As histórias de Marlene

1ª grande pivô do Brasil descobriu Hortência e liderou a louca fuga da concentração da seleção na Paris de 65

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Estadão Conteúdo

Quando viu aquele a criança magrinha, com todos os indícios de que não tinha uma alimentação adequada, a professora Marlene Bento deve ter pensado muita coisa. Mas logo se lembrou dela própria quando jovenzinha.

Então, se aproximou daquela magrela e perguntou se não queria treinar com as outras meninas ali na escolinha de basquete em São Caetano do Sul. A pequena disse que gostaria, mas não tinha tênis, condição primeira para poder entrar na quadra. Sabe-se lá por que, a professora resolveu abrir uma exceção.

Pula a cerca e vem pra quadra".

Foi uma das medidas mais acertadas que Marlene tomou na vida: em pouco tempo, aquela menina de sandálias já fazia o que as outras levavam meses de treino para executar em uma quadra de basquete. O ânimo foi tanto que a própria Marlene levou um par de tênis para presentear a pequena. Eram número 39. A menina calçava 36 e encheu a ponta com papel amassado.

Aquela menina era Hortência.

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Divulgação/CBB

Eu tinha 14 anos e uma amiga minha, que era da escolinha, me disse que tinha uma jogadora da seleção ensinando a jogar basquete. E isso me chamou a atenção. Eu me imaginava ao lado dela, de uma jogadora da seleção do Brasil. Hoje, entendo a importância que um ídolo tem para uma criança. Eu entrei no treino e dois anos depois já era titular da seleção brasileira. Foi a Marlene quem me introduziu no basquete, mas ela era tímida e nunca se aproveitou disso"

Hortência, campeã mundial de basquete em 1994.

Dona contra americanas e cubanas

A carreira de Marlene não foi só a descoberta de uma Rainha. Ela disputou quatro mundiais e cinco Pan-Americanos (tem as medalhas de ouro do Winnipeg-1967 e Cali-1971). E é isso que nós vamos mostrar agora, para que as novas gerações saibam quem foi a pivô Marlene Bento, campeã, líder, ídolo e educadora, que morreu nesta semana, aos 82 anos.

"Marlene é um dos maiores ícones de nosso basquete em todos os tempos", diz Maria Helena Cardoso, bronze no Mundial de 1971 como jogadora e ouro como treinadora no Pan de Havana, em 1991, aquele em que Hortência e Paula encantaram Fidel Castro na final. Maria Helena jogou ao lado de Marlene desde 1959. "Ela era um expoente da seleção, participou praticamente de três gerações do nosso esporte, sabia jogar, tinha fundamento do jogo e era também importante fora da quadra, pois tinha o dom de unir o grupo"

A ex-companheira dá risada quando conta que Marlene tinha a mania de dar apelidos. "Ela me chamava de 'Maria Gorda', porque eu estava sempre lutando contra a balança".

Quando a companheira não tinha ainda um apelido específico, ela mandava: "Morena, vai morena" — mesmo que a jogadora fosse loira.

"Durante o jogo, para que ninguém ficasse com dúvida, ela gritava que o garrafão era dela. E era mesmo", relembra Elzinha, que por ser pequenininha era chamada de Tiziu. "Ela foi uma das melhores pivôs fixas que eu conheci. Sabia usar o corpo como ninguém. E nos jogos contra cubanas e americanas, se impunha. E a gente escutava às vezes ela berrando: aqui tem dono".

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Boa de briga

Poucas tinham coragem de enfrentar a pivô de 1,82m (ela é a primeira à direita da foto acima) —lembrando que, nos anos 1960 e 1970, era uma altura de respeito. "E quem desafiasse corria risco", fala Norminha, que, por sua rapidez, era chamada de" Camundongo" por Marlene.

Um dia, a seleção do México resolveu tentar a sorte. Foi no Pan-Americano de Cali, de 1971. A própria Marlene me contou em uma reportagem feita em 2004 em seu apartamento, na cidade de Niterói: "Elas me beliscavam o tempo todo. Eram pequenininhas, e o jogo estava fácil, mas aí eu não me contive. Ficavam grudadas em mim e eu joguei uma no chão, o juiz, que era argentino, viu e me colocou fora da quadra. Fiquei suspensa no jogo decisivo, mas o Brasil ganhou a medalha de ouro".

Era uma época em que as jogadoras estudavam, trabalhavam e treinavam à noite. "A gente ganhava moradia e alimentação. O tênis era a gente mesmo que comprava. Nas viagens para fora do Brasil, se quiséssemos levar algum dinheiro, pedíamos empréstimo nos bancos", contou Marlene em 2004.

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O bronze no Mundial de 1971

Naquele mesmo ano de 1971, não teve jeito de brigar com outra seleção. Essa, sim, com jogadoras maiores que Marlene. O episódio foi contra a União Soviética no Campeonato Mundial realizado no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo —na foto, o encerramento daquele torneio.

"A gente fazia um quadrado tentando marcar a pivô Semenova, de mais de dois metros", diverte-se a pequena Norminha (na foto abaixo, o quadrado ao redor de Semenova). "Eu ficava na frente e a Marlene atrás dela. Mas não tinha jeito. Ou ela fazia a cesta ou a gente fazia falta".

Foi nesse mundial que as brasileiras ganharam divisas de grande time internacional, apesar da falta de intercâmbio. "O ginásio ficava lotado, os jogos passando na televisão, e a Marlene, antes da gente entrar na quadra, fazia uma espécie de palestra no vestiário e dizia da importância dos jogos para o nosso esporte. E dizia mais: 'estamos entrando na quadra pelo nosso Brasil é a primeira vez que o nosso país está vendo a gente jogar'", recorda Elzinha.

"No hotel São Paulo, onde a gente estava hospedada, a gente chegava com batedores, tinha torcida esperando na porta, pedindo autógrafos, coisas que nunca tinham acontecido", fala com saudade Delcy.

O Brasil terminou aquele Mundial em terceiro lugar, a primeira medalha da história da seleção feminina —a outra é o ouro de 1994, conquistado pela geração de Hortência e Paula.

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A louca fuga na Paris dos anos 60

Em 1965, a Federação Internacional estudava a possibilidade de incluir o basquete feminino nos Jogos Olímpicos. A seleção brasileira foi para a Europa e ficou 44 dias por lá. Foram 15 jogos disputados em quatro países. "Ganhamos 12 partidas", orgulha-se Delcy.

"E eu lembro que o nosso chefe da delegação, o senhor Ivan Raposo, com o time perdendo ou ganhando, colocava uma rosa ao lado de cada xícara no café da manhã. Havia muito carinho e respeito com toda a nossa equipe".

Antes de voltar ao Brasil, a delegação passou por Paris, onde esperaria o voo de retorno. A delegação entrou em um hotel — que não era um hotel de luxo - na Praça Pigalle. "O hotel ficava nas bocas, e o teto era tão baixinho que eu e a Nilza tínhamos que andar com a cabeça virada para não bater no teto", contou Marlene em 2004.

Após o jantar, o dirigente Raposo ordenou que as meninas se deitassem cedo. Ele mesmo se recolheu. Foi aí que Marlene assumiu o comando: como é que iriam dormir cedo com tantas tentações no centro do pecado da capital francesa?

Acervo/Elzinha

Na foto acima, a seleção brasileira de basquete dois anos depois da fuga de Paris, no Pan de Winnipeg-1967: Laís Elena, Elzinha, Angelina, Norminha, Nadir, Rosália, Jacy, Lucy, Delcy, Neusa, Marlene e Nilza.

O hotel mal-assombrado

"A Marlene tinha um código com todo o grupo: o que acontecia nos bastidores morria com elas", conta Elzinha. E foi aí que a "fuga pela noite de Paris" começou a ser planejada. "Nós resolvemos ter uma conversinha com o técnico Ari Vidal e falamos que não era justo ir dormir às sete da noite. Ele falou: 'Vocês saem, mas não deixem o Ivan Raposo ver... eu aqui não estou sabendo de nada'. Foi o sinal verde pra gente", fala Maria Helena. "O Ari Vidal só falou para não deixar a Amelinha ir junto, porque ela menor de idade", acrescenta Delcy.

Mas tinha um problema grave: o piso do hotel precisava de manutenção. "As escadas faziam aquele nhec, nhec, nhec... o hotel parecia aqueles de filme de terror", diverte-se Norminha com a lembrança. Indiferente aos riscos, Marlene começou a assobiar chamando as amigas de fuga.

"Fomos saindo de fininho do 'Palácio Assombrado' e andamos como nunca pela noite de Paris. Fomos no Madame Arthur, que era transgênero. Imagina só se a gente ia perder essa chance. Era o ano de 1964 ou 1965. Só quem viu, viu", conta Norminha.

Corrida alucinada pelas ruas de Paris

Foi aí que o imprevisto aconteceu. Marlene, do alto de seus 1,82m de altura, resolveu brincar. Quando todas caminhavam lépidas e fagueiras pela noite da Praça Pigalle, ela berrou: "Olha o seu Ivan Raposo!".

O tumulto foi geral. "Teve jogadora do Brasil que se escondeu embaixo dos carros", diz Delcy. "A Norminha, que não tinha jogado em Lyon porque estava machucada, deu um pique de 500 metros para se esconder", afirma Maria Helena.

O certo é que, após a mentirinha de Marlene, a turma achou que era chegada a hora de voltar ao hotel para dormir. Já eram quase sete da manhã. E qual não foi a surpresa de toda a turma quando o presidente Ivan Raposo bateu na porta dos quartos para tomar o café, com as rosas do lado das xícaras.

Meninas, vamos visitar a embaixada do Brasil!"

Todas, com os olhos inchados (mas aliviadas por evitar a bronca), foram sem reclamar.

Arquivo Arquivo

A despedida de Marlene

Marlene, que se foi agora, deixou histórias e saudade. "Ela teve problemas no quadril, sofreu muito nos últimos tempos", diz Hortência.

"Sempre que falava com ela por telefone, ela mantinha aquela voz altiva e bem humorada, apesar de todo o sofrimento causado pela doença que ela enfrentou durante anos", diz Delcy.

"Fazia 20 anos que eu não falava com ela. Há um mês, conversamos bastante. Ela ficou tão contente que quatro dias depois ligou de volta para mim e para a Heleninha para bater novo papo. É de arrepiar, mas aquela turma tinha uma união tão grande espiritual... Acho que foi uma despedida, não é?" — com certeza, Maria Helena.

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