A plebe resiste

No reinado do Campeonato Espanhol, pequenos de Madri brigam por espaço entre os nobres Real e Atlético

Brunno Carvalho Do UOL, em Madri (Espanha) David S. Bustamante/Soccrates/Getty Images

"Quando eu era pequeno, meu time sempre estava na terceira divisão. Eu vinha ao estádio e ficava sonhando em como seria jogar uma partida na segunda divisão. Quando conseguimos, passou dois anos e chegamos à elite do Campeonato Espanhol. Foi algo incrível, uma coisa que eu nunca tinha imaginado que pudesse acontecer.

O Leganés é um clube humilde. Permanecer, ano após ano, na primeira divisão é um presente. E esse sentimento não existe só em mim, mas em todas as pessoas que trabalham aqui. Quando vencemos o Barcelona na temporada passada, foi a realização de um sonho. Mas nosso objetivo não é esse. Queremos que as pessoas não se acostumem com isso. Não sabemos quanto tempo continuaremos na primeira divisão. E se acostumar a ver Messi e grandes jogadores acaba se tornando algo ruim por isso.

Queremos que as pessoas fiquem empolgadas em ver o Leganés jogando, não importa a divisão. A gente quer que elas fiquem empolgadas todos os anos".

Víctor Martin, chefe de comunicação e marketing do Leganés

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Como é ser um time nanico em um campeonato gigante

O Campeonato Espanhol é um dos maiores do mundo. E, no topo, estão invariavelmente três dinastias: os milionários Atlético de Madri, Barcelona e Real Madrid. Mas como nenhum torneio sobrevive só com vencedores, é na plebe que você encontra os mais bravos dos competidores. Em La Liga, a coragem está em encarar as dificuldades de frente, mesmo com poucas chances de vitórias e com o dinheiro escasso.

A capital Madri é o melhor exemplo disso. Na cidade e suas cercanias, Getafe e Leganés vivem à sombra dos vizinhos Atlético e Real. As duas equipes maiores recebem três vezes mais em direitos de televisão do que os nanicos, que têm estádios ainda menores, para 20 mil expectadores contra os 68 mil e 81 mil do Wanda Metropolitano e do Santiago Bernabéu.

A reportagem do UOL Esporte visitou as estruturas de Getafe e Leganés, e conversou com dirigentes para entender como clubes modestos se viram para sobreviver na mesma cidade de dois dos mais poderosos times do futebol europeu. Os troféus são raros e os objetivos, modestos. Cada um a sua maneira, ambos surpreenderam na temporada passada. O primeiro quase conseguiu uma vaga na Liga dos Campeões, mesmo com a quarta menor folha salarial do torneio. O segundo atingiu seu ápice ao vencer o Barcelona.

A torcida do Real Madrid comemora quando é campeã. A gente comemora quando vence um jogo na primeira divisão"

Víctor Martin, chefe de comunicação e marketing do Leganés.

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A reconstrução do Leganés

A cidade de Leganés tem menos de 200 mil habitantes e está localizada na região metropolitana de Madri. A população pequena acabou sendo fundamental para a reconstrução da equipe que leva o nome do município. Quando o Leganés estava afundado em dívidas em 2008, a comunidade ajudou os novos donos, Felipe Moreno e Victoria Pavón, a reerguê-lo.

"O presidente colocou muito esforço aqui no estádio, e começamos a chamar a cidade. Eu e outros funcionários começamos a trabalhar aqui no Leganés de graça. Tínhamos o sonho de vê-lo na segunda divisão", contou Víctor Martin.

Os novos donos quitaram a dívida de 500 mil euros e iniciaram um processo de recuperação da saúde financeira do clube. Faltava convencer os torcedores a comparecer ao estádio para apoiar o ressurgimento da equipe. "Era algo muito difícil trazer as pessoas para o estádio porque estamos muito próximos do Real Madrid e do Atlético. Mas não só isso: temos cinema, teatro e todos os tipos de espetáculos", prossegue Martin.

O esforço foi recompensado na trajetória da equipe rumo à primeira divisão. Atualmente, o estádio do Leganés comporta 12 mil pessoas por partida e o clube tem média de ocupação de 80% na atual temporada do Campeonato Espanhol. "A cidade é muito boa e o carinho é realmente muito grande pelo clube. Acredito que esse apreço ajudava muito nos objetivos que a gente buscava. Em qualquer lugar, tendo o torcedor por perto facilita muito o contato e você conta com o apoio incondicional deles", relembra o atacante Luciano, atualmente no Grêmio, que atuou no Leganés por empréstimo na temporada 2016/17.

O acesso à primeira divisão aconteceu em 2016. Desde então, uma tradição foi criada para marcar a passagem pela elite do futebol espanhol. Sempre que um clube visita o Leganés pela primeira vez em jogos de La Liga é presenteado com uma cesta de pepinos, em alusão à tradição da cidade e ao apelido do clube: "pepineiro".

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Estádio à la Libertadores

Quem imaginaria que, em plena Espanha, um estádio teria fosso nas laterais e a divisão com a torcida, atrás do gol, tivesse uma tela de proteção? É o que acontece no Coliseum Alfonso Pérez, o estádio com cara de Libertadores da América que o Getafe chama de casa. O local foi construído em 1998 e, comparado com os luxuosos Santiago Bernabeu e Wanda Metropolitano, de Real e Atlético, parece ser muito mais antigo.

Acanhado, o local possui arquibancadas posicionadas em uma colina, o que garante um certo charme, mas dificulta a entrada em outros setores. Atrás dos gols, as redes para que a bola não se perca são uma atração. E, caso a redonda caia no fosso, um "pega-bolas" feito com aquelas redinhas de piscina é colocado bem próximo ao campo de jogo para ajudar o gandula.

A simplicidade não impede que você possa aproveitar a partida. As arquibancadas baixas permitem uma visão quase sem ponto cego do campo de jogo. Mesmo com espaço para apenas 17 mil torcedores, o estádio tem uma acústica boa o suficiente para que seja possível ouvir os cânticos durante os 90 minutos. No último ano, o gramado do local foi escolhido pela organização do Campeonato Espanhol como o melhor da competição. O estádio pode não ser um palácio, mas é motivo de orgulho para o Getafe.

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O quase milagre do Getafe

O Getafe ficou a três minutos de quebrar as estruturas do Campeonato Espanhol na última temporada. Um gol sofrido aos 42 minutos do segundo tempo da última rodada impediu que uma das equipes de menor orçamento do torneio conseguisse se classificar para a Liga dos Campeões. O time empatou em 2 a 2 com o Villarreal e acabou dois pontos atrás do Valencia, que acabou com a vaga.

Mesmo com o sonho de disputar o torneio mais importante da Europa adiado, o Getafe tem feito boas campanhas recentemente. Nas últimas duas temporadas, brigou por vagas em competições europeias — no segundo semestre de 2019, por exemplo, está disputando a Liga Europa.

"Somos de uma cidade pequena, mas estamos próximos à capital. Nossa história não é grande, mas é muito forte. Conseguimos nos classificar para a Liga Europa em três temporadas consecutivas e chegamos a duas finais da Copa do Rei. Estamos muito felizes de ser o terceiro time da cidade. O importante para nós é continuar esse progresso", diz Alberto Heras, diretor de marketing do Getafe.

No balanço da temporada passada, divulgado pelo Campeonato Espanhol, o Getafe aparece com a terceira menor cota de televisão do torneio. Enquanto o líder Barcelona recebe 154 milhões de euros, o Getafe embolsa 44,5 milhões de euros. O Leganés, outro clube citado nesta matéria, recebe ainda menos: 43,3 milhões de euros, o valor mais baixo da competição.

"A cota de televisão é a parte mais importante do nosso orçamento. Ele representa, mais ou menos, 80% do nosso orçamento. É verdade que caiu muito a distância entre os clubes grandes e pequenos, mas ainda continua sendo enorme. Barcelona, Real e Atlético recebem mais que o dobro da gente. O Atlético de Madri tem mais ou menos 500 milhões de euros de orçamento anual. O Getafe tem 100 milhões", continua

A distância dos grandes para os pequenos em relação à cota de televisão atingiu o menor patamar na última temporada. O líder Barcelona recebe 3,5 vezes mais que o lanterna Leganés. O valor recebido por cada clube é determinado por três fatores: posição final na última temporada, média de público nas últimas cinco temporadas e audiência de TV gerada por cada equipe.

David S. Bustamante/Soccrates /Getty Images David S. Bustamante/Soccrates /Getty Images

O real futebol espanhol

Visitar Getafe e Leganés é como conhecer a realidade do Campeonato Espanhol. Pela TV da sala, a impressão que fica é que tudo é luxo e todos os times espanhóis têm muito dinheiro para gastar em reforços milionários. Mas as dificuldades existem tanto quanto deste lado do oceano.

Uma passada pelos clubes menores da capital espanhola é um exercício de reflexão para os fãs do tal "futebol raiz". A Espanha é muito mais do que o perfeito gramado do Santiago Bernabéu ou os luxuosos camarotes do Wanda Metropolitano. Também é possível "sentar no cimento" para ver um jogo de futebol na terra do rei Filipe VI. Vale a pena...

Denis Doyle/Getty Images Denis Doyle/Getty Images

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