Cinquentão

Kelly Slater acaba de ser campeão de etapa da WSL, mas postura antivacina levanta questão: qual legado ficará?

Gustavo Setti e Marcello De Vico Do UOL, em São Paulo e Santos Tony Heff/World Surf League

Na semana passada, Kelly Slater venceu a etapa de Pipeline, a primeira do Circuito Mundial de surfe da WSL, em 2022. Quem estava na praia ouviu um discurso emocionado na cerimônia de premiação que em nada sinalizavam que aquele era o maior surfista da história, dono de 11 títulos mundiais, e que uma semana depois (ele faz aniversário hoje, dia 11) completa 50 anos.

"Eu nem sei o que dizer. Eu estava lá dentro apenas dizendo a mim mesmo para curtir cada momento, não importa quanta tensão houvesse, tinha só que respirar", disse. "Até pensei que o Seth [Moniz, adversário na final de Pipeline] tinha virado pelo barulho da torcida, mas disse a mim mesmo para viver cada momento. Não achei por nenhum segundo que a vitória estava garantida e, se o Seth vencesse, seria uma grande vitória para ele. Dediquei minha vida a tudo isso, então tentei apenas aproveitar e esta é uma das melhores vitórias da minha vida", disse Slater, 16 anos mais velho que o segundo surfista de mais idade do circuito —o sul-africano Jordy Smith, que, curiosamente, completa 34 anos também neste 11 de fevereiro.

Com 11 títulos mundiais, Kelly já foi unanimidade. Não é mais. O veterano chega aos 50 anos sem confirmar se tomou ou não vacina contra a covid-19 (nos bastidores, dizem que já) e é um crítico do imunizante. Como é consenso entre especialistas, a vacina é o principal fator na queda de mortes pela doença no mundo. Mais de 5 milhões de pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus desde o início da pandemia, sendo mais de 630 mil no Brasil.

A postura antivacina ficou ainda mais transparecida durante a discussão envolvendo o tenista Novak Djokovic no Australian Open. "É triste ver esta celebrada divisão pelos 'virtuosos' vacinados. Se você está vacinado, por que está preocupado sobre os status dos outros? A não ser, claro, que não te proteja? Ou você está com medo de pegar ou chateado porque teve que assumir o risco da vacinação você mesmo? Tanta lavagem cerebral e ódio no coração das pessoas independentemente do status de vacinação", disse Kelly.

Mas qual o tamanho da mancha que o ser humano Kelly Slater trouxe para si depois de tudo que ele construiu até aqui?

Tony Heff/World Surf League

Postura antivacina mancha sua carreira?

"A decisão de não se vacinar foi uma grande pisada na bola do Kelly Slater. Não só o fato de se negar a se imunizar, mas, principalmente, por fazer campanha contra a vacinação. Foi um grande desserviço, um mau exemplo, não só por ele ser o maior surfista do mundo em todos os tempos, mas por também ser um dos principais atletas em todos os esportes nas últimas décadas. Em relação a arranhar a imagem dele, em um primeiro momento, pode até ser, mas em 2, 3, 5 anos, todo mundo vai esquecer desta postura dele quando tudo isso passar e vai ficar a imagem dele de um grande campeão, maior atleta do surfe em todos os tempos", diz Thiago Blum, autor da coluna Surfe 360º.

Está cheio de haters por aí. Qualquer opinião minoritária está sendo atacada pela maioria, mas ainda acredito que o cara toma vacina se quiser. Pode ter alguns que não vão gostar, mas ele não mancha sua carreira por causa disso."

Teco Padaratz, 1º brasileiro a vencer Kelly numa final

Não acho que ele está se manchando. Acho que cada um tem o livre arbítrio de viver o que acha melhor para si próprio. Então não posso julgar por uma questão pessoal o que ele já fez na história."

Renan Rocha, 1º brasileiro a tirar nota 10 em Pipeline

A galera está confundindo vida pessoal e profissional. Se isso impede ele de correr algum campeonato, é decisão do lado profissional. Tomar vacina ou não é decisão pessoal. Não vai influenciar na imagem."

Raoni Monteiro, ex-atleta do Circuito Mundial

Tony Heff/World Surf League Tony Heff/World Surf League

Falta de vacina pode virar problema no Mundial

Caso Kelly não tenha mesmo se vacinado, pode ter problemas ao longo do Circuito Mundial de 2022. O americano corre o risco de perder etapas durante o ano ao ser barrado na entrada de alguns países.

O circuito passa por Havaí, Portugal, Austrália, Indonésia, El Salvador, Brasil, África do Sul, Polinésia Francesa e Estados Unidos — a final será em Trestles, na Califórnia. Destes, Austrália, Indonésia e Brasil exigem vacinação contra a covid para quem quer entrar nos territórios. Os Estados Unidos são um caso à parte para Kelly. Estrangeiros precisam estar imunizados contra a covid para entrar no país, mas americanos, não.

Havaí, Portugal e Austrália receberão o circuito até começo de maio. Sem vacina, o 11 vezes campeão mundial perderia as duas etapas australianas. Na sequência, só os 24 melhores ranqueados seguirão para as cinco etapas restantes (Indonésia, El Salvador, Brasil, África do Sul e Polinésia Francesa). Se Kelly estiver sem vacina e as restrições forem as mesmas até lá, seriam mais duas etapas de desfalque para o americano, que podem ser decisivas no fim da temporada, quando apenas os cinco primeiros disputarão a final em Trestles.

"As regras estão ali, e cada um tem a liberdade de tomar ou não tomar a vacina, mas as regras de restrições também existem e tem que arcar com as consequências de suas decisões. A gente tem que respeitar a decisão de cada um", diz Luiz 'Pinga', empresário e técnico que já trabalhou com nomes como Italo Ferreira e Mineirinho.

WSL / Kelly Cestari

"Tudo faz parte do jogo pra ele", diz Teco Padaratz

"Nós competimos cinco vezes um contra o outro. Na primeira vez, foi em uma bateria da triagem, não lembro se em 1989 ou 1990, em Lacanau [França]. Passavam dois. Eu passei em primeiro e ele em segundo. Aí, quando eu fui apertar a mão dele, ele tirou a mão, olhou bem nos meus olhos e falou: 'isso não vai acontecer de novo', e me encarou. Achei estranho. Cara obstinado, né? É só uma bateria, os dois passaram, não precisava daquilo tudo. Mas enfim...

Ele venceu as três vezes seguintes até que a gente se encontrou na final em Hossegor, em 1994. Naquela final, antes de entrar na água para a final, eu estava no pódio molhado da semi, com frio, esperando ele chegar para gente dar os depoimentos para entrar na água, porque a galera apresentava os finalistas primeiro. Ele me deixou esperando uns 20 minutos no pódio porque disse que estava com dor de barriga. Ficou trancado numa sala atrás do palanque.

Ele já estava querendo quebrar meu psicológico, eu sabia. Conheço o Kelly, todo mundo conhece. Tudo faz parte do jogo para ele, até tomar café da manhã [risos]. E quando eu venci a bateria, fui até ele, apertei a mão, bati no ombro e falei: 'aconteceu de novo' [risos]. Anos depois que ele se tocou do que eu disse, porque ele nem ouviu direito na hora. Ele só falou 'ok, boa bateria'. E essa foi a última vez que a gente competiu um contra o outro.

Em 2003, eu já era dono da licença da etapa no Brasil e estava competindo ao mesmo tempo. Chamei um pessoal para um jantar na minha casa e chamei o Kelly também... Ele chegou mais cedo, abrimos um vinho, e fui brindar essa história. 'Pô, você lembra dessa história?'. 'É, os juízes estavam comprados'. Ele ficou tirando onda comigo [risos]."

Pierre Tostee / Allsport/ALLSPORT

Renan: "Kelly é um fanático pelo surfe"

"Kelly tinha um posicionamento de fazer o circuito do jeito que é, de mudar um pouco o sistema... Tanto é que ele ajudou a criar o sistema de baterias duplas. Nas reuniões, era muito presente quando os surfistas se uniam com a ASP para debater o futuro da associação. Sempre marco o Kelly como essa pessoa presente no circuito dentro e fora da água. Kelly é um fanático pelo surfe e essa foi a grande diferença na carreira dele. Ama pegar onda, ama pegar tubo, sempre saudável e com uma mente poderosíssima. Ele vai ser eterno."

Kirstin Scholtz/World Surf League

Pinga: "Ficamos bem próximos em 1992"

"Eu tenho uma relação bacana com ele, de respeito, há muito tempo. Muita gente não sabe, mas quando ele foi campeão mundial em 1992, no Rio, ele estava comigo. Eu estava acompanhando ele, bem perto dele. A gente ficou bem próximo durante a semana no Rio. Eu trabalhava na patrocinadora dele, na Quicksilver, e a gente ia para cima e para baixo juntos. Na hora que ele foi campeão mundial, eu estava do lado dele. Foi uma experiência muito bacana. De vez em quando, a gente lembra quando está tomando uma cerveja."

Kirstin Scholtz/World Surf League

Raoni: "Veio em minha direção aplaudindo"

"Uma história bem legal que eu tenho foi em Fiji [em 2012], quando o mar estava grande e a galera colocou o campeonato para rolar. Logo depois que eu me lesionei, que peguei uma onda irada e não consegui sair do tubo, voltei para o barco e fui direto para o resort. Chegando lá, a galera estava vendo o campeonato, tinha um monte de big rider [surfista de onda gigante].

Quando eu cheguei, foi um momento muito maneiro porque tinham muitos caras de nome, e a galera levantou e começou a aplaudir. E o primeiro que levantou foi o Kelly, veio andando em minha direção aplaudindo, falou que eu tive uma atitude muito maneira. Eu receber esse elogio... Depois vários caras vieram falar comigo. Foi um momento bem legal, de respeito."

Paul Jones/Fairfax Media
Kelly Slater, ainda com cabelo, aos 19 anos

Vovô do tour

A longevidade de Slater impressiona, mas a diferença de idade do 'vovô Kelly' para os demais competidores do Tour em 2022 é chocante. Para se ter uma ideia, apenas sete dos 34 competidores que compõem a elite do surfe na temporada já eram nascidos quando o 11 vezes campeão mundial conquistou o seu primeiro título do WCT, em outubro de 1992, com apenas 20 anos.

São eles, por ordem de idade, do mais velho para o mais novo: o sul-africano Jordy Smith (34 anos), o australiano Owen Wright (32), o brasileiro Jadson André (31), o norte-americano Nat Young (30), o português Frederico Morais (30), o australiano Ryan Callinan (29) e, por fim, o havaiano John John Florence (29) — que tinha apenas alguns dias de vida quando Kelly faturou o primeiro de seus 11 canecos, na etapa da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, disputada entre 21 e 25 de outubro de 1992.

Existem outros recortes marcantes. Por exemplo: quando Kelly Slater se tornou hexacampeão, em 1998, oito dos surfistas que disputam o circuito ou ainda não tinham nascido — Callum Robson (20 anos), João Chianca (21), Liam O'Brien (22), Morgan Cibilic (22) e Samuel Pupo (21) — ou vieram ao mundo justamente naquele ano — Ethan Wing, Griffin Colapinto e Jake Marshall.

"O Kelly é tão sinistro que pegou quase todas as gerações: Tom Curren e Tom Caroll, Pat O'Connell, e aí vieram Mick Fanning e Joel Parkinson. Depois Gabriel Medina e Filipe Toledo e agora a geração João Chumbinho e Samuel Pupo... Daqui a pouco a geração dos filhos da galera está entrando no circuito e ele está lá competindo [risos]. O Kelly é uma inspiração mesmo, realmente um fenômeno", diz Raoni.

Mas a diferença de idade, ao menos nessa primeira etapa de 2022, segue não sendo obstáculo para Kelly.

"O cara é obstinado pela competição, não vai largar o osso nunca, só na hora que tirarem ele do circuito. Porque ele só sabe fazer isso, esse é o mundo dele, o mundo do Kelly Slater, e sorte a nossa de poder ter um cara como ele representando nosso esporte da forma que ele faz, com tanta disciplina e tanta dedicação, e que inclusive inflaciona aqui o nível dos cinquentões... Estou tendo que dar um gás para me manter, né, porque o cara tá foda [risos]. Estou com 51, então preciso dar um gás porque o cara inflacionou o mercado [risos]", brinca Teco.

Kelly Slater em números

  • 11

    títulos mundiais

  • 1989

    Estreia no Circuito Mundial

  • 34 anos

    participando de etapas do Circuito Mundial

  • 20 anos

    quando foi campeão pela primeira vez, em 1992

  • 39 anos

    quando foi campeão pela última vez, em 2011

  • 56

    etapas vencidas no Circuito Mundial ao longo da carreira

  • 1 título

    Campeão da primeira etapa de 2022, na semana passada, no Havaí

Damien Poullenot/WSL
Kelly Slater durante etapa de Saquarema, no Rio de Janeiro, em 2019

Kelly Slater e o Brasil

O Brasil não está na história de Kelly Slater apenas por ser o local onde conquistou seu primeiro título mundial de surfe, em 1992, na Barra da Tijuca. Dentre as 56 etapas vencidas ao longo de sua carreira, três delas foram aqui: em 1997 (na Barra da Tijuca), e em 2003 e 2009 (ambas em Santa Catarina).

Mas a relação com o Brasil também já foi de atrito. Em 2015, na etapa de Margaret River, na Austrália, Slater discutiu com torcedores brasileiros após ser eliminado por Adriano de Souza, o Mineirinho, nas quartas de final. Ainda com a lycra e a prancha na mão, ele ouviu provocações de alguns aficionados presentes na praia e revidou.

Por outro lado, Kelly costuma se dar bem com os surfistas brasileiros do Tour, como reforçou em uma entrevista concedida no fim do ano passado: "Se você observar todos os brasileiros no Tour, eles são todos caras legais e me dou bem com todos eles, acho que todos são boas pessoas. Mas, você sabe, quando alguém vem para tomar seu título, você não vai ceder sem lutar e sem machucar o ego de alguém, sabe?".

O Brasil guarda ainda outras relações e curiosidades do surfista, como, por exemplo, o breve namoro que engatou com a modelo Gisele Bundchen em 1996.

WSL / Sean Rowland
Kelly Slater pega onda em Surf Ranch, na Califórnia

Empresário fora d'água

Enquanto surfava, Kelly virou, também, empresário. Seu empreendimento mais famoso é a Kelly Slater Wave Company, empresa que desenvolveu a tecnológica piscina de ondas. O simulador oferece diferentes tipos de onda, indicadas para iniciantes ou avançados. Uma das ondas é utilizada na etapa do Circuito Mundial realizada no Surf Ranch, o rancho na Califórnia onde está a piscina artificial. Em 2016, a WSL anunciou a compra de ações para se tornar sócia majoritária da empresa.

Kelly também está no mundo da moda. Em 2015, ele criou a Outerknown em parceria com o diretor criativo John Moore. É uma marca de roupas sustentável. O surfista usa um adesivo da Outerknown no bico de suas pranchas durante as etapas do circuito.

O americano ainda tem sua própria marca de pranchas. A Slater Designs faz pranchas e acessórios. O último empreendimento anunciado foi a Endorfins, marca de quilhas. Ele também está envolvido em outros projetos, como um local de retiro espiritual, e já se mostrou interessado em investir no universo das criptomoedas.

Koji Hirano/Getty Images Koji Hirano/Getty Images

Até onde ele pode chegar?

Depois de 50 anos, essa pergunta segue. Após a vitória em Pipeline na semana passada, o 11 vezes campeão mundial deixou o futuro em aberto com uma declaração em tom de despedida. Por enquanto, nada de anúncio oficial.

"Não sei quantas vezes mais isso pode acontecer. Ainda não tenho a certeza sobre estar em Sunset [2ª etapa do Circuito Mundial]. Dediquei minha vida para o que faço, amo o surfe mais do que tudo no mundo. Às vezes, odiei mais do que tudo no mundo. O tempo todo que você está lá no fundo, na liderança, você se sente com a mão na taça, mas, se relaxa, as coisas mudam, a energia muda rápido. Aí eu pensei: 'estou no fim desta última bateria, esses minutos podem representar o milagre final e eu encerro e estarei feliz por mim'. Era o meu dia e as coisas não mudaram."

Se continuar na ativa, Kelly ainda pode tentar um feito inédito em sua carreira: disputar as Olimpíadas. Ele ficou perto de se classificar para os Jogos de Tóquio, mas bateu na trave. A próxima edição das Olimpíadas ocorre em Paris, em 2024, e o surfe acontece na pesada onda de Teahupoo, no Taiti (Polinésia Francesa), que Kelly conhece muito bem.

"Até onde ele vai? É difícil falar porque é um cara que está competindo de igual para igual. Eu acredito que ele deva ter em mente tentar ir para as Olimpíadas, principalmente se realmente for Teahupoo. Ele ficaria muito contente de conseguir ir em uma Olimpíada no Taiti, onde teria grande chance de conquistar uma medalha. Eu acredito que ele possa ter isso na cabeça dele. Mas o Kelly é o Kelly. A gente sempre pode esperar alguma coisa de diferente vindo dele", diz Luiz Pinga.

Mas essa discussão poderia nem acontecer alguns anos atrás. A última vez que Kelly realmente disputou o título mundial para valer foi em 2014, quando Gabriel Medina levou a melhor. Depois, ele foi inconsistente e sofreu com muitas lesões. Parecia o fim, mas o surfista vem de melhores resultados desde a temporada passada. Ainda é possível um novo título mundial?

"É um atleta e uma pessoa que acho que, dentro de todas as conquistas, teve que abandonar família, filha, amigos e criou dentro dessa atmosfera de si próprio um jeito de tentar realmente se focar no surfe e nas conquistas em vez de ter ido para Hollywood, por exemplo. Ele podia estar até hoje fazendo filmes em Hollywood, mas não. Preferiu pegar tubo. Acho que essa é foi a maior grandeza que ele vai mostrar para a molecada: seja surfista, de alma", diz Renan Rocha.

+ Especiais

Facebook/Surf no Alemão

Crianças do Alemão vão à praia pra surfar e descobrir novos horizontes.

Ler mais
Mariana Pekin/UOL

Instituto Gabriel Medina: jovens esperam solução de impasse em ONG do tricampeão.

Ler mais
Divulgação

Bob Burnquist: como fitoterápicos, neurociência e NFTs entraram na vida do skatista.

Ler mais
WSL

Como a chegada das mulheres à Pipeline ajuda na busca por igualdade no surfe.

Ler mais
Topo