Jogo jogado

João Palomino diz não ter rancor por demissão após 25 anos de ESPN e lamenta briga com ex-chefe José Trajano

Adriano Wilkson e Danilo Lavieri Do UOL, em São Paulo Carine Wallauer/UOL

Como é dizer adeus a um lugar no qual você passou 25 anos de sua vida? Comunicado que não fazia mais parte dos planos da ESPN no dia 14 de agosto, João Palomino preferiu deixar o local sem falar com ninguém. O clima era de velório: além dele, outros nomes como Juca Kfouri e Arnaldo Ribeiro deixavam a emissora.

Uma nota oficial foi sucinta ao afirmar que as mudanças faziam parte de uma reformulação já programada, negando que houvesse crise na emissora. Desde 2014, Palomino era vice-presidente de jornalismo e produção na emissora, após ter atuado por dois anos como diretor de jornalismo, quando substituiu José Trajano, um dos fundadores da ESPN Brasil.

Na conversa que teve com o UOL Esporte, Palomino falou sobre incêndios que teve de apagar na emissora, contou sobre a briga com o ex-chefe Trajano e afirmou que não guarda mágoas após a saída repentina.

"Poderia sair de lá e ficar com aquela coisa melancólica, triste, carregada, reclamona, rancorosa, olhando os defeitos e apontando os defeitos toda hora. Não. Eu apontei os defeitos quando eu estava lá. Eu corrigi os defeitos quando eu estava lá. Eu busquei inovação quando eu estava lá. E continuo assistindo, continuo vendo, só que eu me permito, hoje, ver muito mais outras coisas também".

Carine Wallauer/UOL
Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

"O rancor eu deixo pros rancorosos"

Após uma saída "à francesa", a solução encontrada por ele foi voltar à redação no dia seguinte para um adeus que se transformou em um dos momentos mais emocionantes da vida, sentimento superado apenas pelo nascimento dos filhos.

"Fui longamente aplaudido pelas pessoas e pude falar com elas. Depois, formaram uma fila e um por um veio se despedir de mim, e eu percebi o quanto pude dar oportunidade para que se desenvolvessem. Eu consolei muito mais do que fui consolado. Eu queria agradecer. E as pessoas agradecendo a mim pelas oportunidades que elas tiveram profissionalmente foi muito gratificante".

Por toda a sensação de dever cumprido após 25 anos de ESPN, Palomino repetiu diversas vezes no papo com o UOL Esporte que não tem nenhuma mágoa pela sua saída. Na versão apresentada por ele, a decisão de demissão foi difícil também para quem o demitiu. O jornalista, no entanto, ressaltou que teve como primeira missão se desligar completamente do canal.

"Eu fui para a Disney com a família de férias e precisava fazer uma videoconferência", relembra. "É um trabalho muito desgastante, eu precisava ficar o tempo inteiro de olho na ESPN. Eu disse para eles que não tinha problema algum na demissão. O rancor eu deixo para os rancorosos. Eu não vou sofrer com isso, vou até continuar torcendo. Mas, a partir do momento que eu fui comunicado, meu primeiro desafio, e fiz isso muito rapidamente, foi tirar a ESPN de mim".

Além de conviver mais com seus quatro filhos, Palomino passou a dedicar mais tempo para atividades que antes não conseguia desenvolver. Assistir a séries e cozinhar são as duas preferidas.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Alvo de haters por defender Felipe Neto

A saída da emissora lhe permitiu levantar bandeiras virtuais, algo que não costumava fazer quando estava ligado institucionalmente à ESPN. Quando a prefeitura do Rio de Janeiro censurou uma revista em quadrinhos que mostrava um beijo gay na Bienal do Rio, João Palomino sentiu a necessidade de se pronunciar nas redes sociais sobre o que considerou um atraso civilizatório.

Ele saiu em defesa do youtuber Felipe Neto, que comprou e doou livros com temática LGBT como uma forma de protesto, o que transformou o próprio Palomino em alvo dos "haters" virtuais.

"Eu fiquei horrorizado com a proibição", afirmou o jornalista em relação à postura da prefeitura carioca. "Nós não estamos vivendo isso. O mundo não é pra isso. Precisamos aprender a conviver e não podemos reprimir esse tipo de coisa. Vamos andar por São Paulo para ver como é o mundo hoje! Vamos andar pelo Rio de Janeiro para ver como é o mundo hoje! O mundo é da aceitação, da diversidade, da compreensão, não da raiva, não do ódio."

"Eu quero ensinar isso pros meus filhos. Os meus filhos não vão odiar. Eu quero que eles tenham a liberdade da convivência, que eles se sintam bem em qualquer ambiente. Isso vai mexer com a cabeça deles? Vai mexer com a sexualidade deles? Vai mexer com a preferência deles? Eu quero que seja uma escolha individual. Mas eles precisam saber que o mundo é esse. O que se pretende é mascarar o que está aí, mas não vão mascarar. Não pros meus filhos."

É importante que [as pessoas] tenham posição política, mas saibam os riscos disso também. Em quase oito anos como diretor e vice-presidente, não me posicionei politicamente porque institucionalmente não era conveniente. A ESPN nunca induziu ninguém a ter um pensamento político. A ESPN nunca exigiu, nunca pediu que alguém tivesse algum posicionamento político

João Palomino, sobre manifestações políticas dos funcionários da ESPN

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Velha ESPN x Nova ESPN

Sob a gestão de Palomino, a ESPN precisou passar por uma mudança na sua linha editorial. Tradicionalmente marcada por um jornalismo investigativo, com coberturas de bastidores e denúncias de irregularidades, o canal foi gradativamente acrescentando programas que apresentavam mais entretenimento.

A mudança, inclusive, gerou alguns episódios que resultaram em broncas, demissões e saias justas que precisavam ser contornadas ao vivo, como já contamos em tópicos acima. Mas por que tudo isso aconteceu? Para o jornalista, a resposta é simples: o público manda no conteúdo, que pode misturar perfeitamente informação com diversão.

"O entretenimento pode ser utilizado de modo que você possa chamar a atenção das pessoas, porque você precisa ter mais audiência. O UOL não quer mais clique? A Rede Globo não quer mais audiência? A Folha de S. Paulo não quer vender mais jornal, não quer intensificar o acesso ao site? Também na televisão você precisa ter mais gente assistindo", analisou.

"É possível você dar risada, é possível você falar sério quando é preciso falar. É o que se confunde. Quando você fala assim, parece que é um crime quando você tem um programa bem-humorado. O que acontece é o exagero do bom humor e no exagero do bom humor você tem que agir, estabelecer os limites e isso foi feito rotineiramente."

Lucas Lima/UOL

Não fala mais com Trajano

O ex-diretor Palomino tem até hoje uma situação mal resolvido com um dos fundadores da ESPN no Brasil, o jornalista José Trajano, que foi seu chefe durante 17 anos. Hoje eles não se falam. Em 2012, Trajano deixou a direção do canal, e sua função passou a ser exercida por Palomino.

"Eu só assumiria se o Trajano concordasse. Eu fui leal a ele durante 17 anos e queria ter a sua concordância para assumir a posição. Ele concordou", afirma Palomino. Como comentarista, Trajano teria adotado comportamento irascível nos bastidores e se indisposto com a equipe comandada pelo novo diretor de jornalismo.

Um dos atritos internos aconteceu em 2016, depois que Trajano criticou ao vivo a ESPN por convidar o humorista Danilo Gentili a participar de um programa da casa. O comentarista afirmou que Gentili fazia apologia ao estupro em suas redes sociais e acabou tendo seu contrato encerrado logo depois.

"Nós tivemos que cuidar da equipe do programa, que ficou muito abalada com a crítica", afirma Palomino, ao defender o convite ao humorista do SBT. "Precisamos defender a pluralidade. O Danilo Gentili é um humorista que o programa entendeu ser importante naquele dia, naquele momento. Eu consenti que ele fosse convidado. Essa crítica pesou muito para a equipe, foi discutida internamente e internamente a gente resolveu."

Trajano sempre achou que suas posições políticas pesaram no momento da demissão, o que Palomino nega. Quando o próprio Palomino foi demitido em agosto de 2019, Trajano foi às redes sociais para mandar uma indireta ao "ex-manda chuva" e dizer que "o mundo dá voltas".

"É a posição dele", rebate Palomino. "Lamento que ele tenha se posicionado num momento tão triste para algumas pessoas, mas eu estava tão bem emocionalmente, tão bem resolvido com tudo o que aconteceu que, sinceramente, não me abateu em nada. Não causou mal-estar, não casou estranheza. É a opinião dele. Se existe algum rancor da parte dele, ele tem que resolver com ele mesmo. A mim não vai afetar."

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL
Reprodução

Demissão de Alê Oliveira e Flávio Gomes

Como gestor, Palomino precisou demitir "talentos", o termo usado para se referir às estrelas de uma emissora. Alê Oliveira, que estava havia 18 anos na casa, teria tido o contrato rescindido após brigar com uma maquiadora. Palomino, no entanto, conta que o episódio não influenciou no desligamento do apresentador que hoje está no Esporte Interativo.

Em 2016, Alê causou desconforto no programa Bate Bola ao fazer um "decreto" — quadro de humor que apresentava às sextas-feiras — que gerou acusações de machismo e até pedofilia. "Assistiu o penta? Já aguenta...", disse ele na ocasião, o que rendeu pedido de desculpas do apresentador e da emissora.

"Eu o tirei do programa porque foi um exagero desnecessário. Houve uma sequência de fatores que levaram a essa decisão, que foi uma decisão mútua. Ele tem o estilo dele, tem que ser respeitado e vai assistir quem quiser, quem se sentir confortável. Naquele momento, não era algo que nós queríamos seguir e reformulamos completamente o programa."

Outro comentarista cuja demissão marcou sua passagem foi Flávio Gomes, em 2013. Torcedor da Portuguesa, Flávio trocou ofensas com gremistas no Twitter após uma partida do Campeonato Brasileiro. Palomino precisou ir a público pedir desculpas em nome da emissora, que acabou demitindo o comentarista, decisão que classificou como "muito difícil".

"Não conversei com ele depois disso, mas tenho um enorme respeito pelo Flavinho. Acho que é um baita jornalista, conhece Fórmula 1 como poucos. Naquele momento, houve um exagero e a decisão da empresa foi que ele teria o contrato rescindido. Foi uma sequência de conversas que aconteceram."

Quando o talento vai pro Twitter, pro Instagram, ele é a cara de uma emissora, mesmo que ele diga que aquilo é pessoal. Ele está ligado umbilicalmente à instituição, ao que a instituição acredita. Quando eles falam, o torcedor lê aquele tuíte e associa não à pessoa física, mas ao comentarista daquela empresa

João Palomino, sobre postura nas redes sociais

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Esportes americanos e muito Bate Bola

Com a chegada de concorrentes e a perda de poder de investimento, a ESPN precisou desistir de transmitir alguns campeonatos importantes, como a Liga dos Campeões, por exemplo, e amargou uma queda na audiência em geral. Por outro lado, o canal obteve sucesso ao popularizar alguns esportes americanos que nunca foram tão chamativos por aqui como são hoje em dia.

Foram recordes atrás de recordes com transmissões da NBA, a ponto de patrocinadores organizarem mega eventos em cidades do país para promover o campeonato. Um estudo do Ibope mostrou um aumento de 41% da última temporada em relação à penúltima. O mesmo aconteceu com a NFL, com transmissões que lideraram a audiência e lotou casas de evento para a grande final da modalidade, o Super Bowl.

"Nós triplicamos a audiência média do canal num curto período. Nós conseguimos que a NBA tivesse crescimento de dois dígitos, continuamente. Nós conseguimos fazer com que a NFL se transformasse num evento social. O número de patrocinadores [da NFL] multiplicou por seis, do começo de trabalho brilhante do Rafael Davini, que era o vice-presidente comercial, na junção com o conteúdo. Nós sextuplicamos o número de patrocinadores pra NFL."

Apesar do sucesso nos esportes americanos, não é possível esconder que o brasileiro quer mesmo é saber de futebol. Sem poder transmitir alguns campeonatos, o jeito foi aumentar - para alguns, exagerar - na transmissão de mesas redondas e programas de análise, com maior número possível de repórteres ao vivo, seja na porta do centro de treinamento ou nos portões dos estádios.

"Muitas vezes, você tem de fazer a televisão para as pessoas verem e não a televisão do teu gosto. É isso que tem obrigado muitas das empresas a estenderem os programas de debate. No caso da ESPN, nós fizemos uma tentativa de estender o debate mesmo para que mantivéssemos uma programação ao vivo de 9h a 1h do dia seguinte. As pessoas passam menos tempo na televisão, mas nós precisávamos que a pessoa voltasse mais vezes na televisão. Então, ela não vai ficar as três horas de um Bate Bola. Mas ela vai passar pelo canal algumas vezes, e quando ela passar a gente tem que estar ao vivo, porque esporte é ao vivo, seja em transmissão, seja em programa."

Direitos perdidos

Divulgação

Champions League

Depois de quase 20 anos de transmissão da Liga dos Campeões, a ESPN perdeu os direitos na concorrência para o Esporte Interativo. A solução foi tentar mandar correspondentes para algumas das partidas mais importantes para compensar a ausência do jogo.

AFP PHOTO / VANDERLEI ALMEIDA

Copa do Mundo

Depois de transmitir três copas em sequência, a ESPN não conseguiu comprar os direitos para o Mundial da Rússia de 2018. A solução também foi intensificar a cobertura com especialistas em cada seleção e até um correspondente russo que falava português.

John MacDougall/AFP

Campeonato Alemão

A ESPN perdeu os direitos do Campeonato que consagrou comentaristas como Gerd Wenzel, que era especialista no assunto. A FOX ganhou o direito de transmitir os jogos da Alemanha.

Chris Brunskill/Getty Images

Campeonato Italiano

Em 2012, a ESPN também parou de transmitir o Campeonato Italiano. Palomino virou vice-presidente já sem os direitos deste torneio. Os jogos do Calcio que tinham ido para a FOX, passaram a sumir da TV em 2018, até a entrada da DAZN no mercado digital.

Carine Wallauer/UOL

Acidente da TAM o levou para o esporte

Zagueiro frustrado, Palomino chegou a treinar com o Taquaritinga, time da cidade de mesmo nome no interior de São Paulo. Como jornalista, foi um repórter promissor no SBT e na TV Cultura, e já havia entrevistado figuras como Nelson Mandela, Fidel Castro e o Papa João Paulo 2º, quando um trágico acidente de avião o levou a se dedicar exclusivamente às coberturas esportivas.

"Eu estava na Avenida dos Bandeirantes [na capital paulista] quando o avião caiu", lembra o jornalista, sobre a queda do avião da TAM em Congonhas, que resultou na morte de 99 pessoas. "Os corpos ainda não tinham sido retirados do local. Tinha gente ali, pedaços... O cheiro de querosene era muito forte. A roupa ficou imprestável. O que eu vi lá me deu a certeza que eu queria ir pro esporte."

Como narrador da ESPN, Palomino participou de coberturas marcantes, como a Olimpíada de 2004, em Atenas, quando teve sua voz atrelada ao insólito episódio em que um padre irlandês invadiu a pista para atacar o maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima. "Eu não tinha mais voz, eu não tinha mais cabelo, eu não tinha mais sangue, não tinha mais saliva, não tinha mais nada. Você busca força onde não tem. Participar daquela cobertura foi espetacular."

Depois de ter se acostumado a uma função mais burocrática na empresa, o jornalista hoje alimenta o desejo de reviver momentos como o daquele dia na Grécia. "Eu preciso trabalhar com projetos que sejam instigantes e sejam prazerosos. Talvez eu encontre isso muito mais com apresentação e narração do que com coordenação de uma equipe, mas não desconsidero coordenador uma equipe também."

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

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