Rosa-choque

Letícia Bufoni lutou para usar roupa de menina para andar de skate. Virou ídolo da nova geração por isso

Demétrio Vecchioli Colaboração para o UOL, em São Paulo Steven Lippman/Red Bulletin

Tantas vezes tratada como "musa do skate", Letícia Bufoni sempre quis ser modelo. Mas no mais genuíno sentido da palavra: alguém que servisse de inspiração. Se hoje o Brasil tem as três melhores skatistas do mundo na modalidade street, ela incluída, é porque a precursora foi muito bem sucedida.

Antes dela, tudo era mato no skate feminino brasileiro. E foi a paulistana que cultiva um inconfundível cabelo rosa e diversas tatuagens que chegou de roçadeira, derrubando tabus estéticos e sociais.

"Eu sempre pensei que se um dia uma menina quiser andar de skate e ser feminina, ela ia poder ter alguém para poder se espelhar. Ser feminina, ser uma menina bonita e andar bem de skate. Eu quero ser quem eu não tive".

Em 13 anos como skatista profissional, Letícia se tornou não só a mais bem sucedida mistura de esporte e lifestyle, com 2,6 milhões de seguidores no Instagram, da modalidade no país, como conseguiu atingir o objetivo de inspirar novas gerações.

Tanto que vai chegar à Olimpíada de Tóquio tendo como maiores concorrentes duas jovens brasileiras que se aproveitaram da trilha aberta por ela para crescerem e desafiarem a skatista dona de 11 medalhas de X-Games e quatro (um ouro e três pratas) em Campeonatos Mundiais.

Nessa entrevista ao UOL, Letícia fala da relação com amigos como Neymar e Gabriel Medina e com concorrentes como a pequena Rayssa Leal, sobre o início sozinha nos Estados Unidos e as adaptações para ser uma atleta olímpica.

Steven Lippman/Red Bulletin

Assista à entrevista de Letícia

Sozinha nos EUA aos 14 anos

A história de Letícia Bufoni e do skate feminino se entrelaçam desde 2007, quando a menina criada na Vila Matilde, zona leste de São Paulo, recebeu o convite para disputar o evento que então era a síntese da faceta competitiva do skate, os X-Games. Aos 14 anos, ouviu de um patrocinador que era muito nova para virar profissional, que aquele não era o momento.

Naquela época, os X-Games eram sempre em Los Angeles, então toda a cena do skate estava na Califórnia. Letícia também foi pra lá. "Meu pai foi comigo, me ajudou financeiramente, ficou duas semanas, mas depois voltou para o Brasil e eu fiquei por lá competindo por mais seis meses. Ele não tinha condição financeira boa, mas conseguiu bancar a passagem dele e os nossos gastos", lembra.

Acolhida pela fotógrafa Ana Paula Negrão, uma das primeiras brasileiras a desbravar a cena do skate nos Estados Unidos e que se tornou sua "guardiã" em Los Angeles, Letícia logo comprovou por que era tida como grande promessa do esporte no Brasil.

"Desde 2008 eu já estava com salário me bancando. Claro que era um salário super baixo, não se compara ao que os patrocinadores pagam hoje em dia, mas na época me ajudou muito a ficar nos EUA. E as premiações que eu ganhava me ajudavam a me bancar", conta a skatista, que depois teve Ana Paula como agente por vários anos.

O mais difícil, diz, foi ficar distante da família. "Eu tinha apenas 14 anos e não sabia nada. Estava começando a aprender as coisas. Ter que ficar sozinha num país em que você não conhece a língua, não conhece a cultura, que conhece só duas pessoas, foi bem difícil. Mas eu era tão vidrada em andar de skate que nada disso estava importando. O que estava importando era que eu tava andando de skate".

Eu cheguei a achar que eu ia ter que voltar para o Brasil, ia ter que estudar porque o skate não era tão fácil, mas eu era tão apaixonada por skate, queria tanto me tornar uma profissional e continuar andando de skate que isso superou qualquer dificuldade

Letícia Bufoni

Eu nunca imaginei que um dia ia ter patrocínios, viver de skate, morar fora. Diferente de hoje em dia, em que muita gente começa a andar de skate porque dá dinheiro, pode ajudar a ser famoso, antigamente não tinha nada disso. Fui pela pura paixão pelo esporte

Letícia Bufoni

Icon Sportswire/Icon Sportswire via Getty Images Icon Sportswire/Icon Sportswire via Getty Images

Roupa de menino x roupa de menina

Rayssa Leal, a nova sensação do skate brasileiro, surgiu para o esporte vestida de fadinha em vídeos no Youtube. Quando criança, Letícia Bufoni não tinha meninas em quem se inspirar. Skate só com os meninos da rua, comportando-se como eles. E se vestindo como eles.

"Quando eu comecei a andar de skate, eu me vestia que nem um menino porque não tinha referência nenhuma. Fui me adaptando sozinha, fui aprendendo. Até que chegou o momento, quando eu estava na adolescência, em que comecei a perceber que não precisava me vestir como os meninos para andar de skate. Eu poderia ser uma menina comum, uma menina feminina, e andar de skate também", recorda a paulistana.

O primeiro passo foi mudar o vestuário, passando a usar peças tidas como mais femininas. "Eu fui uma das primeiras meninas a usar calça legging no esporte, porque todo mundo usava jeans. Blusinha mais apertadinha, mais delicada, calça legging, nada fugindo também muito do padrão do skate, mas sempre escolhi roupa mais colada."

A busca por quebrar tabus e desafiar padrões incomodou muita gente. "No primeiro X-Games em que apareci de legging, me lembro até hoje, as meninas me criticavam. Diziam que estava marcando meu corpo, que não é adequado para o skate, que eu ia cair e ia rasgar, eu ia passar vergonha, tive muita crítica. Mas sempre ignorei as críticas, segui o que eu queria fazer, segui a minha cabeça. O mais importante é que eu estava confortável andando de skate daquele jeito, então só continuei."

Nessa de deixar as críticas entrarem por um ouvido e saírem por outro, Letícia nem ligou quando de fato a legging rasgou após um tombo em uma competição importante. "Normalmente, eu levo uma extra na mochila, mas dessa vez eu não tinha. Estava na final do X-Games na Austrália, coisa de 10 segundos antes da competição, minha calça rasgou. Tive que colocar fita adesiva preta, mas eu dei risada, achei engraçado, todo mundo dando risada. Não foi uma parada com que me importei. Todo mundo já rasgou a calça fazendo alguma coisa na vida", diz. Na foto acima, você consegue ver as fitas pretas.

Joe Gall/Red Bull Content Pool Joe Gall/Red Bull Content Pool

Musa?

Depois de criar polêmica por usar calça, a skatista criou polêmica por não usar nada. Em 2015, a brasileira posou para o tradicional ensaio da revista norte-americana da ESPN, o Body Issue. Deixou-se fotografar nua, como outros atletas de renome, como o tenista Stan Wawrinka.

No Brasil, foi o suficiente para ela ser declarada um símbolo sexual. "Quem falou isso são brasileiros que não conhecem o conceito da revista. Eu, mais do que ninguém, sabia o que estava fazendo. Eu que decidi tudo na minha carreira, nunca tive ninguém que decidiu as coisas por mim", afirma.

Letícia não liga de ter sido tantas vezes chamada de "musa" — "achava até um apelido bonitinho" —, mas faz questão se impor na pista. "Sempre tive amizade com homens, a maioria dos meus amigos são homens. Mas sempre tive muito respeito nas pistas de skate. Por mais que chegasse de calça apertada, maquiada, nunca, nunca tive desrespeito. Se você sabe se impor, sabe o respeito que você merece, não tem problema nenhum."

Ashley Barker/Red Bull Content Pool Ashley Barker/Red Bull Content Pool

Mais atleta que lifestyler

Com jeans, legging ou de biquini, roupa preferida de Letícia, o skate sempre foi um estilo de vida. Nos últimos três anos, a cena se transformou com a chegada de uma intrusa centenária e careta, a Olimpíada.

"Quando eu comecei, andar de skate era por brincadeira, diversão. Mas mudou muito desde aquela época, principalmente esses últimos três anos em que a gente vem competindo para entrar na Olimpíada. Quanto mais perto a gente chega das Olimpíadas, mais a gente se sente atleta, porque tem toda aquela preparação, tem (anti)doping. Hoje em dia, eu me considero muito mais uma atleta do que um lifestyler", revela.

A transformação do skate de estilo de vida em esporte passa também por novas rotinas. Uma delas é a competição. Depois de fazer carreira divulgando marcas em vídeos e fotos na imprensa e nas redes sociais, Letícia agora precisa estar constantemente competindo, com pressão por resultados.

"Teve um momento no ano passado em que eu estava super irritada com competição. Mas aí eu fiquei um tempo afastada, porque quebrei o pé, e me reconectei com minha família, comigo mesmo. Foi quando eu percebi que eu amo competir. Eu pensava depois das Olimpíadas competir menos, não parar, mas agora eu não vejo a hora de voltar a competir. Amo competir", afirma.

Outra das novidades trazidas pelo movimento olímpico foi o antidoping. Não exatamente pela enorme lista das substâncias proibidas, que incluem drogas sociais e até remédios para dor de cabeça, mas porque o controle exige uma rotina maçante de dizer onde vai e quando volta. Letícia já se acostumou com os fiscais batendo na porta da casa dela às 5h50, o que impede espadas noturnas, mas penou com as burocracias.

"A penúltima vez eu estava na China, competindo, mas teve algum erro da nossa parte que eles colocaram a data errada que eu estaria na China. Foram na minha casa e eu estava na China, competindo. É algo que você tem que estar super atento o tempo todo. Não posso simplesmente esquecer e dormir na casa de um amigo ou uma amiga. Mas tem que fazer, não tem jeito."

Getty Images/iStockphoto

Liberação da maconha?

"Sou suspeita de falar porque eu nunca usei, nunca experimentei, não sei a diferença que faz. Conheço muita gente que tem a necessidade de ter a maconha. É algo que é difícil para mim falar, porque não sei se as pessoas realmente precisam, se é só um vício. Tem muita gente que faz o uso da maconha, não sei qual a necessidade deles."

Alessandro Di Ciommo/NurPhoto via Getty Images

Skate olímpico é mais difícil?

"De repente anunciaram as Olimpíadas e vieram atletas que a gente nunca tinha visto e andando super bem. Isso é a evolução do esporte. O skate é um esporte que evolui muito, coisa de alguns meses ele já evolui. Isso é bom para todo mundo, para mim, para todo mundo, porque faz o esporte crescer e faz a gente se puxar mais."

Vai chegar o momento em que eu vou ter que parar, mas acho que ainda tenho bastante tempo. Acho que uns 35 anos eu penso em parar de competir. Aí posso ser mãe, ter filhos, mas até uns 35 anos eu quero competir.

Letícia Bufoni

Julio Detefon/Divulgação

As mini-Letícias

"Dentro da pista a gente trata todo mundo igual, todo mundo é igual", diz Letícia. Mas, fora das pistas, não há muita diferença entre ela e Rayssa Leal (na foto acima), por exemplo. Letícia é uma mulher, Fadinha é uma criança. Sky Brown, britânica anglo-japonesa de 11 anos, revelação do skate park, também.

"Fico zoando que a Sky é minha cria. Ela tenta ser igual. Ela não tem vergonha de falar, chega em mim e fala: 'Eu amo tudo que você faz, quero ser igual a você'. É muito gratificante poder estar perto de meninas que tão chegando agora e tão chegando com tudo e que amanhã ou depois vão estar como eu ou até melhor. Muito legal poder estar convivendo com elas. Eu não tive isso quando estava começando a andar de skate, então eu tento dar o máximo de atenção possível e me imaginar quando eu era pequenininha, tinha 10, 11 anos, e só tinha os meninos da rua pra andar de skate, não tinha uma pessoa em que eu pudesse me inspirar."

Sky (na foto abaixo) compete em modalidade diferente e, por isso, não é rival direta de Letícia por uma medalha olímpica, como são Rayssa e de Pâmela Rosa. A "veterana" de 27 anos comemora ter tais ameaças que, ao mesmo tempo, lhe servem de suporte.

"Antes, eu carregava muito sozinha. Então, ter as meninas comigo ajuda muito, é uma força que uma dá para outra. É claro que quando a gente não ganha, fica chateado, mas faz parte do skate. A gente nunca vai só ganhar. Estou acostumada a perder, comecei perdendo, então perder para mim não é nenhuma novidade. A gente aprende com nossos erros e isso é bom porque vai puxando o nível do skate".

Emma McIntyre/Getty Images for MAKERS Emma McIntyre/Getty Images for MAKERS

BBB ? Big Brother Bufoni

Há 13 anos morando na Califórnia, Letícia voltou ao Brasil durante a quarentena para ficar mais perto da família e de amigos. E bota perto nisso. Estão confinados com ela a mãe, as irmãs, os sobrinhos e alguns amigos, como o surfista Pedro Scooby e a namorada dele, Cintia Dicker.

A casa fica no Guarujá, onde Letícia é vizinha de Neymar, que já prometeu ligar quando estiver na cidade. A ideia era usar o imóvel, comprado no ano passado, como casa de veraneio, mas a crise do coronavírus alterou os planos momentaneamente.

Segundo ela, dividir uma casa com o amigo Scooby não é novidade. "Quando ele vai para a Califórnia, fica na minha casa. Resolvi chamar meus amigos para não ficar em casa sem ter o que fazer, não ficar cansada de ficar em casa. Com todo mundo aqui, a gente tá fazendo várias atividades e não para o dia inteiro. Eu tenho um parceiro para treinar, o Scooby anda de skate comigo, a gente está sempre fazendo atividade, não para nenhum minuto".

Entre muitas diversões, a preferida é o futmesa, em que o grupo joga por até quatro horas seguidas. Depois de muito sofrer com bolhas no pé, Letícia é a única que joga de tênis. Você pode acompanhar o que acontece por lá no Instagram da skatista.

Sean M. Haffey/Getty Images

Cabelo rosa, marca registrada

Eu sempre pintava só as pontas para competir. Um dia, quis dar uma mudada. Três ou quatro meninas tinham cabelo parecido com o meu, castanho claro, às vezes de costas todo mundo parece a mesma pessoa. Era pra ficar uma ou duas semanas, mas daqui a pouco vai bater dois anos de cabelo rosa. Gostei, acabou ficando minha marca registrada. Vai ficar até enjoar.

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