À frente de seu tempo

Rivais explicam o que tinha de diferente no São Paulo de Telê que conquistou a Libertadores há 30 anos

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Sérgio Amaral /ESTADÃO CONTEÚDO

A "Era Telê" ficou marcada no São Paulo como sinônimo de trabalho bem-feito e vitorioso. A primeira etapa de consolidação daquele grupo foi concluída há exatos 30 anos. O título da Libertadores de 1992 foi conquistado depois que Zetti defendeu o último pênalti cobrado por Gamboa, na decisão contra o Newell's Old Boys.

Para além da conquista da Libertadores, o elenco comandado por Telê Santana marcou época. Até hoje é comum ver treinadores e ex-jogadores citarem aquela equipe como exemplo de futebol bem jogado. Palavras assim já foram ditas recentemente por dois portugueses: Vítor Pereira, técnico do Corinthians, e Abel Ferreira, do Palmeiras.

Quem enfrentou aquela equipe na campanha vitoriosa também não tem dúvidas: era um time diferente dos demais. Dentre os 25 atletas inscritos na competição, 11 deles tiveram passagens pela seleção brasileira ao longo da carreira.

"Esse São Paulo de 1992 foi uma das melhores equipe que já enfrentei na minha carreira. Acho que todo mundo que você perguntar vai dizer a mesma coisa", diz Jorge Sere, goleiro do Nacional-URU nos duelos das oitavas de final.

Sérgio Amaral /ESTADÃO CONTEÚDO

Um time de Europa

Analisar o São Paulo de 1992 com os olhos de hoje faz com que o time seja considerado um "time de Europa". Afinal, quantos times atualmente no Brasil têm 11 jogadores que vestiram a camisa da seleção? Na campanha do tetra de 1994, Carlos Alberto Parreira contou com cinco atletas campeões naquele Tricolor: o goleiro Zetti, o zagueiro Ronaldão, o lateral Cafu, o meia Raí e o atacante Müller.

"Hoje seria impossível reunir esse tipo de jogadores. Todos estariam na Europa. O São Paulo conseguiu fazer isso e depois fez um tour pela Europa e meteu quatro gols no Real Madrid, quatro no Barcelona", exalta Álvaro Gutiérrez, ex-volante do Nacional (URU).

A excursão pela Espanha aconteceu no fim de agosto, dois meses depois da conquista da Libertadores. O São Paulo fez seis partidas e venceu quatro: 2 a 0 no Cádiz, 4 a 0 no Real Madrid, 2 a 1 no Espanyol e 4 a 1 no Barcelona, que seria o rival no Mundial de Clubes no fim daquele ano. A viagem ainda teve uma derrota por 2 a 0 para o Atlético de Madrid e um empate com o Peñarol por 2 a 2, com vitória são-paulina nos pênaltis.

Para além dos resultados, os rivais daquela época chamam atenção para o estilo de jogo são-paulino. Telê Santana priorizava o toque de bola. Diante do Nacional-URU, em Montevidéu, o gol da vitória veio após jogada construída pela esquerda, em que Elivélton recebeu belo toque de Palinha na entrada da área e tocou na saída de Jorge Sere.

O São Paulo tinha muita posse de bola, mas eles arriscavam no um contra um também. Essa era a diferença para os times europeus de hoje. Na Europa, apenas três ou quatro jogadores arriscam. A maioria pega na bola e toca para trás até encontrar espaço. Eu gostava mais do futebol do São Paulo do que o futebol de hoje.

Jorge Sere, goleiro do Nacional-URU

Reprodução

Como jogava aquele São Paulo?

Por Rodrigo Coutinho, colunista do UOL Esporte

O grande ponto de destaque da equipe montada por Telê Santana para 1992 era a mobilidade do quarteto ofensivo e a força dos apoios de Cafu pela direita. O capitão do pentacampeonato da seleção, em 2002, tinha ainda mais fôlego e velocidade dez anos antes, e era muito explorado pelo treinador, que inclusive montou uma estrutura voltada para isso.

Antes é importante voltar à primeira fase da competição e explicar a dinâmica do lateral do outro lado do campo. O camisa 6 daquela equipe nos primeiros jogos foi o experiente Nelsinho, que já havia sido campeão brasileiro pelo clube e disputou a Copa América de 1987 pelo Brasil, mas ele foi para o Corinthians e não jogou a fase mata-mata.

Nelsinho era ofensivo. Tinha ótimo passe e muita técnica. Para dar mais liberdade a Cafu, Telê fazia com que Nelsinho atacasse muitas vezes como um meio-campista, dando suporte aos volantes Pintado e Adilson na faixa central. Isso permitia que o camisa 2 se mandasse e fizesse as vezes de ponta-direita quando o Tricolor atacava.

Com a saída de Nelsinho, Telê colocou Iván Rocha no setor, resolvendo de vez a questão. Iván também jogava como zagueiro. Protegia muito mais do que Nelsinho, e aí Cafu ganhou ainda mais poder para se mandar ao ataque.

Outro ponto importante era o comportamento dos volantes. Pintado e Adilson tinham bom passe e não comprometiam com a bola no pé, mas a principal característica era a marcação. Um deles sempre estava pronto para fazer a cobertura no setor. Até mesmo o zagueiro Antônio Carlos, um dos melhores do time na campanha, se aventurava no ataque em virtude do equilíbrio oferecido por Iván Rocha, Adilson e Pintado.

SERGIO AMARAL/ESTADÃO CONTEÚDO

Raí: o grande craque do time

Por Rodrigo Coutinho, colunista do UOL Esporte

O espaço para Cafu avançar até a linha de fundo era liberado por flutuações de Raí para o meio. Ele não guardava posição. Recuava para buscar a bola e distribuir o jogo, encostava no lado esquerdo se a jogada estivesse lá. Vinha dar suporte a Cafu pela direita e ainda chegava na área para concluir com frequência. O grande craque do time!

Palhinha e Muller se mexiam demais por dentro. Não havia um centroavante fixo. Eram rápidos e extremamente inteligentes para ler espaços. Muller tinha mais capacidade de atacar as costas dos zagueiros. Palhinha descobria lacunas entre a defesa e o meio-campo, caía para a esquerda e para a direita. Finalizava muito bem e ainda compensava Raí diversas vezes na recomposição pelo lado direito.

O único homem de frente com posição mais fixa era Elivélton. Típico ponta, ele se mantinha aberto pela esquerda. Usava sua velocidade e habilidade para fazer jogadas de linha de fundo, e ajudava bastante ao recompor pelo setor. Rinaldo, que o substituiu em algumas partidas; Macedo, que sempre entrava no ataque; o lateral-esquerdo Ronaldo Lúis e volante Suélio eram outros nomes importantes do elenco.

Ao mesmo tempo que conseguia ter a dinâmica ofensiva citada acima, liberdade de movimentação e aproximação entre os jogadores mais talentosos, o São Paulo campeão da Libertadores se tratava de uma equipe altamente competitiva sem a bola. Levou só nove gols em 14 partidas, três deles atuando com o time misto, na estreia, diante do Criciúma. Um dos times memoráveis do futebol brasileiro.

Eles tinham os melhores jogadores e tinham um treinador que era um dos melhores do mundo nesse momento. Hoje, todo mundo fala do Guardiola, do Klopp, mas o Telê Santana foi um dos melhores treinadores da história."

Jorge Sere, goleiro do Nacional-URU

O Palhinha foi um dos que me surpreendeu muito naquele time. Ele era um jogador à frente de seu tempo. Ele não conduzia a bola, ele buscava, tocava e, na sequência, saía para o outro lado. Era muito difícil de marcá-lo."

Álvaro Gutiérrez, volante do Nacional-URU

Pisco Del Gaiso/Folhapress Cafu é marcado de perto, durante a partida entre São Paulo e Criciúma

Cafu é marcado de perto, durante a partida entre São Paulo e Criciúma

O fator Cafu

Entender o que aquele time tinha de diferente passa por compreender o que era feito. Nas mãos de Telê Santana, Cafu virou um jogador extremamente ofensivo. Na campanha de 1992, ele era escalado como lateral-direito, mas com total liberdade para atacar.

Não por acaso, Cafu atuou como ponta-direita no Mundial de Clubes daquele ano. Em 1993, ele virou meia-direita na campanha do bicampeonato da Libertadores, com Vítor assumindo a titularidade da lateral.

"O Cafu foi um dos precursores das subidas dos laterais. Todos começaram a procurar o que o Cafu já fazia. Com sua dinâmica, quando o São Paulo atacava, eles sempre tinham um atacante a mais e isso dificultava a defesa para marcar", explica Álvaro Gutiérrez.

As subidas de Cafu impactaram diretamente o atacante Jairo Lenzi. Um dos principais destaques do Criciúma, ele ficou responsável por tentar conter o lateral nas quatro vezes em que as equipes se enfrentaram naquela campanha.

"Eu abri mão muitas vezes de tentar um contra-ataque para marcar o cara. Marcar o Cafu para qualquer jogador não é fácil. O Cafu vinha com tudo, uma força sem tamanho, e eu tinha que marcar o cara", explica o ex-atacante.

Pisco Del gaiso/Folhapress

Criciúma quase surpreende o São Paulo

A dificuldade de parar Cafu marcou o confronto entre São Paulo e Criciúma pelas quartas de final da competição. Foi em um duelo com ele que o lateral Itá acabou expulso, deixando a equipe catarinense com um a menos durante quase todo o segundo tempo do primeiro jogo. Com a vantagem numérica, o Tricolor venceu por 1 a 0, com gol de Macedo.

"A gente sabia que se deixasse ele jogar, ele desequilibrava qualquer jogo", relembra Roberto Cavalo, ex-volante daquele Criciúma.

A equipe catarinense chegou como zebra àquela Libertadores, depois de ter conquistado a Copa do Brasil de 1991 sob o comando de Felipão. Já com Levir Culpi como treinador, o Criciúma terminou a primeira fase como líder do grupo que tinha os bolivianos Bolivar e San José e o próprio São Paulo.

Diante de um badalado Tricolor, o Criciúma teve inúmeras chances de sair com a classificação para a semifinal. No jogo de volta, Soares abriu o placar logo aos 10 minutos, depois de cruzamento de Jairo Lenzi.

Na segunda etapa, Roberto Cavalo acertou a trave de Zetti. Mesmo depois que Palhinha empatou o jogo aos 10 minutos da segunda etapa, o Criciúma seguiu em cima. No fim do jogo, o goleiro são-paulino soltou a bola num cruzamento rasteiro e, por muito pouco, Jairo Lenzi não completou para o gol.

O jogo em Criciúma foi um jogaço de bola. A gente fez tudo para conseguir aquela vitória e ela não veio. O São Paulo era muito forte, um timaço."

Roberto Cavalo, ex-volante do Criciúma

EDU GARCIA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Até Pintado virou inspiração

Pintado não era um volante de origem, mas se tornou nas mãos de Carlos Alberto Parreira na época do Bragantino. Quando voltou ao São Paulo para sua segunda passagem, em 1992, o ex-zagueiro assumiu a titularidade no time que seria bicampeão da Libertadores.

Do outro lado do campo, Álvaro Gutierrez se importava pouco se Pintado era ou não formado para ser o primeiro homem de meio-campo. Cria das categorias de base do Nacional-URU, ele atuava na mesma posição do brasileiro e se impressionou com o que viu durante os duelos das duas equipes nas oitavas de final da Libertadores de 1992.

"A inteligência que ele tinha para se posicionar quando um companheiro dele ia para o ataque. Gostava muito dessa leitura tática dele durante o jogo, dando a liberdade para os companheiros. Era como se ele falasse para os outros irem tranquilos que ele estaria cobrindo a posição", relembra.

Depois do Nacional-URU, Gutierrez foi para a Europa atuar por Valladolid, Rayo Vallecano e Sporting Gijón, todos da Espanha. Ele diz ter levado para lá o que aprendeu vendo Pintado jogar.

"O que ele fazia não era muito diferente, mas me surpreendeu. Porque vi quão bom poderia ser ter um jogador que desse mais liberdade aos outros, que deixassem eles soltos para jogar. Se saísse o lateral, o zagueiro abria e ele ia para a zaga. Em outras, ele que ia para a lateral. Quando atacavam ele ficava na última linha. Um jogador que sempre estava apoiando os companheiros no meio-campo", prossegue.

Depois de aposentado, Álvaro Gutierrez se tornou treinador. O último time que ele comandou foi o próprio Nacional-URU, em 2019. Por lá, o aprendizado com Pintado permaneceu. "Ele fazia o balanço defensivo para o time se mover taticamente durante o jogo. Isso eu tratei de fazer na Europa e hoje aplico nos meus times."

ORLANDO KISSNER/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

O elenco do São Paulo na Libertadores

1 - Zetti - goleiro - 12 jogos
2 - Cafu - lateral-direito - 14
3 - Antônio Carlos - zagueiro - 14
4 - Ronaldão - zagueiro - 13
5 - Sídnei - volante - 74 jogos - 3
6 - Nelsinho - lateral-esquerdo - 5
7 - Müller - atacante - 8

8 - Suélio - volante - 6
9 - Macedo - atacante - 10
10 - Raí - meia - 13
11 - Elivélton - atacante - 9

12 - Marcos - goleiro - 0
13 - Adílson - zagueiro - 12
14 - Pintado - volante - 14
15 - Ivan - lateral-esquerdo - 8
16 - Ronaldo Luíz - lateral-esquerdo - 3
17 - Catê - atacante - 2
18 - Palhinha - atacante - 14
19 - Gilmar - atacante - 1
20 - Alexandre - goleiro - 3
21 - Mona - volante - 1
22 - Menta - zagueiro - 0
23 - Rinaldo - atacante - 4
24 - Eraldo - meia - 1
25 - Cláudio Moura - atacante - 0

*Em negrito, os jogadores que jogaram pela seleção brasileira ao menos uma vez

A campanha do título

Fase de grupos

06/03/1992 - Criciúma 3 x 0 São Paulo
17/03/1992 - San José 0 x 3 São Paulo
20/03/1992 - Bolívar 1 x 1 São Paulo
01/04/1992 - São Paulo 4 x 0 Criciúma
07/04/1992 - São Paulo 1 x 1 San José
14/04/1992 - São Paulo 2 x 0 Bolívar

Oitavas de final

28/04/1992 - Nacional-URU 0 x 1 São Paulo
06/05/1992 - São Paulo 2 x 0 Nacional-URU

Quartas de final

13/05/1992 - São Paulo 1 x 0 Criciúma
20/05/1992 - Criciúma 1 x 1 São Paulo

Semifinal

27/05/1992 - São Paulo 3 x 0 Barcelona-EQU
03/06/1992 - Barcelona-EQU 2 x 0 São Paulo

Final

10/06/1992 - Newell's Old Boys-ARG 1 x 0 São Paulo
17/06/1992 - São Paulo 1 (3) x (2) 0 Newell's Old Boys-ARG

Em 1991, o Nacional foi eliminado para o Colo-Colo, que acabaria campeão. Deles, eu acho que a gente poderia ter ganhado. Mas eu acho que ninguém podia vencer o São Paulo de 1992

Jorge Sere, goleiro do Nacional-URU em 1992

ORLANDO KISSNER/ESTADÃO CONTEÚDO/AE ORLANDO KISSNER/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
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