As donas da bola

O UOL conta histórias de superação de quatro mulheres unidas por um sonho: o de ser jogadora de futebol

Brenda Mendes Do UOL, em São Paulo Van Campos

Mundialmente conhecido como o país do futebol, terra do Rei Pelé e da Rainha Marta —seis vezes melhor jogadora do mundo e maior artilheira em copas do mundo—, o Brasil ainda engatinha quando o assunto é futebol feminino.

Em pensar que até 1979, quando o Brasil já era tricampeão mundial entre os homens, as mulheres ainda eram proibidas de jogar futebol. De lá pra cá, muita coisa mudou, mas as disparidades ainda são visíveis. Um exemplo é a diária que a CBF paga a homens e mulheres convocados para seleção. Em 2018, os meninos recebiam R$ 1.600 reais, seis vezes que as meninas, cuja diária era de R$ 250. Na Copa do Mundo em 2019, Marta chegou protestar em campo para pedir equiparação salarial, mas a Confederação Brasileira de Futebol só anunciou diárias iguais em março deste ano.

Além disso, as mulheres enfrentam desafios diários como falta de dinheiro, precariedade dos clubes e falta de visibilidade na mídia à modalidade.

Mas nada disso afasta muitas meninas do sonho de ser jogadora profissional, afinal, assim como no masculino, o esporte ainda é um dos caminhos para ascender socialmente. O UOL Esporte conta agora histórias de quatro mulheres que enfrentam machismo, homofobia, falta de prestígio, condições precárias, mas não desistem de, assim como a Marta, escrever seu nome no planeta bola.

Van Campos
Arquivo pessoal

A tal da "Mini Marta"

Nascida em Piedade, no interior de São Paulo, Ketlyn Salomão, de 25 anos, sempre sonhou ser jogadora de futebol. Chegou a jogar profissionalmente em um time da capital paulista, mas por pouco a história não foi diferente. Ketlyn superou um pós-operatório complicado após a retirada de um nódulo no seio e sobreviveu a um grave acidente de moto, sem nunca deixou de acreditar no seu sonho.

A jovem deu os primeiros dribles com os garotos vizinhança, na rua mesmo, e na quadra da escola, que tinha o piso esburacado e as traves tortas. Cobertura então, era um luxo. Apesar de toda precariedade e das bolas murchas disponíveis para as crianças, a garota se apaixonou e se destacou.

Com muita habilidade nos pés, personalidade marcante e jeito brincalhão e extrovertido, a atacante ganhou o apelido de "Mini Marta" e defendeu a seleção de futsal de Piedade por muitos anos.

Quando tinha 17 anos, entretanto, sua história fez uma curva e ela se separou pela primeira vez da bola. A atleta descobriu um nódulo benigno no seio e teve que ser submetida a uma cirurgia. A parte mais difícil, diz ela, foi a psicológica, pois o medo de não voltar a fazer o que tanto ama tomava conta de sua mente. A cirurgia durou três horas, e o nódulo não afetou a estrutura de seu seio. O pós-operatório, por outro lado, a obrigou a ficar seis meses afastada da bola.

"Acreditei que iria morrer": acidente quase tira a vida de "Mini Marta"

Como se não bastassem o medo, a cirurgia e recuperação demorada, Ketlyn ainda teria de enfrentar outra provação na sua trajetória. Quando tinha 19 anos, a atacante foi vítima de um acidente de moto quando pilotava para encontrar os amigos em uma festa perto de Piedade. O relógio marcava perto das 22h, quando a jovem viu os faróis de duas motos que disputavam um racha vindo na direção oposta.

No reflexo, a jovem jogou sua moto para fora da pista e caiu a poucos metros de um precipício. Uma das pernas ficou prensa embaixo do veículo e a outra queimou no escapamento. Com a força do impacto, a jovem teve uma costela quebrada, uma clavícula trincada e inúmeras lesões nas pernas, que geraram a hipótese de uma trombose, interrompendo mais uma vez a carreira da jogadora de futsal da seleção de Piedade.

Na hora que veio a luz forte, acreditei que iria morrer. Quando acordei e vi que estava tudo bem, a primeira coisa que fiz foi agradecer. Não consegui ver a perna, porque estava de calça. Levantei e senti muita dor".

Arquivo pessoal

Corrida para a volta ao futebol

Mas as dificuldades pelas quais passou não fizeram Ketlyn desistir do seu sonho. Ela voltou a treinar e, aos 24 anos, enfrentou mais outro obstáculo: uma seletiva de dois dias com mais de 300 garotas para jogar profissionalmente no Nacional, time da capital paulista. A atacante jogou bem, mas os gols não foram suficientes para ser aprovada.

O teste final era uma corrida de cinquenta minutos. Quem parasse estaria fora da equipe. Aquele era o momento de sua vida. Mesmo cansada e sem fôlego, ela continuou, e seu esforço foi compensado. O técnico reconheceu a determinação que a guiava e disse era isso que estava procurando para o time.

"Nem acredito que fui capaz de conquistar meu objetivo. Eu não sabia que era capaz, vi que posso conquistar tudo, só depende de mim".

A atleta já se desligou do Nacional e atualmente procura oportunidade para continuar a fazer o que tanto ama.

Van Campos Van Campos

Dormindo na moto para conquistar o sonho

Em uma rua sem saída, na cidade de Votorantim, interior de São Paulo, nasceu a paixão de Lauren Leal (foto acima) pelo futebol. O esporte foi um dos responsáveis para a socialização da garota, que era muito introspectiva e tímida na infância.

Foi em um projeto da prefeitura em um campo ruim, com grama apenas nas laterais, que Lauren começou a se encontrar. Quando ela tinha 12 anos, o pai, Alex Leal, pesquisou sobre peneiras e encontrou uma oportunidade para a filha no Centro Olímpico do Ibirapuera, na capital paulista. Lauren foi a única entre 100 jogadoras a passar no teste.

Além da habilidade da garota, o apoio e esforço do pai foram fundamentais para que ela despontasse como uma das melhores jogadoras do Centro Olímpico. A distância entre a casa de Lauren e o Cento Olímpico era de 111 quilômetros. No primeiro ano, o pai dela, Alex, a levava duas vezes por semana para treinar na capital. Conforme Lauren ia subindo de categoria, os treinos se intensificavam e as viagens de moto entre as duas cidades passaram a ser feitas diariamente.

Conciliar a escola, os treinos e as viagens diárias não era fácil. O cansaço em pai e filha era inevitável, e não era raro que a garota acabasse dormindo na garupa da moto. Lauren acordava às 6h e, muitas vezes, só voltava para a casa depois da meia-noite. O pai, por sua vez, tinha que levar a filha para a cidade de São Paulo sem nem mesmo dormir depois de trabalhar a noite toda.

Tiveram algumas situações de discutir porque ela dormia na moto de cansaço. Eu brigava, mas ficava com o coração na mão, porque entendia. Se caíssemos da moto podíamos sofrer um acidente grave, mas eu não tinha condição de levá-la de outro jeito.

Alex Leal, pai de Lauren

Tinha o cansaço de acordar cedo e o cansaço do treino, era o dia inteiro fora de casa. O barulho da estrada acabava hipnotizando e eu acabava pegando no sono. Sabia que era perigoso, mas ficava muito cansada.

Lauren

Van Campos

Dificuldades financeiras batem à porta

No Centro Olímpico, não há ajuda de custo às jogadoras, então, além da distância, a parte financeira pesava muito para a família. O gasto mensal com a moto era de R$ 1.000 e, a cada quarenta dias, Alex precisava trocar os pneus. O pai, que recebia pouco mais de um salário mínimo mensal para guinchar carros em rodovias, e a mãe, que trabalhava no shopping, não tinham recursos para bancar as idas diárias para São Paulo. Eles chegaram a pedir ajuda para vizinhos e comerciantes da cidade, atrasaram as contas da casa e penduraram dívidas no cartão — tudo para manter aceso o sonho da filha.

As coisas começaram a mudar quando o São Paulo fez uma parceria com o Centro Olímpico dois anos depois. As jogadoras do clube passaram a atuar com a camisa do Tricolor. A zagueira Lauren se destacou e foi jogar na base do São Paulo, ganhando ajuda de custo, inicialmente, de R$ 300 por mês.

Nos cinco anos de base (dois no Centro Olímpico e três no São Paulo), ela foi tricampeã paulista, bicampeã brasileira e ganhou uma Libertadores, vestindo a braçadeira de capitã. Além de brilhar no clube paulista, Lauren foi convocada pela seleção brasileira e vestiu a amarelinha no ciclo sub-17 inteiro, conquistando uma Copa Sul-Americana (foto abaixo).

No ano passado, aos 17 anos, a votorantinense foi promovida à equipe principal do São Paulo. Mesmo com pouca idade, a zagueira já atuou em clássicos e finais de campeonato como titular, conquistando seu espaço no futebol. Com o dinheiro que recebe, ela ajuda os pais e, recentemente, os presenteou uma cama e um sofá, que significaram muito mais que apenas o valor material dos bens.

Na hora eu chorei. Eu estava em um posto de gasolina à serviço e, depois do telefonema, eu gritei para todos os amigos do posto e eles gritaram junto comigo. 'Minha filha foi convocada, minha filha foi convocada', eu repetia.

Alex Leal, sobre a convocação da filha para a seleção brasileira

Eu pensava:'você está no CT da seleção brasileira, você está vivendo isso'. Sempre penso em quantas meninas não queriam estar vivendo esse momento. É uma emoção entrar em campo com a amarelinha e cantar o hino nacional."

Lauren, sobre vestir a camisa da seleção brasileira

Quero disputar uma Champions, uma La Liga. Tenho sonho de estar entre as melhores do mundo, disputar as principais ligas e vencê-las. Eu quero estar feliz onde eu estou jogando, mas com certeza quero deixar minha marca, quero fazer história".

Lauren, sobre as projeções para o futuro

Arquivo pessoal Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Conexão Jundiaí-Chicago

Aos 19 anos, a moradora de Jundiaí, no interior de São Paulo, Julia Segatto tem pela frente uma oportunidade que poucas aspirantes a jogadoras de futebol têm: jogar nos Estados Unidos. Diferentemente do Brasil, na Terra do Tio Sam, as meninas são incentivadas a jogar futebol desde muito novas. O país investe muito nas categorias de base e no futebol universitário, concedendo bolsas de estudo às melhores jogadoras. Não é à toa que o país é tetra-campeão do mundo e tem quatro medalhas de ouro olímpicas na modalidade.

Por conhecer a realidade do futebol daqui, a atacante, que começou a jogar no colégio, treinou em escolinhas de futebol e atuou em times de várzea, procurou uma academia preparatória de futebol para intercâmbio a fim de realizar o sonho de ser jogadora de futebol.

Em jogos que realizou na Next Academy, Julia reuniu bons lances e gols para produzir seu vídeo de apresentação para se candidatar a uma universidade norte-americana. As três opções de entrada responderam positivamente, só faltava uma coisa: passar no TOEFL, a temida prova de inglês.

A atacante conseguiu e foi aprovada em três faculdades, com 100% de bolsa. Ela escolheu a Universidade de Chicago, sua primeira opção e agora espera a aprovação de seu visto para embarcar e viver seu sonho de jogar em uma universidade dos EUA.

Quando mandei os e-mails das notas para os técnicos nem consegui dormir de tanta ansiedade. Para entrar nas universidades, precisava tirar 61. Não fui tão bem na prova, mas consegui 73/120. A nota demorou para sair, mas quando saiu, foi uma gritaria. Meus pais ficaram muito felizes."

Julia Segatto

O que eu quero mesmo é jogar no melhor time do mundo. Quero estar num time que ganhe tudo. Atualmente, é o Lyon da França o melhor time. É o que eu sonho no momento. Eu quero representar. Até sonho com seleção brasileira, mas meu maior objetivo é jogar no Lyon.

Julia Segatto

Homofobia no futebol

Larissa Brito, de 23 anos, viu de perto a discrepância entre o tratamento dado aos meninos e às meninas que sonham em jogar futebol profissionalmente e ainda foi vítima de homofobia, simplesmente por praticar o esporte. Moradora da zona leste de São Paulo, a jovem conheceu o esporte na quadra do seu condomínio no bairro Artur Alvim. E foi jogando com os meninos, aos 13 anos, que sentiu a descriminação na pele.

Da janela dos seus apartamentos, duas vizinhas gritaram xingamentos homofóbicos para a garota, que não revidou na hora, mas ficou abalada e contou o episódio para a mãe. A mulher decidiu processar as vizinhas, que foram condenadas pelo crime de homofobia.

Isso [homofobia] me atrapalhou bastante, mexeu comigo. Como eu joguei sempre no meu bairro, sempre fui uma menina que gostava de coisas de meninos e sempre andei com eles. Depois disso, pensei 'vou parar com tudo que eu estou fazendo e tentar ser do jeito politicamente certo para uma menina, o jeito que todo mundo está falando que é'. Por isso fiquei sem jogar durante dois anos, eu não ia para a quadra, eu não queria nem ouvir falar".

Arquivo pessoal

Difícil decisão

Após dois anos afastada da bola, Larissa voltou a jogar e, aos 15 anos, depois de uma peneira no Centro Olímpico, recebeu uma proposta do Corinthians. No clube, no qual ficou por dois anos, conseguiu conciliar o esporte e a escola, até que passou no teste para integrar a equipe principal. Mas para realizar o sonho de ser jogadora profissional, precisaria abandonar os estudos, não havia condições de manter as duas coisas. Decidida, ela começou no curso de educação física.

"Foi uma decisão difícil, doeu muito falar não para o futebol. É algo que eu sabia que estava chegando, mas eu não queria falar não. Eu via que tinha condições, mas era escolher um ou outro, os dois não dava para continuar. A questão financeira influenciou bastante a minha decisão", disse a lateral.

Apesar de escolher educação física, Larissa não abandonou o futebol inteiramente. Ela ainda teve oportunidades nos times profissionais da Portuguesa e do Rio Branco e, ao mesmo tempo, se dedicava ao Vila Guarani, equipe da faculdade UniSant'Anna, onde estudava. Na Lusa, mais uma desilusão com a modalidade: enquanto ela ganhava R$ 250 mensais no adulto, os meninos da base recebiam mais de R$ 1.000.

Por essas, Larissa não se arrepende de ter abandonado o futebol. "Eu amo o que eu faço. Eu gosto de aprender com meus alunos, 99% do meu público são idosos, então, eu aprendo muito com eles. Falam que é difícil, mas você ganha uma experiência fora de série. Trabalhar com idosos e crianças é uma coisa muito diferente. Eu amo".

Dificuldades começam nas categorias de base

Nos últimos anos, o futebol brasileiro feminino tem crescido exponencialmente, mas ainda engatinha na comparação com masculino, em termos de competições e financiamento. Boa parte desse crescimento se deve à decisão da CBF que, em 2019, acompanhou a Confederação Sul-Americana de Futebol e obrigou os clubes da Série A do Brasileiro a manter uma equipe feminina adulta, uma de base e disputar ao menos um campeonato oficial.

Apesar do incentivo para que times grandes invistam nas meninas, os clubes menores ainda sofrem com as dificuldades financeiras. "Alguns clubes tiveram de montar equipes por conta da obrigatoriedade proveniente da Conmebol e CBF. Porém, para nós, do Centro Olímpico, nada mudou nesse sentido. Continuamos tendo as mesmas dificuldades de remuneração dos nossos professores, sendo que dos sete membros da comissão técnica, apenas dois são remunerados pela Prefeitura de São Paulo. Os outros são voluntários", diz Rodrigo Coelho, diretor de futebol do tradicional Centro Olímpico, no Ibirapuera, na zona sul de São Paulo.

"Hoje, no Brasil, temos meninos de 16 anos já com contratos profissionais, recebendo R$ 30 mil por mês. No feminino, são pouquíssimos os times de base que conseguem pagar um salário para suas atletas. No Estado de São Paulo, apenas Corinthians e São Paulo conseguem manter grupos de, mais ou menos, 30 atletas sendo remuneradas. No masculino, as comissões técnicas recebem um salário de três a cinco vezes maior que no feminino", sintetiza Coelho.

A torcida é para o crescimento da modalidade. Afinal, estereótipos, como o que diz que futebol é violento demais para as mulheres, e que embasaram a lei que proibiu a prática entre 1941 e 1979, já caíram por terra. Craques da bola como Marta, Cristiane, Formiga, Sissi e companhia, já provaram há muito tempo que futebol é sim coisa de mulher.

Raphaella Salomão

Artilheiras

As histórias que compõem essa reportagem fazem parte do livro-reportagem "Artilheiras". Com perfis de diferentes jogadoras, a obra retrata as realidades do futebol feminino no Brasil, abordando questões sociais, machismo, homofobia e a busca pelo sonho. Este projeto foi um Trabalho de Conclusão de Curso da Faculdade Cásper Líbero, escrito pela jornalista Brenda Mendes com orientação do professor doutor Rodrigo Ratier.

+ Especiais

Laura Zago/ CBF

"Brasil abraçou a mudança", diz técnica da seleção sobre mulheres no futebol

Ler mais
ACERVO/Gazeta Press

A trágica e anônima morte do boxeador que foi técnico do Corinthians

Ler mais
Arte UOL

Bolsonaro usa camisas de mais de 80 times para ganhar popularidade

Ler mais
Marcos de Lima

Há 40 anos, mundo perdia Nelson Rodrigues, primeiro a chamar Pelé de "Rei"

Ler mais
Topo