"O basquete me salvou"

O relato do atleta do Corinthians que cresceu numa favela peruana e viu um tiro mudar sua vida

Kyle "Zoom" Fuller Especial para o UOL, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

O basquete salvou minha vida, mano. Eu tenho uma cicatriz no ombro direito porque levei um tiro na favela. Eu tinha uns 14 anos. Pessoas estavam fazendo coisas erradas, mas nunca fiz nada isso. Nunca. Naquela época, eu vi muitas coisas que não posso nem falar, mas que nunca vou esquecer na minha vida. Coisas que jamais uma criança poderia ver.

Eu queria ganhar dinheiro, queria ajudar a minha mãe, o meu pai. Mas as pessoas falavam: "Você não pode fazer o que a gente faz" ou "Deixa ele, porque ele vai ter futuro". Muitas vezes perguntei, não nego: "Mano, pode acontecer alguma coisa comigo se ajudar vocês?".

Perdi amigos, vários. Infelizmente, meu melhor amigo não está mais na minha vida. Não posso falar o que ele fez, mas foi uma coisa ruim, de que não gostaram. Ele estava brincando e tudo aconteceu bem na minha cara, mano.

Na favela, você tem poucos amigos que estão fazendo coisas certas. Uma vez, eu estava tranquilo com um amigo, quando veio um carro muito devagar. Todo mundo começou a correr. Era uma gritaria só: "corre, corre". Se você está junto de alguém, nunca corra junto dessa pessoa. Não vire um alvo fácil. Eu esqueci disso naquele dia. Corri, saltei uma grade e só ouvi: "fuuu". Muito rápido.

Eu não pensava no tiro, só corria. Cheguei na casa da minha melhor amiga e disse: "você não sabe o que aconteceu. Tentaram me matar". Ela só falou: "olhe o seu braço". Estava sangrando, muito. Desmaiei na mesma hora.

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Eu não ia para o hospital. Nem fodendo. Quando você vai ao hospital, ainda mais com um tiro, e você é pobre, vão perguntar as coisas. A polícia ia achar que eu estava fazendo algo errado. Por isso meu ombro ficou assim, com essa cicatriz. Eu fui para casa e deixei o tempo passar.

Acordei com meu pai em cima de mim, dizendo que iríamos fazer de tudo para não ficar mais ali. Um ano depois, fizemos as malas e voltamos para os Estados Unidos, onde nasci. Lá, conheci o que era o basquete mesmo. Eu "matei" todo mundo quando cheguei, mano. Tinha arbitragem, eu nem sabia o que era falta. Não tinha falta na favela. Jogando na rua era só porrada.

Ali mudou tudo, o tiro me tirou do Peru. Os Estados Unidos me deram muita coisa, foi um país muito bom para a minha vida. Joguei muito, ingressei na universidade de Vanderbilt graças ao basquete e joguei contra caras que hoje estão na NBA, mano.

Mas só sou quem eu sou hoje, o Gringo da Favela do Corinthians, porque cresci e vi o que vi no Peru.

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Eu jogava nas ruas, no improviso. Não havia muitas chances, especialmente na favela. Meu primeiro jogo na rua foi contra uns caras de uns 20 anos. Foi também minha primeira briga na vida. Lá, não importava que eu só tinha 11 anos. Se você está jogando, você é um homem adulto e será tratado como tal. Ninguém queria uma criança no seu time. Cheguei e pedi ajuda para o meu pai. Nunca esqueci a resposta dele: "você tem de fazer eles te respeitarem".

Dias depois, voltei lá e tinha um velho bêbado. Um velho que estava sempre bêbado e jogava assim. Ele me chamou para jogar com ele. Ele dava um "crossover" e gritava "ôôôôô". Eu gostei daquilo. Dei um drible, fiz uma bandeja e imitei. Os caras ficaram bravos. Pedi a bola de novo, repeti a jogada e veio mais uma: "ôôôôô". Era meter a bandeja e gritar. Meter a bandeja e gritar. Fiz isso na última bola. Ganhamos o jogo. Todo mundo amou. Ou quase todo mundo.

Estava a pé indo para casa, quando um dos caras me empurrou por trás. Eu caí e comecei a brigar. Meu pai estava junto. Levei dois socos, e ele não fez nada. Quando montaram em cima de mim, ele veio e tirou o cara de perto. A briga tinha acabado. Meu pai me olhou e disse: "ninguém vai te ajudar quando eu não estiver". Eu estava puto, mano. Puto, chorando. Com raiva do meu pai, que me deu uma lição.

"Agora você vai aprender. Você não sabe o quanto te respeito, o quanto vão te respeitar agora. Você 'matou' ele na quadra, você não fugiu de uma luta. Você tem 11 anos e não fugiu de um cara de 20. Todo mundo vai te respeitar. Agora, você conta para a sua mãe que você caiu na rua". Minha mãe mataria ele, se soubesse. Mataria.

Voltei na quadra dias depois, e todo mundo me chamava de Zoom. O Zoom começou por causa daquela briga, porque eu era rápido. Aquele velho bêbado me chamou de Zoom. Pelas mãos rápidas na porrada, e também na quadra.

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Meu pai é meu melhor amigo até hoje. Ele pensava que eu não sabia da doença dele. Só contou quando não pôde mais esconder. Mas eu já tinha descoberto dois anos antes. Ele estava doente havia quatro anos. Eu sabia de tudo, porque via como as pessoas o tratavam. Principalmente, via os remédios em cima da mesa.

Eles achavam que eu não ia perceber, mas eu sabia tudo o que meu pai fazia, porque eu sempre olhava para ele e tentava fazer igual. Eu olhava tudo. Fiz isso até seu último dia de vida. Quando ele estava doente, eu notei que o jeito com que ele tratava a minha mãe mudou. Eles estavam brigando mais, muito mais do que o normal. Meu pai estava cansado de tudo, e minha mãe chorava sempre. A doença fez isso com eles. Eu tenho vontade de chorar quando falo disso.

Nessa época, era muito difícil ficar perto dele, porque ele estava muito bravo com a vida. Antes do câncer, ele era forte, tinha a minha cor, estava mais gordo. Ali na cama, quando tudo estava para acabar, ele estava mais escuro, não tinha quase cabelo. A quimioterapia acabou com ele, acabou com o humor dele. Ele estava muito diferente. Ninguém mais o reconhecia.

Ele sempre falava que um dia queria me ver na NBA. Eu só pensava: "é claro que você vai me ver lá". Ele queria ter tido essa chance, eu sei disso. Eu queria que ele tivesse tido essa chance. Dói muito isso, porque no meu último dia com ele, a gente viu pela televisão o Los Angeles Clippers nos playoffs. O Chris Paul estava na quadra, e meu pai deitado na cama vendo o jogo comigo. Parecia que ele sabia que seria seu último dia. Ele já sabia que ia morrer. Ele ia morrer.

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Um dia antes de morrer, ele pediu para eu chamar o meu irmão e falou "te amo". Para mim, ele só falou que um dia eu tinha de jogar como o Chris Paul. Foram essas as últimas palavras que ouvi dele: "jogue como o Chris Paul". Ele pedia para eu olhá-lo na televisão e ver o modo como era agressivo, sem se importar com o adversário. Ele dizia que aquilo valia para a vida, não só para o esporte. Ele falou que ninguém ia me dar nada na vida, porque eu era preto e não tinha crescido com dinheiro. Era preciso sair e enfrentar tudo, como ele estava enfrentando a doença. Eu estava pronto para isso, ele disse. Eu o abracei.

Acordei no dia seguinte, de manhã, com meu irmão correndo até o meu quarto, falando que o papai estava frio. Pulei da cama e me tranquei lá dentro com ele. Deixei meu irmão e minha mãe para fora. Eu chacoalhava o meu pai e pedia para ele voltar. Mas ele não se movia, estava mesmo gelado. Eu chorei perto dele, mas sabia que meu irmão e minha mãe estavam lá fora.

Sequei as lágrimas e pensei "tenho de ficar forte, dar o exemplo para o meu irmão". Respirei fundo e abri a porta. Olhei para a minha mãe. Coloquei ela num braço, meu irmão no outro. Eles só choravam. Muito. Eu tinha 20 anos e não podia chorar. Eu não chorei. Não podia. Meu irmão olhava na minha cara. Eu não podia chorar. Eu era o exemplo dele.

Meu pai é tudo para mim. Não tem uma pessoa que faz hoje o que ele fez por mim. Ele me cobrava quando eu fazia alguma coisa errada, ele me mostrava o certo. Ele me mostrou que eu precisava treinar para ser o melhor. Sempre que volto para os Estados Unidos, vou lá vê-lo. Vou ao cemitério. Não vou e digo 'oi e tchau'. Vou e fico lá por horas. Coloco uma toalha no chão, almoço com ele, assisto aos filmes que a gente via junto.

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Meu pai morreu há sete anos. Hoje, sou jogador do Corinthians, fui campeão do NBB na temporada passada pelo Paulistano. É um milagre estar vivendo tudo isso. Quando perdi meu pai, eu perdi o chão. Eu só queria terminar a escola e trabalhar em qualquer lugar, no McDonald's, qualquer coisa, porque ficaria difícil demais sem ele.

Mas meu avô disse que eu tinha de ir para a escola. Ele está aqui, tatuado no meu braço junto com a imagem do meu pai. Ele também morreu. Foi embora quando cheguei aqui no Corinthians. Por isso, esse ano estou jogando por ele. O nome dele está no meu tênis, assim como o da minha mãe e o do meu irmão. Ninguém sabia disso. Agora todo mundo vai saber que, hoje, eu jogo por ele. Ele me incentivou a continuar na escola. E eu comecei a treinar mais e mais. Eu tinha de fazer, eu tinha de lutar. Não era "se". Era fazer, lutar. Eu tinha uma chance e me agarrei a ela.

Eu nasci nos Estados Unidos, mas mudei para o Peru antes dos três anos. Eu tive uma infância feliz, porque não conhecia outra vida. Para mim, era normal todas as coisas que aconteciam na favela. Agora, depois de viver tanta coisa, eu vejo como era. A diferença é muito grande. Mas eu tinha um pai que era presente. Eu tive amigos que não tinham pai. E eles não tinham uma referência. A mãe precisava fazer os dois papéis. Comigo, não, os dois me mostraram o caminho. Eu aprendi o que era certo e errado.

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Quando cheguei aqui no Corinthians e uma pessoa falou: 'mano, você é o Gringo da Favela'. Isso ficou comigo. Eu sou mesmo um gringo que cresceu na favela, entendeu? Isso não é mentira.

Eu tenho muito respeito pelo Kazim. Ele era o Gringo da Favela, agora eu sou o novo Gringo da Favela. Eu cresci na favela. Morei em Los Angeles, no gueto. A favela não é coisa nova para mim, entendeu? Tinha dias que eu não comia nada e via meu irmãozinho comendo, porque meu pai falava que eles precisavam comer mais do que a gente. Uma vez isso aconteceu por dois dias seguidos. Eu só tomava água e Inca Cola [marca de refrigerante popular no Peru].

Mano, estou no time do meu ídolo! O Paolo Guerrero é meu ídolo. Se eu vir o Guerrero, vou chorar. E é difícil eu chorar. Ele é uma referência, fez muito pelo país. Ele é um peruano que jogou aqui e ganhou o mundo. Por isso que eu gosto de tatuagens, quis imitar. Ele nem sabe. Quando me falaram da proposta do Corinthians, me perguntaram se eu conhecia o clube. Eu disse 'claro!', mas só o futebol, não o basquete. Só não sabia que era tão grande. Havia outros times que me queriam, e então falei para minha mãe. Ela gritou: 'Corinthians? Vai! Você não tem outra opção! Você vai agora!". Estou aqui por isso também.

É uma coisa muito estranha. Eu fui para um restaurante outro dia e pediram para tirar foto comigo. As pessoas sabem quem eu sou. Para mim, é um sonho que estou vivendo. Outro dia, liguei numa loja do Corinthians para saber se tinha a minha camisa, porque queria dar de presente para algumas pessoas. Eles falaram que não tinham mais, sem saber quem estava ao telefone. O cara disse "a camisa 2 do Fuller vende muito rápido". Pedi para me avisarem quando chegasse e, então, ele perguntou meu nome. Eu disse que era o Zoom Fuller. O cara não acreditou, começou a gritar. Eu achei aquilo impossível. Não podia ser real. Há sete anos eu estava mal e não sabia o que fazer da minha vida. Meu pai tinha morrido, ninguém sabia meu nome, eu não sabia o que fazer da vida, não estava ganhando dinheiro. E hoje estou aqui. É inacreditável.

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Eu tenho que agradecer por isso, de verdade. Vou jogar o Pan-Americano pelo Peru. Meus amigos de Lima, minha família, todos vão me ver jogar. Para mim, é muita felicidade. É um orgulho.

Se eu pudesse falar com crianças que crescem como eu cresci, na favela, eu diria que já estive nessa situação e consegui chegar até aqui. Não é preciso acreditar em Deus, é preciso acreditar em qualquer coisa, ter fé em qualquer coisa. Em Deus, em você, no seu trabalho, em qualquer coisa. E outra: é preciso fazer as coisas com amor. Não importa o resto. Se você tiver amor, você não vai parar de fazer o que gosta. Amor e fé. Isso vai te levar a algum lugar. Isso ninguém dá a você, nem técnico, nem ninguém. É só com você.

Eu sei que as crianças me observam. Sei que sou um exemplo para elas. Eu nunca tive a chance de ficar perto dos meus ídolos. Então, gosto de fazer isso para as crianças, mostrar que podem ser como eu um dia. Faço de coração. Eu sei que se eu abraçar esse cara, ele vai querer fazer o que eu faço. Muitos não terão chances. E isso me quebra. Dói muito. Mas o esporte pode ajudar nisso. A minha vida foi assim. Se elas voltarem para casa dizendo "eu quero ser ele", eu fiz meu trabalho. Fiz meu trabalho muito mais do que dentro da quadra.

Eu também tenho muito apego pelas pessoas que têm câncer. Tem um menino que chegou no jogo uma vez e pediu a minha camisa. Ele tem câncer. Quando soube que ele tinha voltado para o hospital, fui fazer uma visita surpresa. Ele gostava muito de futebol, mas começou a gostar de basquete por minha causa. Ele olha para a minha cara e fica feliz. Se eu posso ir lá ajudar a deixá-lo mais forte, por que não fazer isso? Meu pai morreu disso aos 40 anos. Ele tem 11. Ele ainda tem muita vida pela frente.

Eu tenho tudo hoje, mas ainda quero realizar sonhos. Minha mãe nunca viu um jogo meu por um time profissional. Ela vai vir agora para os jogos do Corinthians nos playoffs. Já consegui retribuir um pouco do que ela fez por mim. No Natal de 2017, pude comprar um carro para a minha mãe. Eu tinha prometido isso quando eu era criança e ela tinha de voltar a pé do trabalho à noite porque o carro quebrou. Sabe o quanto isso era perigoso para ela? Eu não esqueci da promessa e nem do que ela fez por mim quando meu pai morreu. Ela arrumou dois trabalhos e disse para eu ficar tranquilo para jogar.

Agora, eu estou cuidando dela, retribuindo tudo o que fez por mim. Hoje eles moram num lugar mais tranquilo. Não precisam mais se preocupar com tiro.

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