Legado de Löw

Técnico mentor dos 7 a 1 deixa seleção alemã após 15 anos criticado por falta de ambição depois de 2014

Fátima Lacerda Colaboração para o UOL, em Berlim Alexander Hassenstein - FIFA/FIFA via Getty Images

Os quase 200 jogos de Joachim Löw no comando da Alemanha (198, para ser exato) deixaram no ar uma sensação de ciclo infinito. Do começo ao fim neste período de 15 anos, entre 2006 e 2021, a seleção alemã se manteve na elite do futebol mundial. No entanto, o técnico enfim se despede do cargo deixando os torcedores bastante frustrados pelo que aconteceu após o tetra no Brasil em 2014.

Löw não fez proveito de um sábio ditado popular das terras alemãs: "Besser ein Ende mit Schrecken als ein Schrecken ohne Ende" ("Melhor um fim cheio de perrrengues do que perrengues sem fim", em tradução livre).

O jornalista Peter Ahrens, que colabora com o portal Spiegel Online e que há anos acompanha de perto a trajetória de Löw, foi certeiro em seu comentário quando pautou o legado do ex-técnico: "Amado, ele nunca foi. O sucesso lhe dava razão, até que ele foi abandonado pelo seu instinto."

Esse instinto deu certo por algum tempo, mas pecou no fim pela ausência de uma tática coerente, de um trato solícito e comunicativo com a imprensa e, acima de tudo, pela falta da necessidade de contato direto com os fãs. Apesar das conquistas, Löw diz adeus gerando alívio para os apoiadores da seleção.

Muito além do histórico 7 a 1 sobre o Brasil em Belo Horizonte, Löw conduziu mais de uma geração brilhante e entra para a história como uma exceção em um universo em que raramente técnicos permanecem tanto tempo no cargo. Recordista de jogos com a Alemanha (com 124 vitórias, 40 empates e 34 derrotas), o treinador sai de cena oferecendo aos tetracampeões mundiais uma oportunidade de reinvenção.

Alexander Hassenstein - FIFA/FIFA via Getty Images

A Alemanha com Löw

  • Euro 2008

    Derrota para a Espanha na final

    Imagem: Lars Baron/Getty Images
  • Copa de 2010

    Terceiro lugar (derrota para Espanha na semifinal)

    Imagem: Bernd Weissbrod/Getty Images
  • Euro 2012

    Derrota para a Itália na semifinal

    Imagem: Christopher Lee/Getty Images
  • Copa de 2014

    Campeã, eliminando o anfitrião Brasil na semifinal (7 a 1)

    Imagem: Alexander Hassenstein/FIFA via Getty Images
  • Euro 2016

    Derrota para França na semifinal

    Imagem: Alexander Hassenstein/Getty Images
  • Copa das Confederações 2017

    Campeã, batendo o Chile na final

    Imagem: Chris Brunskill Ltd/Getty Images
  • Copa de 2018

    Eliminada na 1ª fase (derrotas para México e Coreia do Sul)

    Imagem: Getty Images
  • Euro 2020-21

    Eliminada pela Inglaterra nas oitavas de final (2 a 0)

    Imagem: Ali Balikci/Getty Images
Marc Atkins/Getty Images

Epílogo em Wembley

Que ironia! O triste fim daquele que iniciou trajetória de treinador logo depois da Copa de 2006 e foi vencedor do Mundial no Brasil se deu no templo maior do futebol inglês. Löw se despediu na última semana com a eliminação nas oitavas da Euro diante de um rival tantas vezes antes batido.

Sua seleção jogou sem garra, sem criatividade, sem ter sucesso nas finalizações e, merecidamente, saiu derrotada por uma equipe faminta há 55 anos para, finalmente dar um fim no ditado que, durante décadas, foi verdade absoluta muito além das fronteiras inglesas.

"Futebol é um jogo simples: 22 homens correm atrás da bola durante 90 minutos e, no final, ganham sempre os alemães." O autor dessa frase é ninguém menos do que o ex-jogador inglês e hoje comentarista Gary Lineker, que depois da vitória de 2 a 0, "levou para o túmulo" seu notório comentário e, com ele, a verdade absoluta de um passado recente.

Getty Images

Derrota por 6 a 0: começo do fim

Os torcedores brasileiros sentiram no coração o humor ácido da divindade futebolística, exatamente quando Löw alcançava o topo da sua carreira, na final contra a Argentina, minutos depois de ter sussurrado no ouvido de Mario Götze: "Mostra pro mundo que você é melhor do que Messi". Isso, em pleno Maracanã.

Mas a Era Löw termina marcada por derrotas que serão eternas pedras no sapato dos alemães, assim como aquele fatídico jogo no Mineirão foi para o Brasil.

Os exemplos das derrotas são poucos quando se fala de números, porém muito sintomáticos para o diagnóstico: o resultado em março passado contra a Macedônia do Norte, em jogo pelas eliminatórias para a Copa de 2022, com revés de 2 a 1, entra nesse portfólio de fracassos.

No entanto, o resultado que com certeza será mancha eterna no currículo de Löw é a derrota de 6 a 0 para a Espanha em 2020 -- e isso, num torneio dispensável como a Uefa Nations League.

A derrota naquela noite em Sevilla foi o que fez o caldo entornar, foi lapidar para este ciclo. Era o início do fim, o último barbante de paciência da imprensa esportiva arrebentou. A paciência dos torcedores já estava no negativo. Dali se somaram intrigas e vazamentos de áudios de reuniões que eram para ser secretas da Federação Alemã (DFB, na sigla).

O ano virou, mas Löw se via cada vez mais solitário: sem o respaldo dos torcedores e sem o apoio de dirigentes. Foi pressionado a readmitir alguns veteranos de volta à seleção, mas o projeto já não andava bem.

Joern Pollex/Getty Images

Elber: "excelente trabalho"

Apesar da conquista de 2014, os defeitos da gestão de Löw se fizeram visíveis nos números, mas eles não são os únicos indicativos.

Notório também devido ao 'Meleca-Gate' com direito à degustação ao vivo e em cores, do qual imagens rodaram o mundo e viralizaram na web, Löw fecha o balanço de 15 anos ocupando um simplório terceiro lugar na prestigiosa lista de técnicos da Nationalef com melhor aproveitamento. Até mesmo Berti Vogts, treinador entre 1990 e 1998 e odiado pela torcida, ocupa o segundo lugar na estatística.

Giovane Elber, lenda do Bayern e há anos atuante como embaixador da marca do clube pelo mundo, além de fã declarado da seleção alemã, conversou com o UOL sobre o legado de Joachim Löw.

Como você vê o legado do Joachim Löw depois de 15 anos de gestão comparando com as tuas expectativas iniciais?

"Quando ele assumiu a seleção, ele não havia treinado um time com visibilidade internacional. Claro que ficou aquele ponto de interrogação: ele será um bom treinador? Como não havia ganho um título internacional, nem uma Champions, ficou aquela desconfiança, mas como ele pegou o time do Klinsmann em 2006, da geração na qual apareceu Lahm, Podolski, Schweinsteiger, Löw pegou esse time já pronto pra 2010 e fez um grande trabalho com a equipe jovem. Com a base bem montada, eles chegaram no Brasil, voando, pronto para conquistar o título. Löw fez excelente trabalho. Ficar frente à seleção alemã durante 15 anos, o cara tem que ser um bom treinador."

Visão da imprensa alemã: "brilhante" e "cansado"

Sebastian Stier é berlinense do leste, ex-jogador de futebol. Foi estudar em Valência só para ver com a maior frequência os jogos do Barcelona. É expert em futebol sul-americano e um dos mais requisitados jornalistas esportivos da Alemanha. Em papo exclusivo com o UOL, no dia seguinte da derrota para a Inglaterra em Wembley -- garantindo que perder para a Inglaterra é o mesmo sentimento de quanto perdemos para a Argentina --, compartilhou sua visão sobre o legado de Löw.

Quais foram as suas expectativas quando Löw tomou posse como treinador?

"Na época o futebol alemão se encontrava numa mudança de paradigma, o clima era de muito positivismo, mas fiquei triste por Klinsmann ter saído do cargo depois de somente dois anos (em 2006). Com ele, tínhamos a esperança de nos livrarmos do 'futebol-manco'. Na nossa história, o treinador da seleção é um cargo de muita honra. Quando Löw entrou, confiamos que seria a continuidade do trabalho de Klinsmann, mas que o Löw ficaria no cargo por 15 anos e quebraria vários recordes, incluindo a conquista do Mundial em 2014, não se esperava."

Ele saiu no momento certo ou tarde demais?

"Apesar de ser um grande admirador do seu legado (...) quando a gente olha, não 'só' para a Eurocopa, mas também para os últimos anos, sim, ele deveria ter renunciado depois da Copa de 2018. Foram três anos perdidos. Até a Copa do Mundo no Brasil ele foi brilhante, mas depois se negou a confessar que estava cansado. Via-se, claramente, que outras equipes tinham muito mais ambições. Não foi a despedida do torneio que esperávamos. A decepção depois da derrota (para Inglaterra) é muito profunda."

Fabrizio Bensch/Getty Images Fabrizio Bensch/Getty Images

Declínio após paraíso do Brasil

Atento às possibilidades de marketing, o ex-jogador Oliver Bierhoff, o CEO da seleção alemã, se deixou inspirar pelo no tuíte lançado em uma conta falsa atribuída a Steven Gerrard, ex-jogador do Liverpool:

"Brasil tem Neymar, Argentina tem Messi, Portugal tem Ronaldo e a Alemanha tem uma Mannschaft" (uma equipe).

A maestria filosófica-futebolístista é de autoria do internauta Seumas Beathan, que depois da tragédia do 7 x 1 publicou o tuíte. Para a Federação Alemã isso foi só um detalhe sem importância de atentar para os direitos autorais. Surgia a ideia da marca "Die Mannschaft", com autonomia para alinhavar objetivos e parcerias midiáticas.

O resultado dessa ousada empreitada começou a ficar mais visível durante a Euro 2016. O valor das camisas da seleção se tornou exorbitante, até os ingressos para assistir aos treinos ficaram salgadíssimos -- isso quando Oliver Bierhoff não autorizava práticas abertas ao público.

Dois anos depois, veio a frustração na Copa da Rússia. Quando os resultados positivos começaram a minguar, com a eliminação ainda na fase de grupos em jogo contra a Coreia do Sul. Depois da eliminação, Löw sumiu durante seis semanas e voltou com palavras frias. Dali em diante, os compromissos da equipe nacional na TV aberta passaram a dar menos audiência do que as novelas alemãs.

Frank Augstein/Getty Images

Teimosias estratégicas

Além de estar raramente presente nos estádios como olheiro para assistir aos jogos da Bundesliga para a Euro, Löw atingiu o ápice da teimosia, no entendimento da maioria da torcida: um dos melhores meio-campistas da Europa foi "transferido" para lateral ou ala pela direita. Além de visivelmente desconfortável com a posição, Joshua Kimmich ficou longe do nível de performance de quando joga em sua rotineira posição ao lado de Leon Goretzka, colega de seleção e do Bayern.

Em coletiva de imprensa durante a Euro, em estilo "sincerão", Kimmich declarou que na lateral não ficava "muito envolvido no jogo". Era mais uma evidência pública de que o canal de comunicação entre técnico e jogadores não estava funcionando.

Outro plano tático não pensado até o final foi trazer o veterano Mats Hummels de volta à defesa, porém sem mudar o esquema tático para minimizar o déficit de velocidade que o campeão de 2014 hoje apresenta.

Mesmo chegando cheio com moral depois de ter vencido a Liga dos Campeões com o Chelsea, Antonio Rüdiger pareceu ser um jogador aquém do que a seleção necessitava. O técnico decidiu abdicar da experiência e rapidez de um Jérôme Boateng, que no Bayern formou por bom tempo com Hummels a "parede". Löw descartou a receita de sucesso dos anos anteriores e não agradou.

A Alemanha sofreu pelo menos um gol nos quatro jogos que fez na Eurocopa, o que exibe as mazelas de uma defesa outrora exaltada e que foi um pilar do sucesso em campos brasileiros há sete anos.

UEFA/UEFA via Getty Images

Adeus em poucas palavras

Até mesmo em sua última entrevista como treinador Löw se manteve fiel ao seu discurso monossilábico e vazio: "Foram semanas intensas. Eu tinha absoluta confiança nessa equipe. Sinto muito pela decepção que causamos aos nossos torcedores. É minha responsabilidade, sem rodeio algum", concluiu.

O analista esportivo Marcel Reif, do portal Bild, não economizou em severa crítica: "Ele queria salvar a sua pele, sair do torneio com uma boa performance, mas que o time não teria sido sua prioridade".

Outra falha que se delineou, especialmente depois de 2018, foi a falta de jogadores com personalidade e carisma, líderes dentro do campo como outrora fora Bastian Schweinsteiger. Também personalidades fortes como o carioca de nascimento Kevin Kuranyi, Sandro Wagner e Kevin Grosskreutz foram banidos ou boicotados, por terem o perfil de garotos selvagens e cabeça própria para criticar o treinador.

O que se vislumbrou no fim na partida coma Inglaterra foi uma equipe sem líder, sem gana para vencer e sob o comando de um técnico exausto e com problemas de gestão de vestiário.

Sascha Steinbach/Bongarts/Getty Images

Começar de novo

Vencedor da Liga dos Campeões de 2020, em campanha marcada por um 8 a 2 no Barcelona de Messi, o sucessor Hansi Flick chega com muita moral, esbanjando frescor e disposição.

O brasileiro Elber, que acompanha de perto a trajetória do Bayern, se mostrou confiante com a chegada de Flick, ex-assistente de Joachim Löw: "É um treinador que entende muito bem do vestiário, conversa bastante com seus jogadores. Eu acredito e confio no trabalho dele: é uma pessoa muito positiva, que fala olhando no teu olho. Com esse estilo, ele vai conseguir grandes conquistas".

Um dos comentários nas redes sociais depois do fim do jogo com os ingleses resume o alívio que paira no ar. "O melhor de tudo é que Löw finalmente vai embora", escreveu a usuária Birgit Keller, usando a hashtag oficial do jogo.

O capítulo da "novela" Löw se encerra com aparente três anos de atraso e em comunicado em divulgado no último dia 2 de julho. No mesmo momento, o ídolo Toni Kross também anunciou sua aposentadoria da seleção. Portanto, uma nova Alemanha precisará dar as caras no Mundial do ano que vem.

Löw e a chanceler Angela Merkel dividem similaridades: os dois perderam o trem que os possibilitava partir de cabeça erguida e estipular o momento do fim, sem aquela sensação de que já vão tarde e carregando o gosto amargo de tantas coisinhas miúdas. Em setembro próximo, depois de 16 anos, termina a "Era Merkel". Depois de tempos de letargia no futebol e na política, as portas na Alemanha, enfim, se abrem para o futuro.

Clive Rose/Getty Images Clive Rose/Getty Images

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