Pelas beiradas

Lateral do tetra, Jorginho fala da Copa de 2010, em que era auxiliar de Dunga, e do surpreendente Cuiabá

Leandro Miranda e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo AssCom Dourado

África do Sul, 2 de julho de 2010. Pelas quartas de final da Copa do Mundo, o Brasil vai vencendo a Holanda por 1 a 0 após dominar o primeiro tempo. Todo mundo lembra o que aconteceu depois: em uma bola alçada na área, Júlio César saiu para cortar, mas trombou com Felipe Melo, que desviou contra o próprio gol.

Auxiliar técnico da seleção naquele jogo, o tetracampeão Jorginho tem uma explicação. O barulho das vuvuzelas — espécies de cornetas usadas pela torcida sul-africana nos jogos daquela Copa — impediu a comunicação dos jogadores em campo. "Teve a questão da vuvuzela, que era um barulho ensurdecedor. O Júlio gritou 'é minha', mas o Felipe Melo infelizmente acabou dando uma casquinha e tomamos o gol".

Vinte minutos depois, já com a Holanda vencendo por 2 a 1, Felipe Melo deu um pisão em Robben e foi expulso, comprometendo as chances de reação do Brasil. E Jorginho, de novo, tem um detalhe para contar: ele poderia ter mudado radicalmente o destino da seleção naquele jogo.

"O Felipe Melo estava muito bem no jogo, e eu lembro até hoje que o Paulo Paixão (preparador físico) falou: 'Jorge, estou preocupado com o Felipe, ele está muito nervoso'. Eu falei: 'espera um pouco, porque acabei de ir falar com o Dunga, e se eu for de novo, a gente conhece, ele vai acabar explodindo. A situação está tranquila'. E nesse momento, o Felipe Melo foi expulso".

"Hoje eu faria diferente, falaria: 'Dunga, tira o Felipe'. Ele estava muito bem, tinha dado um passe fenomenal para o Robinho fazer o gol no primeiro tempo. Falei para ele: 'Felipe, você está bem demais, calma, porque os caras estão tentando te deixar nervoso'. Ele falou: 'estou tranquilo'".

AssCom Dourado
Lutz Bongarts/Bongarts/Getty Images
Jorginho com a taça da Copa do Mundo

O lateral do tetra

Quem terminou a final da Copa do Mundo de 1994 na lateral direita da seleção brasileira que conquistou o tetracampeonato foi Cafu, mas aquela posição era de Jorginho. Aos 29 anos, ele era titular do Bayern de Munique e referência daquele time. O engraçado é que a participação naquela conquista foi "previsto" anos antes, em 1982, quando o Brasil de Telê Santana, até hoje considerado uma das maiores seleções brasileiras em Copas do Mundo, foi eliminado pela Itália. "Quando acabou aquele jogo, eu fui jogar um futebol com os amigos, bater uma peladinha."

Estava com 16 anos de idade. E lembro que falei: 'o próximo campeão do mundo serei eu'. Aí eles brincaram muito. E isso veio a acontecer (em 1994)."

Jorginho não é mais lateral. Hoje, é técnico. Foi auxiliar de Dunga na Copa do Mundo de 2010 e, agora, comanda o Cuiabá, uma das grandes surpresas do Campeonato Brasileiro de 2021. O UOL falou com ele antes de uma partida contra o Juventude, que seu Cuiabá venceu por 2 a 1.

Assista à entrevista na íntegra:

Lembranças de 94

  • Rivalidade Rio-SP

    Sobre um jogo decisivo pelas Eliminatórias da Copa contra o Equador, no Morumbi, em 1993, Jorginho lembra: "Foi uma pressão enorme em cima do Parreira, porque o Telê Santana tinha sido campeão do mundo pelo São Paulo em 92. Tinha a questão da rivalidade de Rio e São Paulo na época, meu reserva era o Cafu, e aí a torcida do São Paulo no Morumbi queria o Cafu. Depois eu tive o privilégio de jogar no São Paulo também".

    Imagem: Simon Bruty/Getty Images
  • Perdeu a conta nos pênaltis

    Jorginho saiu machucado na final contra a Itália e assistiu de fora à disputa decisiva de pênaltis. "Eu perdi a contagem. Muitas vezes eu ficava de olho fechado, orando, e perdi. Achei que o Bebeto ainda iria bater. Quando os caras largaram minha mão, falei 'calma, falta o Bebeto ainda', e eles responderam 'acabou, somos tetracampeões'. Aí saí mancando, arrastando a perna, fomos festejar com o Taffarel".

    Imagem: Reprodução
  • O jogo mais difícil: Suécia

    Jorginho elegeu o jogo com a Suécia na semifinal como o mais difícil da Copa. O Brasil venceu por 1 a 0, gol de cabeça de Romário, com cruzamento de Jorginho. "Eu tentei uns 15 cruzamentos, de todas as formas. Por baixo, por cima, errei cruzamento, acertei... até que na primeira vez que eu tive a liberdade de dominar, ajeitar e olhar para a área, eu pude ver o Raí puxando a marcação no primeiro pau. E o Baixinho, com aquela impulsão, cravou no gol".

    Imagem: Pisco del Gaiso/Folha Imagem
Wilton Júnior/Estadão Conteúdo
Dunga e Jorginho na preparação para a Copa do Mundo de 2010

Jorginho não era amigo de Dunga

Quem olha para a comissão técnica da seleção brasileira na Copa de 2010 e vê Dunga como treinador e Jorginho como auxiliar, logo poderia pensar que o convite surgiu de uma relação de amizade entre os dois. Mas estaria enganado. O principal sentimento de Jorginho ao receber uma ligação do capitão do tetra para ser seu assistente em 2006 foi de surpresa total — afinal, eles não eram tão próximos assim.

"Para mim foi muita surpresa, porque a gente não era amigo íntimo. Eu tive a curiosidade de perguntar depois para ele: 'Dunga, por que você me escolheu?'. E ele me falou: 'Jorge, você é um cara extremamente sério, e eu sei que você vai respeitar o espaço. Vai contribuir muito comigo'. Ele falou que confiava em mim, que eu não ia querer o lugar dele, ia ser um grande parceiro. Que os amigos dele fora dali não tinham nada a ver".

Curiosamente, Jorginho tinha mais experiência que Dunga à época — o ex-lateral havia sido eleito o melhor técnico do Carioca no comando do América-RJ, enquanto o ex-volante encarava seu primeiro desafio como treinador. "Mas no Japão, ele já comandava o time dentro de campo", diz Jorginho, referindo-se ao período de Dunga como jogador do Júbilo Iwata.

"A gente se entendeu rapidamente, eu só falava quando eu perguntava para ele se eu podia expor minha opinião. Ele era muito simples, sabia que ainda estava aprendendo a ser um treinador naquele período, e eu tinha um pouco mais de experiência", disse. "Hoje, somos verdadeiramente muito amigos."

AFP PHOTO / FABRICE COFFRINI

Teve a questão da vuvuzela, que era um barulho ensurdecedor. O Júlio gritou 'é minha', mas o Felipe Melo infelizmente acabou dando uma casquinha e tomamos o gol."

Jorginho, sobre o lance da Copa de 2010 que marcou a derrota pra a Holanda, que eliminou o Brasil.

Ricardo Saibun/Santos FC

A ausência de Neymar e Ganso em 2010

Estão falando do Neymar e do Ganso como se fossem o Pelé. Por que não olhar pelo lado bom? Por que não acreditar que a Seleção pode chegar até a final da Copa?"

Jorginho, em 2010, justificando a não convocação de Neymar e Ganso para a Copa do Mundo.

Comparar Neymar e Ganso a Pelé e Garrincha, para mim, foi um absurdo. Mas eu extrapolei, não deveria ter falado daquele jeito. É que houve uma indignação da minha parte, e eu, não querendo deixar que o Dunga explodisse, acabei entrando. Eu tinha que ter falado calmo

Jorginho, lembrando da resposta explosiva que deu na convocação para a Copa de 2010 ao defender as ausências de Neymar e Ganso

AssCom Dourado AssCom Dourado

No Cuiabá, aproveitamento de Libertadores

Jorginho vive grande momento no comando do Cuiabá no Brasileirão. Ele assumiu o time na zona do rebaixamento, sem nenhuma vitória, e em 16 jogos conseguiu seis triunfos, seis empates e só perdeu duas vezes — um aproveitamento de 57%, inferior apenas ao dos três primeiros colocados, Atlético-MG, Palmeiras e Flamengo.

O treinador explicou que sua primeira tarefa foi equilibrar o time. Ele mudou o sistema tático e pediu para os volantes pisarem mais na área adversária, além de insistir em um contra-ataque rápido.

"Está dando certo, isso aconteceu. A equipe melhorou muito nessa situação. A questão do treinador taticamente organizar a equipe é muito importante, mas também essa questão extracampo, daquilo que eu vivi, na seleção ou nos clubes, de trazer para os jogadores que eles têm que vivenciar isso, de entender que eles podem marcar o nome deles na história do clube".

Perguntado sobre a vitória mais marcante, Jorginho cita duas. A primeira do time no Brasileirão, contra a Chapecoense, por 3 a 2: "foi um momento histórico para nós. Tiramos até uma foto lá", conta. E os 2 a 0 sobre o Palmeiras no Allianz Parque.

"O jogo contra o Palmeiras foi muito significativo. O Palmeiras foi o campeão da Libertadores. Eu estava como comentarista, desempregado na época, comentando a final. Então eu acompanhei muito bem, estudei muito aquela equipe, sabia do potencial, como jogava. Foi fundamental para a minha equipe entender a dificuldade que ia ter. Fomos cirúrgicos".

Heuler Andrey/LatinContent via Getty Images

De volta à seleção?

Desde que deixou o cargo de auxiliar de Dunga, após a Copa de 2010, a carreira de Jorginho como treinador teve altos e baixos. Alguns bons trabalhos foram entremeados com passagens rápidas e apagadas por times do futebol brasileiro. Mas ele não pensa duas vezes quando é perguntado se sonha em voltar a trabalhar na seleção.

"Sonho, claro! Desde 2005 eu sou treinador, são 16 anos. Sonho com isso, trabalho para isso, estudo para isso, para chegar a essa condição. Ainda não sou esse cara de ponta por não ter conquistado os títulos e não ter conseguido me manter nos grandes clubes por muito tempo. Mas todos os meus trabalhos que foram bons foram longos".

Jorginho cita como seus melhores trabalhos o América-RJ entre 2005 e 2006, o Figueirense em 2011, o Kashima Antlers, do Japão, em 2012, e a primeira passagem pelo Vasco, entre 2015 e 2016 — seu recorde de permanência em um clube, com um ano e quatro meses. A meta, agora, é quebrar essa marca pelo Cuiabá para consolidar um projeto de longo prazo e alçar voos maiores.

"Sei que o momento vai chegar, vou ter as minhas conquistas. Experiência eu tenho. Foram quatro anos como auxiliar técnico da seleção, oito como jogador. Eu sei muito bem o que o jogador precisa, o treinador, sei muito de seleção brasileira e Copa do Mundo".

Brasil não produz mais craques na lateral direita?

Lucas Figueiredo/CBF

"Não é que não produz mais. Mas nós estamos passando um momento em que a gente não ganhou a Copa do Mundo depois do Cafu. O Cafu mesmo era muito contestado, porque não era um lateral de exímio cruzamento, mas era um jogador diferenciado. O próprio Daniel Alves vem sendo convocado novamente porque está faltando esse atleta"

Lucas Figueiredo/CBF

"Talvez hoje a forma de ocupar os espaços seja outra. O lateral hoje não é mais uma surpresa. Na minha geração e na passada, sempre foi uma surpresa. O Bebeto partia para cima do lateral esquerdo para dentro, para deixar o corredor para eu cruzar. Era muito fácil. Hoje as equipes marcam muito em 30 metros, esse espaço não existe mais"

Lucas Figueiredo/CBF

Conselho pro Neymar? Soltar a bola

Com 57 anos, Jorginho poderia ser pai de Neymar, como ele mesmo disse durante a conversa. E se ele pudesse dar um conselho para o craque da seleção brasileira, esse seria o principal: segurar menos a bola e jogar mais simples.

"Eu não conheço o Neymar, estive com ele pessoalmente uma vez, depois da Copa de 2010. Mas o que a gente percebe é que todos esperam do Neymar uma postura diferente em alguns momentos. Com certeza ele se cuida, não é fácil fazer o que ele está fazendo. Mas algumas coisas eu evitaria. Ele não precisa sustentar tanto uma bola sabendo que o cara vai dar uma porradinha nele. Não precisa. Isso, para o adversário, é como se estivesse provocando. Toca e se apresenta para jogar. Os adversários acham que ele é marrento".

Além disso, Jorginho chamou atenção para outros dois pontos: cuidar mais de sua imagem fora de campo e entender que algumas críticas são construtivas. "Talvez ele fique até chateado comigo vendo essa entrevista", brincou.

"Ele é muito bom. Pensa muito na frente dos outros, é um craque. Ele precisava fazer, com a genialidade dele, o mais simples. E todas as vezes em que ele prende demais a bola, acaba sofrendo faltas desnecessárias. E extracampo, talvez, evitar algumas coisas. Ele é um ídolo, e querendo ou não, um exemplo para muita gente. Crianças se espelham nele. Talvez cuidar mais dessa questão da imagem".

Gil Gomes/AGIF

A morte do pai e o choro

Em um momento da entrevista, Jorginho se emocionou. O tetracampeão não conseguiu segurar o choro ao falar de seu pai, que morreu quando ele tinha 10 anos. Vascaíno, ele não chegou a ver o filho sair da base do América-RJ para vestir a camisa do rival Flamengo.

"Provavelmente no início ele teria um pouco de dificuldade, mas ia se adaptar. Tenho certeza de que depois vestiria a camisa do Flamengo. É sangue, não tem jeito. As pessoas que nós amamos, a gente torce pra onde elas forem".

Jorginho contou que, depois que o pai morreu, a família passou por momentos difíceis. O irmão mais velho, Jaime, começou a beber demais, arrumava briga em casa e ameaçava até agredir a mãe — só largou o álcool quando se converteu, e hoje toda a família é evangélica.

"A morte do meu pai desestruturou muito a família. Por mais que ele fosse um cara muito duro, em alguns momentos até violento, ele mantinha as rédeas, a disciplina. As coisas degringolaram muito, minha mãe passou momentos muito difíceis financeiramente, eu comecei a trabalhar com 11 anos, acordava 4h da manhã para varrer meu prédio com três amigos. Isso me ajudou muito a ter responsabilidade".

"Eu gostaria muito de ver meu pai feliz comigo, me ver jogar, o homem que me tornei. Não tive essa oportunidade".

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