Negócio da China?

Repatriar astros como Pato e Ramires empolga torcida, mas custa caro e gera trabalho extra nos DMs dos clubes

Danilo Lavieri e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo

Qual o preço do futebol chinês?

Os efeitos do futebol chinês sobre os jogadores ainda não são totalmente conhecidos. Passados quase quatro anos do "boom" de contratações por um país emergente mercado da bola, vários atletas retornam ao Brasil a alto custo e despertando elevadas expectativas em seus clubes. A tendência, porém, é não dar certo. São muitos os casos de estrelas que passam de solução a dor de cabeça — principalmente de departamentos médicos.

Com milhões de dólares investidos janela após janela, o esporte na China tem apresentado melhoras segundo diversas fontes ouvidas pelo UOL Esporte em diferentes esferas — fisiologistas, preparadores físicos, empresários etc. Mas sua infraestrutura no trato diário com os atletas ainda está longe do nível exigido pelos times de ponta no Brasileirão — e também para a seleção brasileira. A experiência do outro lado do mundo tem gerado complicações que impactando diretamente no desempenho técnico e tático. Há quem nem mesmo consiga ficar no banco de reservas.

Afinal, qual o preço da busca por reforços no futebol chinês?

Lucas Uebel/Grêmio, Marcello Zambrana/AGIF e Ale Cabral/AGIF Lucas Uebel/Grêmio, Marcello Zambrana/AGIF e Ale Cabral/AGIF

Desfalques de peso

Os exemplos mais recentes (e claros) de problemas físicos enfrentados por jogadores repatriados da China são os de Ramires e Alexandre Pato. Os dois voltaram ao Brasil e têm dificuldades para se recuperar de maneira satisfatória. O meio-campista palmeirense, inclusive, precisou ser afastado dos treinos com o grupo para um acompanhamento mais próximo do departamento médico do clube.

"Ele teve uma lesão no adutor esquerdo lá na China. Na época, optaram por um tipo de tratamento que pode dar uma resposta interessante a curto prazo, mas que está gerando umas complicações e limitações ao atleta", disse o médico do clube, Gustavo Magliocca em coletiva convocada para explicar a situação do jogador que disputou duas Copas do Mundo — sem, no entanto, explicar qual era esse procedimento.

O Palmeiras se deu ao luxo de tirar Ramires do seu vasto elenco. Pressionado em busca de títulos e bom resultado, o São Paulo não poderia fazer o mesmo com Pato — ou mesmo com Hernanes, que também chegou recentemente da China. Os dois onerosos reforços vêm enfrentando enorme dificuldade para, primeiro, obter uma sequência de jogos, e, segundo, retomar a boa forma técnica. A lista nesse sentido é extensa. Diego Tardelli, por exemplo, também precisou de um trabalho específico no Grêmio, Ralf ficou afastado do Corinthians por um período com dores na coxa.

Ele não tem nenhuma contraindicação à prática do esporte. A questão é que essas limitações que ele tem sentido em função desse tratamento, que foi feito lá na China, tem trazido perda de performance para ele

Gustavo Magliocca, médico do Palmeiras, sobre Ramires

Pedro H. Tesch/AGIF e Marcello Zambrana/AGIF Pedro H. Tesch/AGIF e Marcello Zambrana/AGIF

"Faz o que você quiser, só não tire a mesa de pingue-pongue"

A frase acima foi ouvida por Wellington Valquer, preparador físico do São Paulo, que passou algumas temporadas no futebol chinês. Entre idas e vindas com diferentes comissões técnicas, estima ter passado uns quatro anos por lá. Seu intercâmbio começou em 2011. Foi no seu primeiro clube, o modesto Nanchang Bayi FC, que estava lutando contra o rebaixamento, que aconteceu a cena em que apareceu a tal mesa.

Na época, ele assessorou o técnico Zhu Jiong: "Eles estavam sem preparação física nenhuma, muito carentes. Naquele momento, qualquer coisa que eu implantasse agradaria. Até existia uma sala de musculação, mas eles colocaram uma mesa de pingue-pongue, que era a grande atração do local. Eu tive que reorganizar a sala, mas o treinador Zhu Jiong falou para não mexer com ela. Então, a gente foi se adaptando", lembrou.

Obviamente as mesas de pingue-pongue não são monólitos obrigatórios nas salas de treinamento dos clubes da liga chinesa. Mas diversas pessoas consultadas pela reportagem, entre preparadores físicos, fisioterapeutas, empresários e jogadores que já estiveram na China, admitem que detalhes como esse são exemplos de como a infraestrutura de um time de futebol por lá ainda está bastante abaixo do considerado ideal no Brasil — ainda que ressaltem a evolução recente.

Quase todos os relatos ouvidos apontam para uma estrutura profissional com ótimos equipamentos, bons campos de treinamento, concentrações que atendem a todas as necessidades e dinheiro o suficiente para resolver quase todos os problemas, especialmente nos times da primeira divisão. O que falta é um profissional especializado em futebol para fazer uso delas.

Eles estavam engatinhando ainda. Era uma fisioterapia mais milenar, à base de acupuntura, sem se preocupar em agilizar o retorno para a atividade profissional com rapidez. Vi uma cirurgia de menisco com seis médicos. Parecia que eles nunca tinham feito algo como aquilo. Falta experiência

Luiz Alberto Rosan, fisioterapeuta que trabalhou com Cuca na China entre 2013 e 2015

Se você pegasse gripe, era acupuntura. Lesão de tendão? Panturrilha? Era acupuntura. Tudo era acupuntura. Não tinha nada, a comissão técnica era toda chinesa e tiveram que adaptar para nós algumas coisas. A gente ficou a pré-temporada todinha comendo ovo, pão e macarrão

Maurício Copertino, auxiliar de Luxemburgo no Vasco, que jogou no futebol chinês em 2003

A China tem estrutura, mas eles ainda apanham muito na metodologia. Eles não têm uma linha de trabalho, uma escola, vamos dizer assim, para que você tenha uma metodologia a ser empregada. Os chineses ainda estão coletando informações com comissões técnicas europeias, com comissões técnicas brasileiras misturadas com chinesas e por aí vai

Cláudio Pavanelli, fisiologista, que em 2016 fez parte da comissão técnica do Luxemburgo no Tianjin

Getty Images/Visual China Getty Images/Visual China

A parte dos jogadores

Quando recebem as propostas para ganharem milhões por mês, é natural que a maioria dos jogadores pense em aspectos financeiros. Em segundo plano ficam as dificuldades que tendem a encontrar no desembarque na China. Quase todos os consultados pelo UOL Esporte foram unânimes ao apontar que os atletas podem se acomodar com seus contratos, sem fazer o esforço extra necessário para manter a melhor forma.

É o que pondera Cláudio Pavanelli, uma das referências no Brasil em fisiologia. Ele trabalhou em 2016 no futebol chinês e, desde então, mora e trabalha nos Estados Unidos. "Vejo nossos atletas muito mal-acostumados com alguns sistemas. Vou mexer no vespeiro aí", afirmou.

"O atleta é extremamente protegido no Brasil. Um exemplo: faço uma avaliação de percentual de gordura, dou o diagnóstico que o atleta X está acima do peso e precisa perder peso. Ou seja, eu faço o exame, a nutricionista passa a dieta, o preparador físico dá o treino. Depois, a gente faz a avaliação novamente daqui a algum tempo e esse atleta não emagrece. O que acontece no Brasil? Muitas vezes, criticam os profissionais, não o atleta. Precisamos pensar nesta questão", completou.

Um empresário que preferiu não se identificar também ressaltou que os atletas precisam encarar o futebol chinês de uma maneira diferente. Para ele, os valores pagos no país asiático permitem que brasileiros criem projetos de condicionamento físico por conta própria, independentemente do que seus clubes oferecem. Bastaria o comprometimento para contornar eventuais dificuldades.

Extracampo é outra questão

Além do estilo de treinamento e de tratamento médico na China, outros aspectos influenciam na adaptação dos jogadores. Com incentivo governamental para investir milhões no mercado de transferências de jogadores, os clubes acabam recheados de estrangeiros. A questão é que a liga nacional tem um limite para inscrição dos forasteiros a cada partida. E o excesso acaba levando jogadores a serem encostados.

Aí temos um problema. Se os jogadores podem perder ritmo e nível de desempenho mesmo quando utilizados constantemente por seus treinadores, imagine como podem ficar sem nem mesmo disputar uma partida por semana. Ramires é um exemplo: o jogador ficou praticamente dois anos sem tocar a bola.

Valquer, preparador do São Paulo, faz essa ponderação. "O Hernanes ficou sem jogar por muito tempo porque o time contratou um número grande de estrangeiros. O número de partidas que fez lá foi muito pequeno", afirmou. "Quer dizer, não é porque a China não reunia condições."

As discrepâncias de calendário e mesmo as dificuldades por vezes encontradas para convencer a liberação de brasileiros valorizados em casa mas ignorados por seus clubes chineses também entram nessa conta. Valquer cita o caso de Pato, anunciado pelo São Paulo no final de março após longo período de inatividade. "Ele não veio ruim da China. Mas o campeonato lá acaba em novembro. Isso quer dizer que o Pato ficou novembro, dezembro, janeiro e fevereiro inteiros parado".

Pedro Martins/Mowa Press Pedro Martins/Mowa Press

A sugestão do professor

Uma solução adotada por alguns atletas é levar profissionais brasileiros de sua confiança para a China. Selecionáveis como Paulinho, Gil e Renato Augusto ouviram os conselhos de Tite e de sua comissão técnica para se manter em forma e manter chances de convocação para a seleção brasileira.

Eles aceitaram as propostas chinesas, mas não se contentaram só com a estrutura oferecida pelos seus respectivos times. Quando decidiram buscar a tal independência financeira, souberam que era necessário adotar novas práticas para brigar por vaga na seleção, de olho em uma Copa do Mundo.

"A respeito da condição física, nunca tive problemas com qualquer tipo mais importante de lesão. Houve esse questionamento sobre condição física quando cheguei à China, porque não é o mesmo nível do futebol europeu. Mas fui fui muito focado. Sabia que tinha que fazer algo a mais, após ou antes do treinamento", disse Paulinho em 2017, quando conseguiu ser convocado por Tite para a seleção mesmo em território chinês.

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Gil, a exceção confirma a regra

O zagueiro corintiano é a exceção que confirma a regra. Um dos poucos atletas que foram para a China e ainda não demonstraram falta de ritmo na volta ao Brasil. O atleta tem sido bastante elogiado no clube pela forma que se apresentou após a experiência no Oriente.

Com 90 minutos jogados em todas as partidas que disputou desde então, ele faz parte do grupo que ouviu o conselho de Tite para dar mais atenção à parte física em relação a seus companheiros.

Seguindo o discurso de Paulinho, Gil cumpria uma programação antes de o treino começar e também tinha exercícios individuais para fazer após o término dos trabalhos. Quando não era convocado para a seleção brasileira e via os jogos na China parados por respeito à Data Fifa, também cumpria a sua agenda própria.

O outro lado: a exigência brasileira

Outro ponto em comum identificado pelas fontes ouvidas pelo UOL Esporte é o de que o Brasil concentra os melhores profissionais de fisioterapia, preparação física e medicina. A maioria explicou que as dificuldades vividas na China têm semelhança com a que outros atletas que foram atuar na Arábia Saudita, na Austrália, nos Estados Unidos e até na Europa encontraram.

"Não é só pra China que, quando o atleta brasileiro sai, encontra essa dificuldade. Aqui nós trabalhamos bem o jogador e, além disso, tem uma fisioterapia, tem o pessoal da fisiologia e da preparação física. Todos estão entre os melhores do mundo. Se você lembrar o Pato no Milan, ele teve um problema seríssimo de várias lesões e só foi se recuperar quando veio para o Corinthians com o Walmir Cruz [preparador]. Na Europa, agora a maioria dos atletas brasileiros levam os seus fisioterapeutas e preparadores físicos", afirmou Copertino, auxiliar de Luxemburgo que já trabalhou na China.

Outro empresário com mais de 10 anos de mercado também explicou o que tem de experiência com os seus atletas que já rodaram o mundo. Ele lembra como vários brasileiros que se lesionam no Velho Continente acabam retornando ao Brasil para encaminhar seus tratamentos. E que isso acontece não necessariamente para ficar mais próximos de familiares e amigos, mas pela busca de condições melhores e especialistas na área com conhecimento específico do futebol.

Alan Morici/AGIF Alan Morici/AGIF

Ah, o calendário...

Nessa história, o intenso calendário do futebol brasileiro volta a ser um vilão, colaborando com a dificuldade de adaptação dos jogadores que voltam da China. Depois de passar por um país em que se joga menos, o retorno à rotina de jogos de quarta e domingo comprometem ainda mais o desenvolvimento.

O Campeonato Chinês tem quatro clubes a menos inscritos do que o Campeonato Brasileiro. Isso significa que os times chineses jogam oito vezes menos que os do Brasileirão. Para se ter uma ideia, no dia 22 de outubro de 2019, o Guangzhou Evergrande, então líder do Chinesão, havia disputado 40 jogos, com o primeiro deles no dia 01/03. O Flamengo, líder do Nacional, começou a temporada dois meses antes, no dia 10 de janeiro. Somava 59 jogos disputados.

Ainda para efeito de comparação, e usando uma temporada completa, o Shanghai, campeão do Chinês em 2018, disputou 43 partidas. O Palmeiras, campeão Brasileiro, disputou 74.

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