Uma luta constante

Lewis Hamilton foi o 1º piloto negro a correr na F-1. Quase 13 anos depois da estreia histórica, pouco mudou

José Edgar de Matos e Julianne Cerasoli Do UOL, em São Paulo Mark Thompson/Getty Images

Lá se vão quase 13 anos desde que um inglês de origem simples se tornava o primeiro piloto negro a disputar uma corrida de Fórmula 1. Mais do que isso: de lá para cá, Lewis Hamilton colecionou 83 vitórias e seis títulos mundiais, ficando atrás apenas dos números de Michael Schumacher, feito que o colocou entre um dos maiores da história do esporte.

Ao seu redor, no entanto, pouco mudou. Hamilton segue cercado de dirigentes e pilotos brancos (com exceção do asiático Alex Albon, também inglês de nascimento). Nas categorias de base de acesso à F-1, não há nenhum jovem talento negro despontando.

Ainda que a presença de Lewis tenha colaborado para algum aumento da representatividade nas arquibancadas - dificilmente se vê torcedores negros nas arquibancadas que não estejam com roupas e acessórios alusivos à equipe Mercedes ou ao seu piloto inglês. Porém a diversidade não se estendeu para as pistas.

Nada disso é por acaso, explicou o inglês em entrevista exclusiva ao UOL Esporte antes do GP do Brasil, no mês em que o país celebra o Dia da Consciência Negra. Em vez de usar a presença de Hamilton para promover uma democratização real do automobilismo, o circuito tem se tornado cada vez mais restritivo, devido à crescente profissionalização do kartismo — e, com ela, o aumento de custos.

"O que gosto é ter famílias de diferentes etnias vindo até mim e dizendo que querem ser pilotos. O problema é que sempre fica mais caro. No mundo de hoje, eu não teria nenhuma chance de chegar à F-1 com o dinheiro que tínhamos, uma família de classe média. O esporte está indo para a direção errada, eu acho", comentou o piloto de 34 anos.

Dave M. Benett/Getty Images Dave M. Benett/Getty Images

"Tínhamos que ser perfeitos. Éramos a única família negra no esporte"

Hamilton e seu pai, Anthony, costumavam percorrer a Inglaterra carregando um kart de segunda mão para as competições. O rendimento do garoto nas corridas, mesmo com equipamento inferior aos demais, acabou chamando a atenção da McLaren, que o contratou para fazer parte do programa de jovens pilotos da equipe em 1997, quando ele tinha 12 anos. Sem este suporte, o hoje hexacampeão do mundo teria desistido da carreira na F-1.

"Não há ninguém surgindo com uma trajetória parecida com a minha. Até porque, se estivéssemos começando agora, não teríamos conseguido. Hoje se gasta 300 mil libras [R$ 1,6 milhão] logo nos primeiros anos de kart, e a gente não tinha tanto dinheiro. Nossa casa não valia nem perto desse valor, e meu pai teve que refinanciar nosso apartamento umas duas ou três vezes, e ele valia 40, 50 mil libras [cerca de 250 mil reais]", lembra o inglês.

O pai do piloto da Mercedes chegou a ter três empregos para sustentar a família e a carreira do filho. "Acho que hoje em dia é mais difícil, porque correr se tornou mais caro. Isso é algo em que eu realmente quero me envolver, junto da FIA, pois acho que é um grande problema."

Além da barreira financeira, Hamilton enfrentou desde cedo o racismo. Seus rivais usavam a cor de sua pele para tentar atingi-lo, diziam que "seu lugar não era nas pistas". O preconceito colocou uma pressão extra sobre ele, o pai e toda a família. Isso ainda na infância e na pré-adolescência.

"Eu e meu pai tínhamos uma preocupação constante em relação à vaga no programa de pilotos da McLaren. A todo momento achávamos que poderíamos perder aquilo. Meu pai passava horas em contato com eles para se certificar de que estávamos fazendo tudo o que eles queriam de nós. Nós tínhamos que ser 100% perfeitos. Éramos a única família negra no esporte. Por um lado, estávamos agradecidos por termos conseguido o apoio financeiro; por outro, sabíamos que tínhamos que arrasar em todos os finais de semana."

Na segunda temporada de Hamilton na F-1, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) teve de lançar a campanha "Corrida contra o Racismo" durante o GP da Espanha para tentar coibir os constantes ataques racistas dirigidos ao piloto.

No final das contas, é uma questão de educação. É algo que vem de muito tempo. Não ando na rua e penso 'essa pessoa é racista'. Não sei o que cada uma das pessoas sente

Hamilton

História apagada

Durante algum tempo em sua carreira, Hamilton evitou abordar temas como identidade negra e racismo. Perguntas direcionadas a preconceito e diversidade na F-1 eram desestimuladas em seus encontros com a imprensa. Mas isso mudou com o amadurecimento do inglês.

Em um texto para a BBC, em 2014, o piloto afirmou: "Quando comecei na Fórmula 1, tentei ignorar o fato de que eu era o primeiro cara negro a correr no esporte. Mas, à medida em que fiquei mais velho, comecei a dar valor às implicações disso. É um sentimento muito legal ser a primeira pessoa a derrubar uma barreira - assim como as irmãs Williams fizeram no tênis ou o Tiger Woods, no golfe."

A mudança em sua abordagem trouxe reflexões sobre o mundo hoje, sobre ancestralidade e a educação que recebeu quando criança. Ele cita, por exemplo, o acesso limitado que teve de informações sobre episódios marcantes na História, como a diáspora africana, e até a história de seus próprios antepassados.

"Lembro de estar na escola, na Inglaterra, e me contarem de como vencemos a Segunda Guerra Mundial. Aprendi que foi uma guerra branca, nunca me falaram que havia minorias envolvidas - asiáticos, negros. Nunca soube que pessoas da minha origem também tinham feito parte daquilo."

"Também nunca aprendi nada sobre escravidão, sobre a história dos negros ou mesmo sobre como minha família foi parar na Inglaterra. Imagino que seja o mesmo caso em outros lugares do mundo. Por isso acho que a educação é peça central nisso. Em relação ao que eu posso fazer, não acho que há muito além de pressionar para que isso melhore. É um grande desafio", diz.

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Mais do que um atleta

Lewis Hamilton usa as redes e seu poder de alcance para promover discussões sociais que vão além do racismo. O britânico se tornou um defensor ferrenho dos direitos dos animais e mudou a própria dieta para reforçar esta posição. O piloto britânico quer deixar exemplos mais relevantes para o mundo para além das vitórias na categoria máxima do automobilismo.

"Ainda estou trabalhando minha história e meu legado, mas não quero ser apenas um atleta. Quero quem sabe um dia ter um impacto de um Michael Jordan, um LeBron James, um Muhammad Ali ou de um Senna. Senna era muito mais do que um piloto, é um símbolo de esperança para o Brasil. Eu amo isso. Quero ser isso para alguém, sabe?"

"É poderosa a mensagem que podemos passar para as pessoas. Você nesta posição pode dar esperança para as pessoas. O fato é que todo mundo pode lutar por algo e passar uma mensagem. Pelas pessoas que estão comigo nesta jornada, vou continuar", completa o hexacampeão que se comunica a cada postagem no Instagram com mais de 13,6 milhões de pessoas.

O poder das redes sociais

Hamilton mira nas crianças

Neste propósito de ser "mais do que um atleta", o principal alvo de Hamilton são as crianças. A bandeira da educação é erguida pelo hexacampeão mundial fora das pistas e divide protagonismo em sua luta pelo meio ambiente e um mundo mais sustentável.

"Elas são o futuro", resume o britânico, que semana passada, antes do GP Brasil, recebeu crianças auxiliadas pela fundação Gol de Letra, organização do tetracampeão Raí. Durante o evento da Petronas, uma das patrocinadoras da equipe Mercedes, Hamilton conheceu o projeto e entregou um presente simbólico para o grupo de crianças que o acompanharam ao lado do dirigente são-paulino.

"Quero ter um impacto positivo, mas não somente para os pilotos. Mas para a sociedade. Eu quero ter um programa para as crianças terem esperança, algo que as motivem, envolvendo governos ou organizações para incentivar a educação. As crianças merecem ter uma grande educação para serem engenheiras ou o que elas desejarem ser."

Nelson Mandela é meu grande ídolo neste sentido, um homem incrível. Li os seus livros, tive a sorte de conhecê-lo. É incrível a força que tinha dentro de si, passando por um momento tão difícil antes de liderar uma nação

Lewis Hamilton, sobre seu ídolo

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

FIA deveria se preocupar com a educação dos pilotos

Hamilton é filho de mãe inglesa e pai de origem caribenha. Seu avô emigrou de Granada na década de 1950, mas grande parte de sua família continua na ilha de pouco mais de 5 milhões de habitantes. Nascido e criado em Stevenage, cidade industrial ao norte de Londres, Hamilton conta ter sofrido bullying na escola. Muitas vezes, ele era colocado para fora da sala de aula simplesmente por ter faltado para disputar corridas de kart.

Disléxico, Lewis tinha dificuldade em aprender e foi, cada vez mais, transformando o kart em sua válvula de escape. Mesmo que sua história tenha sido de sucesso no final das contas, não é de se estranhar que o inglês se preocupe com a questão da educação dos jovens pilotos.

"Correr está ficando cada vez mais caro e as crianças estão perdendo cada vez mais tempo de escola. Não acho que a FIA está se preocupando com o fato de muitas crianças não estarem terminando a escola para focarem no automobilismo. E também não acho que eles se importam se os caras que estão chegando vêm de famílias ricas ou não, mas acredito que seja muito importante que haja diversidade", reclama.

O hexacampeão defende que a própria federação não aceite pilotos que estejam sacrificando sua educação em busca de uma carreira no automobilismo. "Gosto do que a Fórmula E faz, da corrida ser só no sábado e domingo. Acho que deveriam fazer o mesmo com o kart [para que as crianças não percam dias de aula]", opina.

"Não acho que a FIA ou a CIK (Comissão Internacional de Kartismo) deveriam dar permissão para crianças que não estejam em dia na escola competirem. Eles não vão ficar felizes em me ouvir falando isso, mas acho que o automobilismo pode ter um impacto positivo nessa direção", defende.

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