Velho sábio chinês

Juarez Soares se aventurou até na política, mas viveu o jornalismo esportivo intensamente (até o fim)

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

A edição de hoje (24) do programa "Capital da Bola", transmitido diariamente pela rádio Capital, de São Paulo, tinha confirmada em sua gravação a presença do jornalista Juarez Soares para debater os principais assuntos do futebol brasileiro ao lado de Marcelinho Carioca, Anderson Cheni e Osmar Garraffa. Os planos mudaram.

Ontem, aos 78 anos, ele estava em casa e foi levado às pressas para a Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Já debilitado em razão de um câncer no reto, teve parada cardiorrespiratória por volta das 13h, foi reanimado, mas voltou a apresentar o mesmo quadro minutos depois e teve a morte confirmada perto de 14h. Será enterrado hoje à tarde, no Cemitério da Consolação. É o fim de uma trajetória pública das mais relevantes, na política e, principalmente, em 57 anos de jornalismo esportivo.

Conhecido pelo apelido China, o paulista nascido em São José dos Campos estreou em 1961 e passou por todos os grandes canais de TV do Brasil, inclusive a Globo, onde foi o único repórter de campo na icônica Copa do Mundo de 1982. Sua trajetória o trouxe ao UOL em 2014 como comentarista convidado dos jogos da Copa do Mundo no Brasil.

Saiu do ar só em abril, na Rede TV!. Mas se manteve nas ondas do rádio, em que também foi voz marcante ao longo dos anos, até o mês passado. Uma dedicação que deixa saudades e lições. E que apareceu até em seus trabalhos como vereador e secretário de São Paulo.

Como diz o ex-companheiro Milton Neves, o "velho sábio chinês", das divertidas transmissões, frases feitas e comentários cheios de acidez e firmeza, sai de cena.

Arte/UOL
Arquivo Arquivo

Único repórter da Copa de 1982

O Mundial de 1982 é lembrado com saudades até hoje pela seleção que encantou o mundo com um futebol bem jogado, mas que não foi campeã. Exceção feita aos poucos brasileiros que estiveram na Espanha para o torneio, o restante se lembra dos feitos de Falcão, Sócrates e Zico pela transmissão da TV Globo. O canal tinha exclusividade na exibição dos jogos do Brasil e contava com uma equipe formada por Luciano do Valle como narrador, Márcio Guedes como comentarista e Juarez Soares nas reportagens de campo.

Ele já havia trabalhado nas Copas do Mundo de 1974 e 1978, mas ficou marcado pelo desempenho na Espanha, justamente por ter sido o único repórter brasileiro.

Após 1982, Juarez aceitou um convite de Luciano do Valle para deixar a Globo e o auxiliar na criação do "Show do Esporte", programa que fez história na TV Bandeirantes.

"Falar do China para mim é complicado, nós fomos muito amigos. Ele era diretor na época em que nós trabalhamos na TV Bandeirantes com o Luciano do Valle. Fizemos Copa do Mundo juntos, Olimpíadas juntos, a gente se comunicava sempre. É uma perda muito grande para todo mundo, principalmente para o jornalismo brasileiro. Vai ser difícil superar isso tudo, porque ele é bom amigo, bom companheiro, excelente profissional. Perde todo mundo", diz o campeão mundial Gérson, seu ex-colega.

Reprodução Reprodução

"Vocês vão ter que me engolir" de 1997 foi para Juarez e Juca

O UOL Esporte revelou, em reportagem especial publicada por ocasião dos 25 anos do tetracampeonato mundial da seleção brasileira, que Zagallo disse a frase "vocês vão ter que me engolir" pela primeira vez em 1994. Não em 1997, após a conquista da Copa América na Bolívia. Foi esta segunda, porém, que ficou eternizada por conta dos gestos e do grito em direção à câmera do então técnico da seleção. O recado do Velho Lobo era dirigido a dois jornalistas: Juca Kfouri e Juarez Soares.

"Estavam fazendo uma onda muito grande para colocar o Luxemburgo no meu lugar. O título veio e aí eu dei uma explosão. Foi uma resposta indireta para eles", contou Zagallo, vinte anos depois.

A rixa entre Juarez e Zagallo era antiga. Em uma mesa redonda da TV Bandeirantes, anos antes, o jornalista lembrou que o treinador havia obedecido a uma ordem do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici para convocar Dadá Maravilha à Copa do Mundo de 1970, e Zagallo se revoltou no ar. Juarez Soares considerou a desavença superada em 1998, também durante a Copa, por conta de um gesto carinhoso do treinador em relação a ele.

É mais um episódio que mostra características do jornalista veterano, definidas pelo narrador Jota Júnior, seu companheiro de trabalho por 16 anos: "Juarez ao mesmo tempo em que era direto, autêntico e combativo nas ideias era muito generoso. Foi um professor de jornalismo para mim e para quem quisesse aprender, uma figura humana admirável."

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Rede TV!

"Eu trabalhei quase minha vida inteira com ele. Era uma pessoa eletrizante, de uma inteligência rara, pensamento rápido, observação sarcástica. Um cara duro na crítica, que não fazia contemplação para nada, muito sério para trabalhar. Mas um ser humano maravilhoso, contador de histórias, uma pessoa muito diferente das outras. Ele tinha o brilho de um craque. A primeira vez que eu o vi foi dentro de um vestiário em Campinas, jogo do Guarani. Eu estava trabalhando em rádio com meu gravadorzinho e via ele com o microfone da Globo na mão. Olhei e falei: 'eu quero ser esse cara'. Estou mal. É muito triste, passei muito tempo do lado dele, viajando, almoçando, jantando, contando história. E ele morreu no dia do meu aniversário. É um brincalhão. Como faz um negócio desses? Mas ele está num lugar melhor."

Luiz Ceará, jornalista esportivo

Causos do China

Divulgação

Indiscrição

Uma história inusitada sobre Juarez Soares foi contada em 2013 pelo médico e comentarista Osmar de Oliveira, que morreu no ano seguinte: "Teve um jogo que ele teve uma desinteria volumosa, largou microfone no campo, saiu correndo e foi lá fazer as necessidades dele". De acordo com Dr. Osmar, o narrador da transmissão não foi informado do problema e ficou chamando Juarez sem que ele falasse. Até que um operador que puxava cabos entrou no ar: "O locutor foi cagar!".

UOL Esporte

Orgulho

O último trabalho foi na rádio Capital, como comentarista do programa "Capital da Bola", apresentado pelo ex-jogador Marcelinho Carioca. Anos antes, o jornalista havia dito que não concordava com jogadores e jornalistas lado a lado na bancada: "Sou contra alguém ocupar posição de jornalista sem ser". O China, inclusive, só aceitou o convite para integrar este trabalho porque o ex-jogador do Corinthians se formou profissional em 2017, aos 46 anos.

Divulgação

Campeonato Inglês e rádio ao vivo: os últimos desafios da carreira

Além do UOL, da TV Globo e da Bandeirantes, Juarez Soares passou por Record, SBT e Rede Vida, rádios Gazeta, Tupi, Excelsior, Trianon, Record, Transamérica, Capital e até Oceânica AM de Caraguatatuba, que foi sua propriedade. O último emprego na televisão foi na Rede TV!, entre abril de 2013 e abril de 2019.

Já o último programa foi o "Bola na Rede" na madrugada do dia 1º de abril, e a última transmissão de partida dois dias antes, na vitória por 2 a 0 do Everton diante do West Ham, pelo Campeonato Inglês. O jogo teve narração de Marcelo Do Ó e comentários de Juarez Soares ao lado de Fernando Fontana.

Entre janeiro e abril deste ano ele acumulou o trabalho na Rede TV! com os comentários pela rádio Capital, na equipe de jornalismo chefiada por Marcelinho Carioca. Ele se afastou do dial na segunda semana de junho para tratamento de câncer e não voltou mais. Vinha sendo substituído pelo jornalista Rafael Esgrilis, de 35 anos.

A gente busca espelhos em qualquer segmento, para tudo que faz. Eu comecei ouvindo rádio graças ao meu pai, que ouvia Juarez Soares. Trabalhar com ele, vendo como é a pessoa, e cada dia tendo oportunidade de beber dessa fonte de sabedoria, foi uma honra. Um cara sensacional, que pensava em todos, honesto e contador de histórias

Rafael Esgrilis, Jornalista da rádio Capital, em São Paulo

Todos os jornalistas que estão aqui [redação da rádio Capital] estão tristes, porque ele era uma pessoa com luz própria, um cara muito importante. As últimas notícias eram de que ele estava muito bem, então agora todo mundo foi surpreendido. É um grande espelho que vai embora, um dos grandes nomes do rádio brasileiro que nos deixa

diz o substituto de Juarez desde junho de 2019

Divulgação

Liderança em greve causou demissão da TV Globo

Juarez Soares estava na TV Globo em maio de 1979, quando o Sindicato de Jornalistas de São Paulo decretou greve pela reivindicação de 25% de aumento salarial. Foi a última greve da categoria no Brasil. Na época, os patrões não modificaram a proposta inicial de 16% de reajuste, formando um impasse que foi resolvido pelo Tribunal Regional do Trabalho: a greve foi julgada ilegal.

Esta decisão abriu espaço para empresas retaliarem funcionários que estivessem entre os mais de 200 grevistas. Juarez, que mobilizou outros jornalistas da TV Globo, foi um alvo fácil e acabou dispensado do canal na ocasião. Ele foi para a rádio Capital, mas rapidamente saiu para a rádio Globo, em que trabalhou com Osmar Santos. Foi o que abriu caminho para participar da transmissão da Copa do Mundo na TV. Ao todo, a trajetória do jornalista no canal durou de 1974 a 82, com breve pausa.

Mas a vida política de Juarez Soares não parou por aí.

Era meu amigo, conselheiro em muitas coisas para mim. É um jornalista que já faz falta

Andrés Sanchez, Presidente do Corinthians, ex-deputado federal pelo PT

Reprodução

Vereador, secretário e quase ministro

O movimento a dar origem ao Partido dos Trabalhadores (PT), que elegeu dois presidentes da República no Brasil, teve colaboração do jornalista esportivo Juarez Soares. Foi o cunhado de China, Júlio de Grammont, quem o arrastou para as reuniões: ele havia sido preso político e militante do Partido Comunista antes de se tornar assessor de imprensa do sindicato dos metalúrgicos do ABC Paulista e figura bem próxima ao líder sindical, depois presidente, Lula.

Julinho, como era chamado, promovia churrascos, conversas e reuniões sobre política nesta época de efervescência, e Juarez participava dos encontros. "Um dia o Julinho comentou que estava para surgir o partido (...) Mas não era fácil se envolver com política. Quem era envolvido com o movimento dos trabalhadores, porque não existia o partido, era por vezes mal visto nas redações", disse, em entrevista à revista "Vitti". Juarez Soares dava apoio às greves e movimentos em São Bernardo do Campo e se filiou após a criação do partido, em 1980.

O jornalista acabou como o sexto vereador mais votado da cidade de São Paulo nas eleições de 1988. No mesmo pleito, Luiza Erundina (PT) venceu Paulo Maluf (PDS) e virou prefeita. Indicou o vereador Juarez Soares como secretário de esportes da capital. Durante sua gestão, o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 voltou ao autódromo de Interlagos após nove edições em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Nem o PT queria: "Eles achavam que era coisa de rico, que tinha outras prioridades".

O China não se candidatou à reeleição em 1992 e voltou ao jornalismo. Foi candidato novamente a deputado federal em 2002, mas não venceu. Passou perto de indicação para o ministério do Esporte do primeiro governo Lula (2003-2006), mas acabou deixando o PT para ser candidato a vice-prefeito de São Paulo pelo PDT, que lançou Paulinho da Força em 2004. Também não venceu.

Em 2005 assumiu como secretário-adjunto da Secretaria do Trabalho da capital paulista, mas pediu exoneração no ano seguinte após denúncias de nepotismo. Foi candidato a deputado estadual em 2006, não ganhou e, enfim, encerrou sua carreira política.

Juarez Soares Moreira deixa viúva Helena de Grammont, também jornalista, e cinco filhas, Clarissa, Larissa, Melissa, Juliana e Ana Júlia, e um filho, Alexandre, de casamentos diferentes.

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