O bonde de 200 contos

Leônidas da Silva desembarcava há 80 anos na estação do Brás para mudar a história do São Paulo

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Acervo histórico do São Paulo/Arte UOL

Os ponteiros da antiga Estação do Norte, atual Estação do Brás, na zona central de São Paulo teimavam em não sair do lugar naquele 10 de abril de 1942. Uma multidão de 10 mil pessoas disputava qualquer centímetro livre na plataforma enquanto aguardava ansiosa pelas 20h. Era o horário marcado para a chegada do trem vindo do Rio de Janeiro que traria Leônidas da Silva.

O Diamante Negro desembarcaria em terras paulistanas para assinar contrato de dois anos com o São Paulo. O clube ainda dava seus primeiros passos e sonhava com um espaço na disputa entre os quase sempre campeões Corinthians e Palmeiras. Leônidas tinha a missão de encerrar um jejum de 11 anos desde a última conquista tricolor do Paulistão.

"É quase impossível descrever o que foi o desembarque do 'Diamante Negro' e, sem incorrermos em exageros, podemos afirmar que pela primeira vez na história do esporte nacional um elemento mereceu uma recepção tão festiva, tão empolgante e tão arrebatadora", publicou o jornal Folha da Manhã, no dia seguinte.

O abraço do torcedor contrastava com a desconfiança de parte da imprensa. Os 200 contos de réis pagos pelo São Paulo eram uma fortuna para a época. Leônidas estreou semanas depois e ganhou o apelido de "o bonde de 200 conto", uma expressão usada para dizer que o time tricolor havia se metido em uma furada.

A desconfiança tinha sua raiz em um passado recente. Leônidas teve fortes atritos com o Flamengo antes de ser vendido ao São Paulo. A forma física também não era das melhores. Já fazia quase um ano que ele não entrava em campo, desde que passou oito meses preso por falsificação do atestado de reservista. Seus 28 anos o faziam ser visto como velho para o futebol da época, e levantavam dúvidas.

O "bonde", entretanto, se mostrou um trem bala. Leônidas chegou para engrandecer o jovem São Paulo. Quando se aposentou, oito anos depois, o gigante tricolor estava consolidado.

Acervo histórico do São Paulo/Arte UOL

"Nunca poderia imaginar que uma multidão viria receber-me. Estou entusiasmado deveras e não posso esconder que sinto algo que nunca senti em qualquer desembarque. Essa manifestação dos esportistas bandeirantes, posso afirmar, jamais será por mim esquecida

Leônidas da Silva, em entrevista à "Folha da Manhã" em sua chegada a São Paulo

Arquivo histórico São Paulo FC

A Leônidas mania

Para entender a multidão ansiosa no Brás, primeiro é preciso explicar o que era Leônidas da Silva na época. Se não pode mais ser creditado como o criador, ele virou o sinônimo do gol de bicicleta. O lance rolou na ótima participação na Copa do Mundo de 1938, quando deixou o torneio como artilheiro e melhor jogador.

Foi na competição realizada na França que os apelidos que o acompanharam a vida toda se popularizaram. O sem-pulo - e sem chuteira - marcado contra a Polônia o fez "Homem Borracha". Ao longo da competição, ele ainda viraria o "Diamante Negro". O apelido já tinha sido usado algumas vezes no Brasil, mas pegou para valer depois da Copa.

Leônidas não era um desconhecido quando viajou para o Mundial. Suas atuações por Bonsucesso, Botafogo e Vasco, além da própria seleção brasileira, já faziam barulho por aqui. Ainda assim, foi depois da exibição em território francês que a "Leônidas mania" começou.

Ele participou de campanhas publicitárias, venceu concurso de jornal feito para eleger o jogador mais querido do país, estampou seu nome em marca de cigarro e negociou seu apelido com a Lacta para a produção de um chocolate popular até hoje: o Diamante Negro. Já aposentado, interpretou a si próprio no filme "Suzana e o Presidente", de 1951.

Leônidas era um elemento da cultura brasileira. Grandes nomes da música fizeram ao menos três homenagens para ele, todas enquanto ainda jogava: "Deixa Falar", de Carmen Miranda; "Você já foi a São Paulo?", de Wilson Batista e Jorge de Castro; "Diamante Negro", de David Nasser e Marino Pinto.

A última trazia um sentimento coletivo: "Eu só queria fazer com a cabeça o que o Diamante Negro faz com os pés".

Os 200 contos de réis

Um jogador dessa estirpe e de tamanha popularidade, por mais que não entrasse em campo há tanto tempo e estivesse velho para o futebol da época, parecia algo impossível para o São Paulo. O clube tinha apenas 12 anos de existência e apenas um título de Campeonato Paulista.

A negociação com o Flamengo aconteceu no sigilo e teve grande participação de Paulo Machado de Carvalho, dirigente histórico do São Paulo e dono da Rádio Record. O papo da época diz que ele foi avisado por Manezinho Araujo, o "Rei da Embolada" da emissora e amigo de Leônidas, que o Diamante Negro procurava outro clube depois de uma guerra nos bastidores. Ele acionou o Rubro-Negro na Justiça para ser dono do próprio passe.

A informação chegou ao presidente são-paulino Décio Pacheco Pedroso, que enviou Roberto Gomes Pedrosa, diretor esportivo, para uma reunião com o Flamengo. Na bagagem, uma carta de apresentação e uma maleta cheia de dinheiro para apresentar ao jogador.

O acordo foi fechado no dia 31 de março, mas divulgado apenas no dia seguinte. Os dois clubes participaram de um jogo de cena para evitar uma revolta da torcida flamenguista. Dois dias depois de Leônidas já ter assinado contrato com o São Paulo, o Palestra Itália, atual Palmeiras, tentou atravessar a negociação. Não dava mais tempo.

O Flamengo ficou com 80 contos de réis e os outros 120 foram para Leônidas, que fechou um contrato de dois anos.

Reprodução

Quanto valia um conto de réis

A expressão "contos de réis" surgiu como indicação para um milhão de réis. Por causa das constantes trocas de moedas no Brasil, não é possível fazer uma conversão exata de quanto 200 contos valeriam hoje em dia.

Mas anúncios da época estampados no jornal "Folha da Noite" do dia 4 de abril de 1942 ajudam a dar um pouco da noção da quantia:

  • Prêmio máximo da loteria federal - 300 contos de réis
  • Casa com quatro dormitórios na Alameda Lorena, próxima à avenida Paulista - 70 contos de réis
  • Carro Ford "de luxo", ano 42, quatro portas e dois pneus novos - 3 contos de réis
  • Jogos de fina louça com 62 peças para jantar - 650 mil réis
  • Aulas de inglês - 80 mil réis
  • Peça de teatro estrelada por Eva Todor - 6 mil réis
  • Refeição comercial no Restaurante Campestre - 4 mil réis
  • Ingresso para filme "Florisbela domestica o Baby" - 2,3 mil réis
Arquivo histórico do São Paulo FC Arquivo histórico do São Paulo FC

Os portões do Pacaembu abriram às 10h daquele 24 de maio de 1942. O estádio foi rapidamente se enchendo e ficou abarrotado três horas mais tarde. Era um Corinthians x São Paulo, estreia de Leônidas da Silva. Ninguém se importava que o jogo só começaria às 15h50.

O jornal "A Gazeta Esportiva" do dia seguinte destacava que muita gente fez piquenique nas arquibancadas do Pacaembu enquanto acompanhava as duas partidas preliminares. A revista "Esporte Ilustrado" chamou de "formigueiro humano" o que viu no estádio. As pessoas se penduraram até na base da estátua de David, de Michelangelo, símbolo presente no estádio até a década de 1960.

Dentro de campo, Leônidas chegava com desconfiança de parte da imprensa. Dias antes, o jornal "A Hora" manchetou: "São Paulo compra bonde de 200 conto". Depois da partida, não diminuiu o tom. O periódico destacou a atuação do zagueiro Brandão, responsável por marcar a grande estrela do dia, e brincava que o beque havia sido preso com um diamante no bolso.

Leônidas deixou o empate por 3 a 3 com o Corinthians com duas assistências para a conta, apesar de evidentemente estar fora de forma. A atuação que incomodava o "A Hora", animava "A Gazeta Esportiva". O jornal cravou que o atacante seria o mesmo "ás" que foi no Rio de Janeiro.

O jogo foi marcante de várias maneiras. Os 71.281 pagantes representaram o maior público da história do Pacaembu em jogos de futebol até então. Essa também foi a primeira vez que um Corinthians x São Paulo foi chamado de "Majestoso".

O bonde de 200 contos faz de bicicleta; ouça

Leônidas estreou com o Campeonato Paulista de 1942 já em andamento. Por mais que sua primeira impressão não tenha sido espetacular, as atuações seguintes não deixaram dúvida ao público paulista de quem era o Diamante Negro.

Em 14 de junho de 1942, o São Paulo perdeu para o Palmeiras por 2 a 1, mas Leônidas fez o que de melhor sabia: gol de bicicleta. Foi a primeira vez que ele balançava as redes daquele jeito em terras paulistas. A narração de Geraldo José de Almeida, da rádio "Record", imortalizou o momento.

"De bicicleta! De bicicleta, meus amigos! Taí o bonde. O bonde de 200 contos marcou um gol de bicicleta", disse o locutor, em uma fala atualmente eternizada em uma das paredes do Morumbi.

O gol serviu para mostrar que Leônidas ainda era Leônidas. O título paulista de 1942 não veio, mas os anos seguintes marcariam a história do São Paulo.

Arquivo histórico do São Paulo FC O time campeão de 1949: Ruy, Savério, Mauro, Mário, Bauer e Noronha; Friaça, Ponce de León, Leônidas, Remo e Teixeirinha

O time campeão de 1949: Ruy, Savério, Mauro, Mário, Bauer e Noronha; Friaça, Ponce de León, Leônidas, Remo e Teixeirinha

A moeda cai em pé

Uma lenda da época afirmava que certa vez, em uma reunião entre dirigentes, alguém disse que se jogasse uma moeda e desse cara, o Palmeiras seria campeão paulista; se caísse coroa, seria o Corinthians. Para o São Paulo ficar com o título, só se a moeda caísse em pé.

Ela caiu em 1943. Além de Leônidas da Silva, o São Paulo montou uma equipe com Zezé Procópio, Noronha, Ruy, Zarzur e Sastre. Um esquadrão que garantiu 15 vitórias ao time tricolor em 20 rodadas e o título, após um empate sem gols contra o Palmeiras, por apenas um ponto a mais que o Corinthians.

O título de 1943 deu início a um período conhecido como "Rolo Compressor", que transformou o São Paulo em um time de destaque nacional. O Tricolor conquistou o Paulistão cinco vezes em sete anos (1943, 1945, 1946, 1948 e 1949). Em 1946, foi campeão sem perder nenhum jogo, o que lhe rendeu a "Taça dos Invictos", prêmio anual dado na época pelo jornal "A Gazeta Esportiva" ao time que mais tempo ficasse sem perder.

O ano mais impressionante, porém, foi o de 1945. O São Paulo foi campeão paulista com 70 gols marcados em 20 partidas, 16 deles marcados por Leônidas. Não importava quem estivesse pela frente, o "Rolo Compressor" goleava. A exceção foi o Corinthians, responsável pela única derrota da equipe na competição.

Em 1949, o São Paulo voltaria a marcar 70 gols, mas dessa vez em 22 jogos. Foi o último título conquistado por Leônidas da Silva. Mesmo com 36 anos e convivendo com graves problemas no joelho, ele participou de todas as partidas e terminou o campeonato com 13 gols, atrás apenas de Friaça na artilharia do clube.

Leônidas no São Paulo

Jogos: 212 (137V, 36E, 38D)

Gols: 144 (8º maior artilheiro do clube)

Principais títulos: 5 Paulistas e 3 Rio-São Paulo

Arquivo histórico do São Paulo FC

Um craque exigente, agressivo e solitário

Leônidas era um gênio dentro de campo, mas uma pessoa difícil de lidar fora dele. Na biografia "Diamante Negro" (Cia. dos Livros, 1999), o autor André Ribeiro conta que o perfil do atacante afastava seus colegas.

O Diamante Negro é descrito como um jogador exigente e, por vezes, agressivo com os próprios companheiros dentro de campo. "A vontade de vencer era maior que tudo", diz Ribeiro na obra.

"Aos poucos, os amigos foram parando até mesmo de conversar com ele. Durante as viagens de trem ou ônibus que o São Paulo fazia pelo interior do Estado, o banco ao lado de Leônidas ficava sempre vazio. Nas refeições, não era diferente, quem entrasse no refeitório do clube logo percebia algo estranho. Como e por que um jogador como ele estaria comendo sozinho?".

Os problemas fora de campo não subiam ao gramado. Noronha, companheiro de Leônidas no "Rolo Compressor", disse em entrevista ao livro que "dentro de campo, não existiu ninguém igual a Leônidas". Era a explicação sobre como um time desunido dava tão certo.

Depois que se aposentou, Leônidas teve uma breve passagem como treinador do São Paulo. Durou menos de um ano. O ex-jogador tentava impor seu estilo e chegou a afastar antigos companheiros de equipe. Os resultados em campo foram desastrosos e o Diamante Negro abandonou a profissão.

Era um atacante admirável. Coloco-o acima de Pelé. Só que Pelé aprendeu a ser bem educado e Leônidas tinha um lado moleque muito acentuado

Flávio Costa, técnico e desafeto de Leônidas no Flamengo e na seleção brasileira

Naquele jogo [Corinthians x São Paulo] eu fiz dois gols, mas ele era tão bom, tão bom, que ele fez três

Luizinho, o "Pequeno Polegar", ídolo do Corinthians

Leônidas não foi melhor que Pelé. Pior ele não foi

Luiz Mendes, o "comentarista da palavra fácil"

Reprodução/Marcelo Tieppo Joseval Peixoto e Leônidas da Silva em transmissão da Pan

Joseval Peixoto e Leônidas da Silva em transmissão da Pan

Eterno tricolor

Leônidas permaneceu próximo ao futebol mesmo quando a carreira de treinador não deu certo. Ele foi um dos primeiros ex-jogadores a trabalhar como comentarista no rádio. Cobriu Copas do Mundo e venceu por sete vezes o extinto troféu Roquette Pinto, entregue aos melhores profissionais do rádio e da televisão brasileira.

O estilo se manteve o mesmo dos tempos de jogador. Leônidas adorava uma polêmica. Na Copa de 1958, reclamou que o jovem Pelé era reserva de Dida. Depois, criticou a atuação do futuro rei do futebol contra a Hungria, o que gerou a ira de Nelson Rodrigues em uma de suas colunas.

"Só mesmo Leônidas é quem podia achar que foi pouco esse gol tão sofrido, tão chorado por milhões de patrícios. (...) Vamos deixar que Leônidas chame Pelé de perna-de-pau", escreveu, na coluna replicada na biografia do Diamante Negro.

A aposentaria do microfone foi forçada. Em 1976, Leônidas sofrida cada vez mais com os lapsos de memória causados pelo Mal de Alzheimer. A doença o acompanhou por décadas, até fazer com que se esquecesse de quem foi e das alegrias que deu aos brasileiros.

Pouco antes de ser internado em uma clínica de repouso em 1993, Leônidas morou alguns anos no bairro do Paraíso, na zona central de São Paulo. Quem o viu em suas tradicionais caminhadas pela rua Tutóia diz que o amor pelo tricolor paulista se mantinha.

Leônidas da Silva morreu em 24 de janeiro de 2004, aos 90 anos. Ele foi enterrado junto com uma bandeira do São Paulo, clube que ajudou a ser gigante.

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