Le Mans, 1955

Há 65 anos, mais de 80 pessoas morreram após um acidente impressionante que mudou a história do automobilismo

Diego Salgado Do UOL, em São Paulo Keystone/Getty Images

Sessenta carros rasgavam as retas a mais de 200 km/h, num espetáculo contemplado por mais de 200 mil pessoas presentes ao circuito de La Sarthe, na França. Havia no ar a expectativa de uma disputa acirrada entre pilotos novatos e veteranos naquela tarde quente do verão de 1955.

A 23ª edição da tradicional 24 horas de Le Mans, entretanto, não acabou com afagos, sorrisos e celebração efusiva, como era de costume —e acontece todos os anos até hoje. Após duas horas de prova, a maior tragédia do automobilismo se desenrolou num acidente que mudou o rumo do esporte.

A reta principal do circuito foi palco do horror: na arquibancada, mais de 80 mortos empilhados e centenas de feridos. Na pista, um corpo estendido. O piloto francês Pierre Levegh, 50 anos, estava inerte e carbonizado. Ele morreu instantaneamente depois de um acidente que envolveu quatro carros, incluindo o do futuro pentacampeão mundial de Fórmula 1, Juan Manuel Fangio, que saiu ileso da batida.

O duro golpe sofrido pelo automobilismo naquele sábado, 11 de junho de 1955, a 22 horas da bandeirada final, foi remontado pelo UOL Esporte, com fotos, imagens em vídeo do acidente e relatos dos jornais da época.

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Mercedes x Jaguar

A Fórmula 1 ainda engatinhava naquela época. Em 1955, a hoje principal categoria do automobilismo mundial vivia apenas sua sexta temporada. Enquanto isso, a corrida de Le Mans já era tradicional, capaz de arrastar multidões. O então bicampeão mundial de Fórmula 1 (seria penta até 1957), o argentino Juan Manuel Fangio, desfilava o seu talento a bordo de um Mercedes número 19, com o inglês Stirling Moss como companheiro.

O norte-americano Phill Hill, campeão mundial de Fórmula 1, corria pela Ferrari número 3. O maior adversário da dupla Fangio e Moss, porém, seriam Mike Hawthorn e Ivor Bueb, ingleses que pilotavam pela Jaguar.

Os nomes eram importantes, mas a estrutura de segurança não estava à altura. Não existiam protocolos de atendimento a acidentes ou normas para evitar tragédias. O público, por exemplo, assistiu à disputa a pouco metros de distância da pista, sem barreiras. Essa exposição, você lerá em seguida, viria a ser mortal.

A competição entre Fangio e Hawthorn, tão aguardada, não durou muito, interrompida pelo acidente, com o inglês como protagonista e o argentino como quase vítima.

Os envolvidos

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Mike Hawthorn

Era piloto da Jaguar. Além de Le Mans, disputava, aos 26 anos, a sua quarta temporada na Fórmula 1 --venceu em 1958. Na corrida trágica, disputava a liderança da prova. Morreu no começo de 1959, num acidente de trânsito em sua cidade natal, meses depois de ser campeão na Fórmula 1.

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Lance Macklin

Também acumulava experiência da Fórmula 1, categoria em que disputou quatro temporadas, de 1952 a 1955, sem resultados expressivos. Aos 35 anos, Macklin dirigia um Austin-Healey, que tinha um papel secundário na competição. O piloto londrino morreu em 2002, de causas naturais.

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Pierre Levegh

O francês foi o único piloto que morreu na tragédia. Era um dos mais experientes do grid de largada. Aos 55 anos, acumulava duas temporadas na Fórmula 1 no começo dos anos 1950 e corria pela sétima vez em Le Mans. Naquele ano, com a Mercedes, uma das favoritas à vitória.

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Fangio

Um dos maiores nomes da história do automobilismo já era bicampeão mundial de Fórmula 1 quando disputava Le Mans pela quarta vez. O argentino pilotava uma Mercedes e escapou por pouco do acidente. Depois, conquistou três edições seguidas na Fórmula 1.

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A tragédia na 35ª volta

A multidão presente ao circuito de La Sarthe acompanhava a intensa disputa pelas primeiras colocações da prova. A diversão durou apenas duas horas até que, na reta dos boxes do circuito que tinha a Mulsanne como reta principal, a disputa entre Mike Hawthorn e Juan Manoel Fangio virou uma tragédia.

Líder da prova, Hawthorn foi chamado para os boxes por mecânicos da equipe Jaguar na 35ª volta. O inglês, então, passou a diminuir a velocidade, com o carro mais à direita. Lance Macklin, coadjuvante no duelo entre Hawthorn e Fangio, tentou evitar o choque e fez uma manobra brusca à esquerda no comando do seu Austin-Healey.

Macklin apenas adiou o acidente. No meio da pista, ele acertou em cheio a Mercedes de Pierre Levegh, que cortava a reta a 260 km/h e estava uma volta atrás dos líderes. O carro decolou, deu uma volta no ar e explodiu ao bater no asfalto. Àquela altura, o desastre já estava em curso: com o impacto e a pirueta na sequência, peças se soltaram do carro, ganharam força e foram projetas contra quem estava assistindo à prova.

Apesar de ter se envolvido diretamente no acidente, Macklin sofreu apenas ferimentos leves. Ao ver o que acontecia a sua volta, o piloto inglês agiu rápido e pulou do carro rapidamente, temendo que ele pegasse fogo. Você pode ver a reconstituição do acidente abaixo. E acompanhar, no vídeo, o que aconteceu naquele dia em Le Mans.

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Cenário de guerra

Os pedaços da Mercedes de Levegh se tornaram um rolo compressor, "varrendo" quem estava à frente. Os espectadores atingidos pelas peças morreram imediatamente.

Presente ao local, o repórter Francisco Diaz Roncero, da Agência France Press, deu detalhes da cena em um relato escrito no dia seguinte. "Vi [o carro] se despedaçar como se uma bomba tivesse explodido. Vi cair como uma bola de fogo sobre os espectadores que ficaram esmagados sob os restos da máquina", contou.

Na pista, a metros da carnificina, o corpo de Levegh estava estirado, carbonizado. Os fiscais de pista agiram rápido e cobriram o piloto francês. Na arquibancada, um corre-corre foi formado em meio à tentativa de ajuda de algumas pessoas. A maior parte estava à procura de parentes e amigos.

"Gritos de dor partiam dos lugares próximos à fogueira. Numerosas pessoas jaziam por terra, sangrando, umas inanimadas, outras gritando por socorro", relatou o repórter, que passou a ajudar os feridos, em sua maioria com fraturas expostas e queimaduras.

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"Levegh me salvou"

Juan Manuel Fangio vivia uma grande fase na carreira quando desembarcou em Le Mans naquele junho de 1955. Uma semana antes, vencera o GP da Bélgica de Fórmula 1 — o segundo triunfo em quatro provas daquela temporada. Com atual campeão da categoria mais famosa do automobilismo, encaminhava o tricampeonato.

Em Le Mans, era um dos favoritos.

O argentino, no interior da sua Mercedes, assistiu à colisão de perto. Ninguém viu tudo aquilo tão próximo, nem mesmo Mike Hawthorn.

Na reta principal da pista, Fangio disputava a ponta com Hawthorn, que diminuiu a velocidade de forma brusca para entrar nos boxes. O piloto argentino, porém, tinha Levegh à sua frente, que disputava apenas posições intermediárias na prova.

Diante do choque entre Macklin e Levegh, Fangio teve milésimos de segundos para desviar. Segundo relato da Agência France Press, publicado no jornal O Globo de 13 de junho de 1955, Fangio disse que foi Levegh quem o salvou. O francês teria erguido o braço rapidamente ao sentir a aproximação de Macklin.

Fangio conseguiu jogar sua Mercedes para a direita, escapando da colisão maior. Na sequência, ainda contou com a sorte ao rasgar a reta e escapar por centímetros de um choque com o carro de Macklin, já parcialmente destruído. "Deus me protegeu", disse o argentino ao piloto americano John Fitch, companheiro de Levegh, já nos boxes da Mercedes.

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Por que a corrida foi mantida?

"Sobre os gritos dos feridos, o pranto dos que perderam entes queridos, o susto de todos, continua, inalterável, o trágico roncar das máquinas que prosseguem na competição, a despeito do malfadado fim de um dos seus colegas. Mas os espectadores parecem petrificados e, agora, é com mais terror do que admiração que acompanham a passagem de cada carro. O drama paira sobre a corrida de Mans."

O relato de Francisco Diaz Roncero mostra como se desenrolaram os fatos seguintes à tragédia. A competição não foi paralisada por nenhum momento, apesar de o corpo de Levegh ter sido jogado na pista, dois carros estarem destruídos e área destinada ao público estar lotada com centenas de pessoas mortas ou feridos.

A interrupção foi descartada até mesmo depois de um segundo acidente minutos depois da tragédia. Em outro ponto do circuito, o inglês Dick Jacobs perdeu o controle do carro, que capotou. O piloto MG Cars saiu ileso, apesar das circunstâncias.

A decisão dos organizadores da prova em manter a competição estava ligada ao resgate das vítimas. De acordo com eles, o cancelamento da corrida poderia resultar no congestionamento das estradas, já que havia 300 mil pessoas no circuito. Naquele ano, a prova era organizada pelo "Automóvel Clube Oeste", que também patrocinava o circuito.

A opinião pública, entretanto, não economizou em críticas. Até mesmo pilotos se manifestaram. "Acho que a corrida devia ser suspensa. Esse acidente é um pesadelo. Não posso compreender como há gente que continua cantando, bebendo e se divertindo aos lados da pista, ao mesmo tempo que outros espectadores se encontram no necrotério", disse Stirling Moss.

John Fitch também se manifestou. "Deviam ter suspendido a corrida logo depois de uma catástrofe de tal natureza", afirmou o companheiro de Levegh.

A equipe Mercedes, naquela corrida, competia com três duplas distintas: Juan Manuel Fangio e Stirling Moss, Pierre Levegh e John Fitch, e Karl Kling e André Simon. Todos deixaram a prova assim que a gravidade da situação veio à tona.

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Erros em sequência

Dois erros foram cruciais para que pedaços de um carro fizessem tantas vítimas durante uma corrida. Segundo Luís Ernesto Morales, engenheiro chefe do GP do Brasil, a falta de sinalização no asfalto e uma proteção praticamente nula entre os carros e a plateia resultaram na maior tragédia da história do automobilismo.

"Naquela época não havia preocupação com a segurança. As entradas e saídas dos boxes hoje são muito claras. As linhas de entrada e saída são justamente para evitar uma mudança de trajetória repentina. O primeiro fato que provocou o acidente foi a mudança repentina da trajetória de um dos carros [o de Macklin]", explicou.

Morales ressalta que há 65 anos não havia preocupação com segurança nos circuitos. Público próximo à pista era algo corriqueiro nas corridas de automóveis. Ele explica que o ideal era ter duas barreiras entre o asfalto e a arquibancada. "Naquela época, não existia nenhuma barreira. Não era um muro, era uma pequena cerca de madeira, que não protegia nada. Hoje é obrigatório pela Fia. A primeira linha de segurança protege os carros. A segunda, o público, com altura determinada, para evitar que qualquer elemento da pista ultrapasse e atinja o público", frisou Morales.

"Era como se fosse um rally. À beira da estrada, sem qualquer tipo de proteção. Isso que provocou aquele número de fatalidades", disse.

Numa entrevista após o desastre, o governador da província de Sarthe, cuja capital é Le Mans, afirmou que todas as medidas de segurança habituais tinham sido tomadas, mas a "amplitude da catástrofe ultrapassara todas as previsões".

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Eles não tinham noção na época de que estavam fazendo algo errado. Era um esporte de risco e as pessoas corriam esse risco de forma deliberada. Era a mentalidade da época. É diferente de ter regras estabelecidas, descumprir e ser penalizado. Naquela época não tinha essa visão

Luís Ernesto Morales, engenheiro chefe do GP do Brasil

Corriam como se fosse um racha de rua. Se tivesse parado para pensar, é muito fácil de chegar a essa conclusão, de que era preciso um tipo de barreira. Mas não se pensava em segurança. Era o mínimo que precisava ser feito Naquela época achavam normal ficar ao lado da pista. Não olhavam o risco

Luís Ernesto Morales, engenheiro chefe do GP do Brasil

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Números desencontrados

A primeira informação em relação às vítimas dizia que 70 pessoas tinham morrido e outras 94 estavam feridas, sendo cinco em estado grave. No dia seguinte à tragédia, autoridades temiam que houvesse muitos turistas estrangeiros entre os mortos, pois a prova era uma atração internacional.

No dia 14, um porta-voz do governo disse que os mortos já eram 82. Segundo ele, o número de feridos era maior que o divulgado antes. O total chegava a 105, com sete em estado grave. Oito deles, ainda de acordo com as autoridades, sofreram amputações.

A cidade de Le Mans, na ocasião, recebeu 1.200 pessoas na sua maior catedral. Em razão da "maior catástrofe automobilística da história", todas as lojas fecharam as portas durante duas horas, em sinal de luto.

O número exato de mortos e feridos ainda é desencontrado. Nem oficialmente existe uma informação precisa. Estima-se que até 85 pessoas tenham morrido, além de Levegh. Os feridos passaram de 100.

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Segurança demorou a mudar

Houve consequências em relação ao esporte de motor em outros países. A Suíça, por exemplo, baniu qualquer competição de automobilismo em seu território. Itália, Espanha e Alemanha também se manifestaram e clamaram por mais segurança.

Quatro GPs de Fórmula 1 foram cancelados até o fim de 1955. A corrida na França, por exemplo, aconteceria em Reims no dia 3 de julho. As provas da Alemanha, da Suíça e da Espanha. Fangio conquistou o tricampeonato depois de sete corridas. No ano seguinte, sagrou-se tetra com a Ferrari e, depois, com a Maserati.

Um plano de segurança francês foi colocado em prática semanas depois da tragédia. Nele, havia seis tópicos, criados a partir de técnicos que examinaram a pista de Le Mans. A primeira determinação dizia respeito à diferença de potência de motores —o ideal era ter propulsores semelhantes.

A redução de carros na pista também foi mencionada. Por isso, o número caiu de 60 competidores em 1955 para 49 no ano seguinte. O plano ainda pedia uma minuciosa inspeção dos carros e até exames de visão e reflexo dos pilotos.

As maiores mudanças aconteceriam na pista, que teria uma faixa separada para o reabastecimento. Além disso, seriam alargadas. A mais significativa, porém, era ligada aos espectadores. A distância para a arquibancada teria de ser aumentada e as pessoas precisariam ficar num plano acima em relação à pista.

Mas a segurança, segundo Luís Ernesto Morales, só virou assunto constante dali a cerca de 30 anos. E virou prioridade em 1994, após as mortes de Ayrton Senna e Roland Ratzenberger.

"Na década de 1980, começou a ter uma preocupação mais forte com segurança, começou-se a restringir a homologação de circuitos. Depois da morte do Senna, isso passou a ter mais força. Inverteu a lógica, de correr com segurança. Antes era apenas correr. A mentalidade mudou", disse.

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O destino do vencedor

Mike Hawthorn venceu aquela prova. Três anos depois, conquistou o mundial de Fórmula 1 de 1958. Mas a celebração durou apenas 95 dias. Três meses depois, o vencedor da trágica prova de Le Mans morreu em um acidente de trânsito em Farnham, onde morava.

Coincidentemente, Hawthorn dirigia um Jaguar na ocasião. Ele perdeu o controle ao ultrapassar uma Mercedes, que tinha Rob Walker, chefe da equipe, na condução. Especulou-se à época que os dois disputavam um racha. Walker nunca confirmou a tese.

O piloto britânico conquistou o título no dia 19 de outubro de 1958, ao chegar em segundo lugar no GP do Marrocos. Stirling Moss, que era companheiro de Juan Manuel Fangio na prova de Le Mans, em 1955, venceu a corrida naquela ocasião.

Quando conquistou o título, tornou-se o primeiro piloto a ser campeão de Le Mans e da Fórmula 1. Em 1972, ele seria igualado pelo compatriota Graham Hill, vencedor da edição daquele ano nas 24 horas. O espanhol Fernando Alonso se juntou a eles em 2018, quando venceu a prova francesa.

Até o momento da sua morte, Hawthorn teve de conviver com o peso de ser apontado por algumas pessoas como o causador da maior tragédia da história do automobilismo. Ele recebeu críticas ainda por celebrar, mesmo que de forma tímida, a vitória em Le Mans. Na foto abaixo, ele aparece sorrindo ao lado do companheiro Ivor Bueb.

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