpão no lado de fora é um ambiente muito mais democrático. Cada um acha seu espaço. Numa área próxima aos anéis olímpicos e aos agitos (o símbolo do movimento paralímpico), o ambiente é do skate.

Um dos praticantes é o estudante João Pedro Fernandes, de 20 anos. Jota, como é apelidado, mora um pouco mais adiante, no bairro de Todos os Santos. Ele está a três minutos de skate (ou cinco de caminhada) do "pico" que é cuidado pela galera que frequenta ali.

"Sempre que tenho um tempo livre eu venho para cá. Já estou nessa tem uns quatro anos. É a mesma rapaziada. Aqui o que a gente tem de mais maneiro é que de tudo isso aqui nós mesmos fazemos manutenção. A gente traz aqui essas rampas e corrimãos. Se não tivesse a gente que mora perto, iria estar abandonado", conta o rapaz, que está no terceiro ano do ensino médio e, segundo ele, foi andar de skate após terminar o trabalho escolar daquele dia:

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João Pedro Fernandes (centro) e amigos que andam de skate no galpão

"Fiz tudo e estava em casa em um maior tédio, olhando para cima. Pensei: 'pô, vou pro Engenhão'".

Outros, preferem altinha. Mas tem espaço suficiente para brinquedos infláveis, aulas de capoeira, crossfit e o que mais a criatividade do empreendedor permitir. Ali, não há restrições de idade, que se revezam em turnos em busca de momentos de diversão, passatempo e atividades físicas.

"Tem uma política de boa vizinhança. A gente tem uma troca. Está todo mundo perto. Estamos todos na mesma área. É o único lugar da zona norte que tem uma parada desse tamanho. Isso aqui, ó: onde tem? Aqui, qualquer família, qualquer um pode vir. Pode andar de skate, fazer futebol", completa Jota, apontando para o pessoal que batia uma bola ao lado.

A única reclamação do momento destinada à Prefeitura diz respeito ao telhado do galpão. Com tantos buracos, chuva é significado de fim de diversão.

"Estamos precisando de uma reforma", diz o rapaz.

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Por que correr ao redor do estádio

Calçadão Agnaldo Timóteo é point de exercícios físicos

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"Eu frequento há uns quatro meses, estou morando na Abolição há uns quatro meses. Venho andando e em cinco minutos estou aqui. É um espaço bom para corrida. Uma volta completa tem 2 km, a gente consegue controlar bem a corrida. O melhor espaço que tem para correr é esse. Tem um benefício do entretenimento. Sexta-feira fica lotado aqui. Fora a parte esportiva", disse Orlando Antunes, de 29 anos, estudante de gestão pública.

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"Venho para tirar o estresse da rotina do trabalho e para a saúde mesmo. Mantenho uma frequência. É o espaço mais perto da minha casa que tem para fazer a corrida. Sou nascido e criado por aqui, lembro da obra. Era tudo casa, teve um processo de desocupação. Melhorou muito para a vida social, tem lanche, o pessoal corre, as crianças brincam. É um impacto de lazer", conta Iuri Sampaio, 28 anos, técnico em telecomunicações.

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Zagallo, Loco Abreu e 13 food trucks

Ao cair da tarde no Engenho de Dentro, as mesas começam a se espalhar pelo calçadão Agnaldo Timóteo — homenagem feita em 2021 ao cantor, que morreu ano em abril passado e era torcedor ilustre do Botafogo. É sinal de que os cardápios em breve ficarão à disposição.

As pessoas vão chegando aos poucos até que os food trucks, posicionados à beira da Rua José dos Reis, comecem a produção gastronômica daquele dia. As opções são variadas: churrasquinho, cachorro-quente, hambúrguer, caldos e comida japonesa.

Para aquele ponto específico, a Prefeitura do Rio concedeu 13 licenças — coincidência com o número da sorte de Zagallo, um dos ídolos com estátua no setor oeste, e a camisa de Loco Abreu.

Rita de Cássia Matos, de 34 anos, conseguiu uma dessas licenças. Ao lado do marido, Victor Braga, tem a permissão de fazer comida japonesa em um food truck de 1,80m x 2,5m — que aparece na foto acima. O negócio não depende do futebol. É justamente o contrário.

"Quando tem jogo, não pode abrir, fica fechado. Quando começamos, não tinha ninguém. Aos poucos, foi chegando mais food trucks. O melhor dia é sábado, que tem mais movimento. É mais tranquilo, com famílias. Sabem o horário que a gente fica aberto", conta ela.

O empreendimento ao redor do Nilton Santos começou por um desejo de Victor de colocar em prática o curso de culinária japonesa que fez. O irmão dele tinha um bar próximo ao estádio, o que deu certa confiança de que a aposta ali daria certo.

O investimento no local fez com que eles deixassem de morar em Realengo, na Zona Oeste, para alugarem uma casa próxima ao estádio. O casal conseguiu suportar a pandemia, mesmo tendo que deslocar o food truck para frente de casa, já que a prefeitura não permitiu o funcionamento no local por pelo menos três meses. O negócio da família ainda ocupa o filho do casal e um sobrinho.

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Alexandre Albuquerque, barbeiro que anda pela região do estádio no traslado do trabalho

Como um estádio ajudou na segurança

Torcedor do Flamengo, Alexandre Albuquerque, de 49 anos, colocou o entorno do Nilton Santos na rotina há cerca de três anos. Foi quando começou a trabalhar em uma barbearia no bairro de Água Santa, próximo ao Engenho de Dentro. Ele precisa fazer uma caminhada e atravessar a linha do trem para pegar o ônibus 639 na volta para casa, em Vista Alegre, outro bairro da Zona Norte do Rio, a cerca de 10 km do Nilton Santos. O trajeto fica mais tranquilo quando o estádio se aproxima.

"Acho um ambiente favorável, bom. Tem muitas famílias, pessoas se exercitando. É minha rota de ir e vir para o trabalho. É bom para todo mundo isso aqui porque movimenta. Há relatos de pessoas dizendo que era uma área muito vulnerável. Hoje, tem muito a melhorar, como um todo, mas é muito frequentado por famílias, crianças. Nunca passei perrengue aqui e nem quero", diz Alexandre, que nunca assistiu a um jogo dentro do Nilton Santos.

Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP) apontam que, ao longo de 2021, foram registrados 162 assaltos a pedestres no Engenho de Dentro e nos bairros ao redor (como Abolição, Água Santa, Pilares, Encantado, Todos os Santos e Lins de Vasconcelos). Na área que compreende os bairros de Botafogo, Urca e Humaitá ? onde fica a sede do Botafogo ? foram 207 assaltos a pedestres no ano passado.

Como parâmetro, números do DataRio referentes a 2010 apontam que a população de Botafogo, Humaitá e Urca estava em 103,2 mil habitantes. Já os bairros que formam o bloco do Engenho de Dentro, em uma divisão feita pela Secretaria de Segurança do Rio, tinham 188,7 mil habitantes em 2010. Especificamente em relação ao entorno do Nilton Santos, a percepção de segurança aumentou nos últimos anos, apesar de estar longe das áreas mais nobres da cidade.

"O movimento para as pessoas melhorou muito. Tinha reclamação de assalto, que era um local vazio. Depois que viemos para cá, as pessoas se sentem mais seguras. Quem passa vindo do trabalho tarde da noite, desce do trem e vê que está movimentado. A gente fica aqui até umas 23h, meia-noite", conta Rita, a dona do food truck de comida japonesa.

Reprodução

Goleiro Jefferson foi assaltado na esquina

Em 2017, um dos maiores ídolos recentes do Botafogo, o goleiro Jefferson, foi vítima de um assalto em uma das ruas de acesso ao Nilton Santos. Quando estava chegando para um treino, numa manhã de domingo, parou no sinal da na Rua Henrique Scheid ? que dá acesso à Rua das Oficinas, próxima ao setor norte ? e foi rendido por bandidos. O carro do jogador foi levado, mas a polícia encontrou no mesmo dia, na comunidade da Fazendinha, que fica no Complexo do Alemão.

"Infelizmente fui mais uma vítima da violência que assola nossa cidade. Levaram meus bens materiais, mas o mais importante é que estou bem e tudo isso não passou de um grande susto. Triste pela situação que vivemos no Rio de Janeiro. Torço para que episódios como esse não aconteçam com ninguém", disse o goleiro, na ocasião.

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Contrato com WTorre nos planos do Botafogo, mesmo com Textor

Durcesio Mello passou a bater ponto quase todos os dias no Nilton Santos desde que assumiu a presidência do Botafogo, há pouco mais de um ano. A frequência vai cair bastante, já que o estádio e a gestão do futebol alvinegro estão entre os itens transferidos à SAF (Sociedade Anônima do Futebol) comprada pelo investidor americano John Textor.

A transação, pelo que se tem de conversas entre os dois, não acaba com os planos de uma parceria para administração do Nilton Santos. Esse novo negócio busca captar verbas usando os naming rights (direito de dar nome ao estádio) e prevê investimentos no entorno. Durcesio apontou que o acerto está "encaminhado" e explicou algumas das intervenções.

"É fazer um restaurante, áreas de lazer. Em volta, colocar lojas. Você tem muita área redor do Nilton Santos que está dentro do muro e você pode abrir e fazer loja para fora. Não tem investimento do Botafogo. A empresa assume tudo", disse o dirigente alvinegro ao UOL.

Em dezembro, antes da oficialização do acordo com Textor, o Botafogo assinou junto à Prefeitura do Rio o contrato que amplia a concessão do Nilton Santos até 2051. A perspectiva de melhorias para o entorno, inclusive, foi citada pelo prefeito Eduardo Paes na ocasião da assinatura do contrato.

Embora não tenha colocado um centavo no entorno do estádio (até pela situação financeira ruim pré-SAF), o Botafogo já discutiu com o governo estadual a cessão de um espaço dentro do estádio para abrigar o projeto Segurança Presente. Trata-se de uma iniciativa para aumentar o patrulhamento policial na região que já é feita em diversos bairros do Rio, como Botafogo.

"Vai ter uma viatura de plantão dentro do Botafogo, tem ronda de bicicleta. É bom para o Botafogo e é bom para o Estado", disse Durcesio.

Em breve, o presidente do Botafogo deixará de bater ponto no Nilton Santos. O trabalho da parte associativa será conduzido da sede de General Severiano. Mas, como torcedor e acionista da SAF (10%), ele quer mais avanços ao redor do estádio, algo que tem sido "muito bacana de ver".

O Botafogo vive uma grande fase, ganhou a Segunda Divisão e está em reconstrução depois de um período muito difícil. O clube tem um projeto para o Estádio Nilton Santos que melhora muito o entorno da região, traz emprego, gera riqueza".

Eduardo Paes, prefeito do Rio

Para rivais do Botafogo, alternativa ao Maracanã

Esportivamente, o Nilton Santos tem papel fundamental no Rio em momentos de ausência do Maracanã, como foi neste início de 2022. Contando Carioca e Libertadores, foram sete partidas abrigadas que não tinham mando do Botafogo ? e, sim, de algum dos outros três grandes. Isso gera receita para o alvinegro. Com o aluguel de R$ 150 mil/jogo, o volume gerado com esse item chegou a R$ 1,05 milhão.

Jogos no Nilton Santos com mando dos outros grandes:

  • Flamengo 0 x 1 Fluminense (Carioca)
  • Fluminense 1 x 0 Portuguesa (Carioca)
  • Fluminense 2 x 1 Botafogo (Carioca)
  • Fluminense 2 x 0 Vasco (Carioca)
  • Flamengo 2 x 2 Resende (Carioca)
  • Flamengo 2 x 1 Vasco (Carioca)
  • Fluminense 3 x 1 Olimpia (Libertadores)
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