Quem mexeu nos meus gols?

Marcas de Messi e Cristiano Ronaldo reacendem discussão: os gols "não oficiais" de Pelé devem ou não valer?

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Folha Imagem

Madri viveu dias de enorme expectativa em junho de 1959.

Era a primeira vez que o público do país poderia ver de perto a um tal Pelé, campeão mundial pela seleção brasileira no ano anterior, empilhador de recordes no outro continente com só 18 anos. Além disso, seria numa partida contra o Real Madrid, tetracampeão europeu com Di Stéfano fazendo chover. Os reis do mundo.

O Santos impôs rígida concentração a seus jogadores e solicitou até a escalação de um árbitro neutro. Sabia o peso do jogo. O Real Madrid preparou o que tinha de melhor poucas semanas depois de conquistar a Europa pela quarta vez. Estavam em campo Gento, Puskas e o próprio Di Stéfano. Os espanhóis também sabiam o peso desse confronto e a mídia local não parava de reforçar: seria a passagem de coroa e cetro?

Em campo, diante de 70 mil torcedores no estádio Santiago Bernabéu, Pelé acertou um chutaço de fora da área logo aos dez minutos para abrir o placar a favor do Santos. O Real reagiu de forma avassaladora, com três gols de Mateos com participações de Di Stéfano. No segundo tempo, Pepe diminuiu num pênalti sofrido por Pelé, o Real fez outro com Puskas, Coutinho recolocou o Santos no jogo, mas Gento fechou o placar em 5 a 3. Um jogaço, de tirar o fôlego.

Mais de 60 anos depois, o único encontro entre Pelé e Di Stéfano é parte da história do futebol, mas desconsiderado por muitos nas estatísticas de jogos e gols "oficiais" do brasileiro por não ter valido pontos em uma competição.

A discussão de gols "oficiais" do Rei do Futebol voltou à tona nas últimas semanas. É que Messi ultrapassou Pelé em gols por competição marcados por um único clube, enquanto Cristiano Ronaldo está próximo de ultrapassar o brasileiro em gols totais por competição. É como se esse gol contra o Real Madrid em Santiago Bernabéu, com súmula, arbitragem, regras da época e times uniformizados, não valesse o mesmo por estar fora da régua do que "vale pontos".

É como se mais de 40% dos gols de Pelé não tivessem que ser levados em conta.

Folha Imagem

Pepe relembra Real Madrid 5 x 3 Santos em 1959; assista

Montagem sobre Diário ABC Montagem sobre Diário ABC
David Ramos/Getty Images

Pelé teve três anos "não oficiais"

A Juventus entra em campo no domingo (10), às 16h45, contra o Sassuolo, pela 17ª rodada do Campeonato Italiano.

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Cristiano Ronaldo, melhor do mundo cinco vezes neste século, terá nova chance de superar a diferença de quatro gols em relação a Pelé como maior goleador por competições do mundo. O brasileiro tem 762 gols, enquanto o português soma 758 e ainda tem pelo caminho o checoslovaco/austríaco Josef Bican, com um a mais. CR7 é o maior artilheiro do futebol mundial ativo.

Já Messi, seis vezes Bola de Ouro, é o sexto maior da história em gols por competições. Por um único clube, ele soma 644 com a camisa do Barcelona, contra 642 de Pelé no Santos. O time espanhol entra em campo amanhã (9), às 14h30, contra o Granada, em mais uma oportunidade de aumentar a diferença.

"No total de gols, esses caras [Cristiano Ronaldo e Messi] só têm chance de chegar perto do Pelé se você fizer essa separação por oficial e não oficial. Simplesmente porque eles jogaram muito menos amistosos que o Pelé na vida. Eles têm mais gols em jogos oficiais porque fazem mais jogos oficiais. Mas tem amistoso que o Santos fez na Europa que vale muito mais do que qualquer jogo que o Cristiano Ronaldo tenha feito contra o Celta de Vigo, então são duas contas", contextualiza o pesquisador e jornalista Celso Unzelte.

Os 642 gols "oficiais" de Pelé pelo Santos (762 no total) contabilizam Campeonato Paulista, Torneio Rio-São Paulo, Taça de Prata/Robertão/Taça Brasil/Campeonato Brasileiro, Libertadores, Mundial e Recopa. Assim, são deixados de lado 520 gols marcados em 547 partidas que não valeram por competição, mas em grande maioria obedeceram às mesmas regras da época.

De acordo com levantamento do livro "Santos FC - O Maior Espetáculo da Terra", entre 1959 e 1974, Pelé e seus lendários companheiros passaram 1050 dias fora do Brasil em excursões. Três anos em 15 de carreira. E nada disso foi "oficial".

A maioria dos gols eu participei ao lado dele, ele com a 10 e eu com a 11. Todos os gols do Pelé têm que ser válidos porque foram gols difíceis, no interior ou no exterior. Não é justo tirarem os gols como se não fossem jogos oficiais. Cristiano Ronaldo é ótimo, um dos melhores do mundo, mas não é um artilheiro maior que o Rei da bola. É o segundo, o terceiro. Lionel Messi, idem. Enfrentamos adversários em campos esburacados, grama super alta para prejudicar nosso toque de bola, tentavam tudo para ganhar do Santos. Pode ter certeza que superar o número de gols do Pelé não acredito que aconteça nunca, jamais."

Pepe, ex-ponta do Santos e da seleção

Temos que ter o entendimento do que vale para nós e não do que vale para a Europa. O resto é perda de tempo. A Europa tem um método, que continue achando o que entende ser melhor. Eu conheço a história do Pelé. Se para eles têm mais valor os gols que Messi e CR7 marcaram é o critério deles, que fique para eles. Nossa memória é outra. Tentam apagar, mas ela está toda escrita e ninguém vai tirar a coroa do Pelé. É como eu chegar para o meu amigo Pepe e dizer: 'olha, sabe todos esses gols que você fez contra Real Madrid, Barcelona, Inter de Milão? Então, vários deles não valeram nada'. É claro que valeram."

Clodoaldo, ex-volante do Santos e da seleção

Sergio Jorge/Divulgação

"Não são 3 meses de Flórida Cup"

O que ex-jogadores contemporâneos de Pelé, pesquisadores e o próprio Santos não aceitam neste debate é a descontextualização dos mais de 500 jogos e gols apontados como "não oficiais".

Boa parte desses gols foi marcada contra os principais clubes brasileiros e estrangeiros e até seleções da época. Um exemplo é a Checoslováquia vice-campeã mundial de 1962, que, três anos depois, enfrentou o Santos em um torneio amistoso no Chile. Com tratamento de "jogo do século" por jornais do país, terminou com vitória brasileira por 6 a 4 e três gols de Pelé.

Também há gols marcados contra Real Madrid, Barcelona, Juventus, Roma, Benfica e outros 32 times que hoje estão na elite europeia. Isso acontece porque o futebol dos anos 50, 60 e 70 não era sistematizado em diversas competições no Brasil, então os clubes aproveitavam os vários meses livres para excursionar. Também era um tempo sem patrocínios ou direitos de TV, o que fazia o cachê dos jogos internacionais manter os clubes em atividade. A conta "oficial" desconsidera contextos, peso dos adversários, nível de competitividade e dimensão histórica.

Transformaram jogos amistosos oficiais em jogos-treino. Pelé não disputou campeonato com adversário amador, não tinha pedreiro ou padeiro do outro lado. Eram sempre profissionais, clubes que disputavam a Primeira Divisão em sua maioria, em jogos de 11 contra 11 profissionais, medidas de campo oficiais, uniformes, arbitragem, súmulas e regras da época. As pessoas caem na armadilha de analisar o passado com os olhos de hoje. Não eram três meses de Flórida Cup. Em 1958 o Santos só disputou Rio-São Paulo e Paulista. Em 59 entrou a Taça Brasil com pouquíssimas datas. Por isso havia muitas datas para jogos internacionais."

Marcelo Lucio Fernandes, pesquisador e escritor

Opiniões

  • Rodolfo Rodrigues

    "Na Europa, gols e jogos em partidas amistosas sempre foram ignorados. Qualquer lista traz apenas partidas oficiais de competição (como Liga dos Campeões ou Liga Europa e campeonatos e copas nacionais). Com isso, os números são mais precisos e justos. A Fifa usa o mesmo critério em jogos de seleções. Pelé, entre esses 449 gols, realmente marcou contra grandes clubes (como Real Madrid no Santiago Bernabéu), mas também contra times bem inexpressivos, como o Itáu Esporte Clube-MG, Seleção de Ilhéus-BA, Seleção B do Congo ou União Tijucana-RJ. Mas o fato é que, como padrão, são utilizados os jogos em competições oficiais. Tirando os jogos pelo Santos, seleção brasileira e Cosmos, Pelé tem ainda gols contabilizados pela 6ª Guarda Costeira e pela Seleção das Forças Armadas. Algo inimaginável hoje em dia. Excluir os gols de Pelé em jogos não-oficiais não é um absurdo. É uma questão de critério. No futebol, isso vai sempre existir. Você pode fazer contas e comparações por diversos critérios. Pelé foi o recordista de gols oficiais por um único clube por 50 anos. Ser superado por Messi não é demérito. Na minha opinião, não faz com que Messi seja maior."

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  • Julio Gomes

    "É honesto computar jogos oficiais e amistosos (desde que tenham súmula, tenham seguido as regras do jogo e tudo mais) -- e, nesse caso, Pelé é para sempre insuperável. E é honesto levar em conta somente jogos que valem alguma coisa, oras. Ou seja, jogos de competição. Esse critério é, sim, muito mais fácil de ser utilizado, os gols são mais fáceis de serem contabilizados. Então, é natural que, na Europa, onde o futebol é jogado do mesmo jeito, com as mesmas competições, há muitas e muitas décadas, este seja o critério primordial. Vocês acham que Cristiano Ronaldo e/ou Messi superarem Pelé em determinado ranking de gols, com o critério "jogos oficiais", seja uma notícia a ser desprezada? Não vejo racismo, não vejo preconceito, não vejo colonialismo. Vejo uma simples notícia, que naturalmente precisa ser dada, gerar um incômodo desproporcional aqui no Brasil. Pelé é o maior jogador de futebol de todos os tempos. Não por causa dos gols oficiais ou não oficiais, mas pelas Copas, pelos títulos, por tudo o que representou, por ter sido o cara que fez toda uma nação ser globalmente conhecida por causa de um esporte - que, olhem só, é o mais popular do planeta."

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  • Roberto Assaf

    "Eu acho um absurdo não considerarem os gols que o Pelé marcou em amistosos porque na maior parte das vezes o Santos enfrentava grandes times, inclusive times que se formaram no interior de São Paulo ao longo de décadas. Não era muito fácil você vencer o Botafogo em Ribeirão Preto, Guarani e Ponte Preta em Campinas ou o São Bento em Sorocaba. Eu não sei se isso é desfaçatez dos europeus ou ignorância, eu fico na dúvida entre os dois. Todo mundo sabe que o Brasil é um país gigantesco e que seria impossível você fazer grandes torneios nacionais numa época em que a aviação comercial não era como hoje. Então, esses jogos internacionais tinham mais valor do que os de hoje, cada excursão que o Santos fez ao exterior pegou sempre times grandes, Inter de Milão, Roma, Real Madrid... Para mim, o que existe hoje é uma forçação de barra para diminuir a importância dos gols do Pelé."

Reprodução

Romário "ajudou" a divulgar questionamentos a Pelé

A Associação dos Pesquisadores e Historiadores do Santos (Assophis) é uma das organizações que trabalha para mostrar o peso dos gols e jogos considerados "não oficiais" de Pelé. De acordo com membros do grupo, os 1282 gols (com variações para 1283 ou 1286) e 1372 jogos aceitos por clubes, Fifa e órgãos internacionais teriam começado a ser questionados em 1995.

Uma reportagem da época "descobriu" dois gols de Pelé antes desconhecidos, o que alterou a contagem do milésimo, marcado sobre o goleiro Andrada, do Vasco, no Maracanã — como foi eternizado. "Até esse momento, ninguém contestava gols do Pelé, nem a imprensa internacional, porque nunca houve um padrão definido pela Fifa do que era oficial ou não. A Fifa sempre dizia que um jogo para ser oficial era 11 contra 11 profissionais, medidas de campo oficiais, uniformes, arbitragem, súmulas. E tudo isso houve na contagem do Pelé", diz Marcelo Lucio Fernandes.

Segundo o pesquisador, a caça de Romário pelo milésimo gol é que desbravou novas leituras sobre os números do Rei. Em 2007, a "Revista Placar" estampou "Romário 1000 gols? Nem a pau!" para mostrar que o Baixinho estava perto de 900 gols, não de mil, como ele dizia ao considerar gols por times juvenis e infantis e até América-RJ x Amigos do Luisinho.

Na edição seguinte, a "Placar" manteve o assunto quente com a capa "Romário maior que Pelé - acredite, o Baixinho está prestes a superar o Rei do Futebol. E nem sabia disso". Baseado em pesquisas de Severino Filho, a publicação mostrou que Romário estava prestes a ultrapassar Pelé em gols por competições oficiais — os tais "gols oficiais" que derrubam as estatísticas de Pelé.

Romário teria ajudado no que alguns pesquisadores consideram um "apagamento" dos feitos de Pelé ao questionar sua marca em entrevistas:

Pelé marcou gol contra a seleção do Exército e valeu, marcou gol de terno na demolição de Wembley e valeu. Eu não posso fazer gol contra time da Terceira Divisão que vem um monte de babaca encher o saco."

Os 1282 gols totais de Pelé levam, mesmo, em consideração 13 gols marcados pela seleção das Forças Armadas no período em que serviu como soldado do Exército na equipe da 6ª Guarda Costeira, em 1959. Três destes gols num amistoso contra o próprio Santos. Também há gols contra combinados municipais e regionais e times pouco expressivos, mas os números não são tão relevantes quanto supôs Romário. O clichê dos "gols pelo Exército" é hoje um argumento comum contra os feitos de Pelé.

"Ficou essa polêmica do Romário. Até que em 2012 a revista argentina 'El Grafico' gostou da brincadeira e fez uma edição com recontagem de gols, elegendo nas palavras deles os 'goleadores de verdade' e excluindo 'jogos irrelevantes'. Depois disso, notamos que a nomenclatura 'gols e jogos oficiais' foi adotada internacionalmente, mesmo sem o mínimo posicionamento da Fifa. É uma bola de neve, uma brincadeira que se tornou verdade e algumas pessoas no Brasil, por complexo de inferioridade, decidiram obedecer", critica Marcelo Lucio Fernandes.

"Hoje em dia é muito fácil espalhar uma informação inconsistente. Messi não deixou de bater um recorde, o de gols em competições por um único clube. O que não se pode é destruir o mito baseado no 'eu acho'".

Reprodução/Instagram

Pelé paz e amor

Pelé não quer briga com os ídolos do futebol da atualidade. Pelo contrário.

Quando Messi igualou seu número de gols em competições por um único clube, o Rei o encheu de elogios: "(...) eu sei o que é amar usar a mesma camisa todos os dias" e "Histórias como a nossa, de amor ao mesmo clube por tanto tempo, infelizmente serão cada vez mais raras no futebol", escreveu nas redes sociais. Messi agradeceu em demonstração de uma relação de cordialidade, não de rivalidade.

Nos últimos dias, o trecho "maior artilheiro de todos os tempos" que consta em sua descrição de perfil no Instagram viralizou, como se ele tivesse editado em resposta aos feitos de Messi e à aproximação de CR7. Pelé foi ao Twitter desmentir a mudança. A frase está lá desde a criação da rede social. E o recorde, estabelecido.

Pelé quer proximidade com os craques atuais, tanto é que constantemente elogia Messi e Neymar, interage com Mbappé, já gravou vídeo com Vini Júnior e provavelmente também elogiará a conquista de Cristiano Ronaldo como maior artilheiro em competições. O Rei é parte de um projeto de comunicação que pretende direcionar sua imagem apenas para fatos positivos. Uma guerra nos bastidores por marcas e números não é o que se pretende.

A guerra fica para os fãs.

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