Milésimo VAR

Corinthians x Flamengo será o milésimo jogo do árbitro de vídeo em eventos da CBF. Dá para voltar a viver sem?

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Dinho Zanotto/AGIF

Mão no ouvido, sinal retangular com os dedos, olhar no relógio e vários gritos de gol entalados na garganta. Em nome de decisões mais justas por parte da arbitragem, o futebol brasileiro teve que se acostumar com esse ritual nos últimos três anos — tudo por conta da inclusão do VAR. Há momentos de confiança no uso da ferramenta, outros de profunda irritação com a tecnologia e seus protocolos. Entre críticas e elogios, o fato é que o árbitro de vídeo alcança neste domingo (1), no Corinthians x Flamengo pelo Brasileirão, seu milésimo jogo em eventos organizados pela CBF.

A comissão de arbitragem, inclusive, aproveitará a marca para inaugurar a central do VAR, usando uma das dez salas preparadas em um prédio na Barra da Tijuca, no Rio, onde estará o árbitro Daniel Bins. Por garantia, há uma cabine "reserva" preparada na Neo Química Arena. Se der problema, Elmo Resende da Cunha entrará em ação como VAR. O plano da CBF, inclusive, é que a partir do returno a fibra ótica ligue o quartel-general do apito nacional a todos os estádios da Série A.

"A gente nem está chamando mais de projeto. Hoje em dia não é mais projeto. É realidade. Os clubes não querem mais jogar sem ele. O pessoal vê a necessidade", disse ao UOL Esporte Leonardo Gaciba, presidente da comissão de arbitragem.

O VAR estreou nas competições da CBF na Copa do Brasil de 2018. A conta de mil jogos não inclui estaduais. O volume de partidas aumentará neste ano com a chegada da tecnologia à Série B, a partir do returno, e nas fases finais das Séries C e D.

Dinho Zanotto/AGIF
Rafael Vieira/AGIF

Por que o VAR pegou?

A proposta do VAR é aparentemente simples. Evitar erros absurdos verificando quatro situações: lances de gol (incluindo checagem de impedimento), marcações de pênalti, expulsões e erros de identidade.

O Brasil esteve na lista de países que deram o primeiro passo junto à Fifa para receber os testes e adotar a tecnologia. A entidade máxima avançou com o uso do VAR, e a Conmebol também aderiu a partir das oitavas de final da Libertadores, mesma fase que o árbitro de vídeo entra na Copa do Brasil. No Brasileirão, os clubes aprovaram o uso a partir da edição 2019.

"O VAR veio para ficar. Não se imagina mais o retrocesso no uso dessa ferramenta. Ele tem como elemento positivo a possibilidade de nos dar uma decisão mais exata sobre questões do jogo. Tínhamos erros que o bandeirinha ou o árbitro não conseguiam detectar e a tecnologia detecta", disse o presidente do Internacional, Alessandro Barcellos.

Na elite nacional, o combinado é que a CBF arque com os custos da área tecnológica e os clubes banquem o pessoal (quem trabalha na cabine, como o árbitro de vídeo, assistente e operador).

"Não imagino mais o futebol brasileiro sem o VAR, que deveria estar em todos os jogos, mas por uma questão econômica não é possível. Ele diminui muito o erro de arbitragem e traz mais justiça ao espetáculo", afirmou Marcelo Paz, presidente do Fortaleza.

Lucas Figueiredo/CBF

'Ser chamado era atestado de erro'

Na primeira vez que me chamaram, pensei: 'P... Errei. Fiz cagada'".

A conversa que Anderson Daronco teve em pensamento culminou com a primeira decisão de campo modificada pelo VAR no futebol brasileiro. O jogo em questão era o Bahia x Palmeiras, pelas quartas de final da Copa do Brasil 2018. Quando ouviu o chamado da cabine feito por Leandro Vuaden, reviu o lance e tirou o cartão vermelho dado ao volante Gregore, do time baiano, em jogada na qual já tinha sido dado pênalti.

"A primeira chamada para revisão é um batismo", compara Leonardo Gaciba.

Árbitros e assistentes estão sujeitos a isso. Quem está com a bandeira, inclusive, é orientado a esperar a conclusão das jogadas antes de dar o veredito para que o VAR possa ter condições de avaliar a decisão em seguida. Hoje, a CBF tem 23 árbitros de vídeo considerados de elite. A relação campo-cabine tem peculiaridades.

"As pessoas achavam primeiro que era melhor ter árbitro experiente na cabine. Depois, experiente no campo e novato na cabine. Não existe fórmula mágica para isso. Tenho árbitros de vídeo que nunca apitaram na Série A e são espetaculares no VAR. E tenho antigos que no vídeo não foram bem, mas são maravilhosos no campo", explica Gaciba.

O saldo é que o traço de insegurança que o pensamento de Daronco revela já não existe, segundo o próprio árbitro.

"Antes, ser chamado pelo VAR era um atestado de erro no campo. Hoje em dia é uma coisa muito normal. O árbitro do campo é a grande evolução. Ele aprendeu a apitar com a ferramenta, começou a decidir mais e acertar mais", diz ele ao UOL Esporte.

Quando o VAR deu certo

  • Fla x São Paulo, 2021

    Antes de o Flamengo deslanchar, virar e golear o São Paulo no Brasileirão 2021, um gol de Bruno Henrique foi corretamente anulado com intervenção do VAR, já que o árbitro de campo não tinha visto que o atacante rubro-negro tinha dominado a bola com o braço.

    Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF
  • Criciúma x Flu, 2021

    O pênalti que originou o segundo gol do Criciúma sobre o Fluminense, no jogo de ida das oitavas da Copa do Brasil, foi marcado após o árbitro ser chamado pela cabine para revisar falta cometida por Egídio em Dudu na área. Em campo, o árbitro tinha mandado o jogo seguir.

    Imagem: LUCAS GABRIEL/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
  • Inter x Bahia, 2019

    No Brasileirão 2019, um gol do Internacional sobre o Bahia foi validado após checagem usando as linhas de impedimento. O lance era muito ajustado. O traçado corrige a paralaxe. Ou seja, sem as linhas, a impressão visual era de impedimento por causa posicionamento das câmeras.

    Imagem: Divulgação/Comissão de Arbitragem da CBF
  • Palmeiras x Botafogo, 2019

    O VAR flagrou um pênalti em Deyverson no jogo entre Palmeiras e Botafogo, pelo Brasileirão 2019. No campo, a marcação inicial foi de impedimento e cartão amarelo por simulação. O jogo, inclusive, gerou discussão no STJD para verificar se o árbitro tinha dado início ao jogo antes da checagem do VAR.

    Imagem: Reprodução
Gabriel Machado/Gabriel Machado/AGIF

Entre baleia-azul, elefante e formiga

Uma discussão que sempre permeou o uso do VAR envolve o grau de interferência de quem está na cabine. Como teoria, o recado sempre foi claro — mínima interferência, máximo benefício. Mas calibrar esse limite tem sido difícil ao longo da caminhada na relação com a tecnologia.

"O árbitro de vídeo de perfeito é quando quem está vendo o jogo não percebe que ele existe", diz Leonardo Gaciba.

Figuras de linguagem explicam o que se pretende com o VAR. "Buscar elefantes e não formigas" é um comentário comum. Para deixar mais claro, o presidente da comissão de arbitragem até mudou de mamífero e quer que o VAR encontre "baleia-azul e não formiga":

Tivemos que trabalhar mais no que é um erro claro e óbvio. Tem que botar na cabeça que o VAR não é uma segunda oportunidade ao árbitro de campo. É uma ferramenta para detectar erros claros e óbvios."

Nas estatísticas da CBF, o número de revisões no Brasileirão, até agora, é inferior ao do ano passado, após a 14ª rodada, em aproximadamente um terço.

"O VAR está entrando mais em jogadas factuais. As interpretativas são do campo e com mais acerto. O menor número de revisões vem de dois lados: o campo acertando mais e o VAR sabendo quando tem que entrar. O número de decisões mantidas também é menor. A chamada correta é o árbitro ir à beira do campo, olhar e mudar a decisão. Se tem uma decisão mantida, alguém errou", completa Gaciba.

Max Peixoto/Estadão Conteúdo

Mas o VAR ainda irrita...

Ainda que indispensável para a maioria, há uma relação de amor e ódio com o VAR. Para além da mudança de hábito de só comemorar o gol definitivamente após checagem, a falta de perfeição acarreta situações que ainda irritam envolvidos no jogo.

"O que incomoda no VAR hoje? Tempo. Para checagem, revisão, formatar linhas...", admite Leonardo Gaciba.

Um exemplo se deu nesta semana, durante o Vitória x Grêmio pelas oitavas da Copa do Brasil. Um gol do time gaúcho levou nove minutos para ser confirmado.

"[Nesse caso] Claramente não tínhamos problema de ferramenta. Foi o VAR que não conseguiu achar a base do jogador para traçar linha do impedimento. Para nosso azar, nos oito jogos de ida, o único estádio que não tinha a câmera na linha do gol, invertida, era o Barradão", explicou o presidente da comissão de arbitragem.

Ainda no meio de semana, um pênalti marcado para o Criciúma diante do Fluminense chamou atenção. Por isso, os clubes apontam a necessidade de alinhar critérios. Gaciba não comenta decisões técnicas dos árbitros.

"É inadmissível um erro dessa forma. Acho que o VAR está aí para isso, e infelizmente, a gente fica à mercê e, de repente, acaba jogando fora um grande trabalho", disse o executivo de futebol do Criciúma, Juliano Camargo.

O que eles disseram

O que falta ainda é elemento de padronização. A gente verifica interpretações diferentes e uso diferente, dependendo do árbitro, da situação, do jogo. Isso é inadmissível.

Alessandro Barcellos, Presidente do Internacional

Ainda são seres humanos que dirigem a máquina. O VAR nunca prometeu erro zero. Pontualmente ainda acontece decisões que a maioria acha equivocada.

Leonardo Gaciba, Presidente da comissão de arbitragem

O VAR agiu muito mal, falta de critério ao chamar o árbitro para um lance em que o amarelo estava de bom tom. Esperamos que isso mude e que tenha um critério único.

Julio Casares, Presidente do São Paulo, após expulsão de Rodrigo Nestor contra a Chapecoense

Quando o VAR deu errado

  • Atlético-MG x São Paulo, 2020

    A CBF admitiu que um gol do São Paulo sobre o Atlético-MG, no Brasileirão 2020, foi anulado equivocadamente após a linha que mede o impedimento ser traçada de forma errada. O ponto de referência não foi indicado corretamente pelo VAR.

    Imagem: Reprodução/SporTV
  • Inter x Vasco, 2020

    O gol de Rodrigo Dourado, do Inter, em um jogo contra o Vasco, no Brasileirão 2020, não pôde ser checado porque as câmeras estavam descalibradas para medir corretamente o impedimento. O lance foi muito ajustado e a posição do volante era duvidosa.

    Imagem: Reprodução
  • Santos x Flamengo, 2020

    O VAR demorou dez minutos, ao todo, para checar e confirmar a anulação de dois gols do Santos no jogo contra o Flamengo, no Brasileirão 2020. Pelo menos as decisões foram corretas, mas a demora atrapalhou o andamento da partida.

    Imagem: Fernanda Luz/AGIF
  • Ceará x São Paulo, 2020

    No jogo pelo Brasileirão, o árbitro Wagner Nascimento Magalhães chegou a validar e autorizar o início do jogo, mesmo após o bandeira assinalar impedimento em um gol tricolor. Alertado pelo VAR, voltou atrás e esperou a checagem, que anulou o gol. O erro foi de procedimento.

    Imagem: Kely Pereira/AGIF
Thiago Ribeiro/AGIF

O efeito no movimento do jogo

A aplicação do árbitro de vídeo, casada com adaptações na regra do jogo, afetou a mecânica e o comportamento dos jogadores em campo.

Para quem faz gol, o reflexo de olhar para o bandeirinha também envolve esperar que o árbitro central não leve a mão ao ouvido e indique a checagem do lance. Com isso, há dois cenários: comemorações duplicadas (uma na hora que a bola entra e outra depois que o gol é confirmado) e comemorações frustradas (aquela que antecede a anulação do gol).

"Às vezes irrita um pouco naquela frustração do gol. E quando tem o gol, você não consegue comemorar direito o momento sublime do futebol", comenta o presidente do Fortaleza, Marcelo Paz.

Em jogadas na área, cresceu a preocupação com o posicionamento dos braços. Se deixar aberto, ainda que em um movimento natural, há risco de ser marcada penalidade.

"Culturalmente, acho que o futebol já mudou. Vejo o cuidado dos defensores com os braços. Agarra-agarra dentro da área é praticamente inexistente. Tem pontualmente, que o árbitro chama atenção e acaba. Outra coisa que eu percebi é que temos menos impedimentos milimétricos. O atacante está tomando cuidado de ficar em posição legal, e o zagueiro não arrisca mais. Fica mais atrás. Vai mudando a filosofia, o jogar", cita Leonardo Gaciba.

O que pode vir por aí

CBF

Central única

Na central única do VAR que a CBF vai inaugurar no Corinthians x Flamengo, é possível abrigar até dez jogos simultâneos. Esse número considera a rodada final da Série A. O sistema para a primeira divisão é fornecido pela Hawk-Eye, que tem contrato com a CBF até 2022. Mas o VAR das Séries B, C e D gerou acordo com outra empresa, a SportsHub. Com isso, há planos para uma outra central única, que envolva os equipamentos dessa empresa. Uma possibilidade é que a estrutura física se concentre em Barueri (SP).

Lucas Figueiredo/CBF

VAR Light

O Brasil está se colocando à disposição da Fifa para receber experimentos do chamado ?VAR Light?. Ou seja, uma operação reduzida do árbitro de vídeo. Há modelos com menos câmeras e até sem o operador. ?Já pedimos autorização. Uma das maneiras do VAR Light é ter o sistema todo normal, mas com menos câmeras. Na Série D, por exemplo, podemos ter jogo com quatro câmeras. Pelo protocolo do VAR, não seria permitido. Mas no VAR Light, sim. O que a Fifa achar de necessidade ela vai colocar para nós?, explicou Leonardo Gaciba.

Reprodução/SporTV

Mais sugestões

Há duas frentes de discussões que podem alterar o efeito prático do uso do VAR. Leonardo Gaciba, por exemplo, defende a adoção de desafios para os clubes. Essa pauta está sendo defendida pela Conmebol junto à Fifa. ?Está na hora de chegarmos à era do desafio. Ele tira a responsabilidade do árbitro e compartilha a importância do VAR com o clube?, disse o dirigente brasileiro. Outro aspecto que pode ser alterado é a regra do impedimento. ?Uma pequena diferenciação que mudaria tudo é se colocar só o pé para medir o impedimento?, diz ele.

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