Terra em transe

Contra o Boca Juniors na Libertadores, Paysandu deixou sua cidade eufórica para seu jogo mais importante

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Antonio Gauderio/Folhapress

Semana passada recebi o vídeo de um homem nos minutos seguintes de sua alta hospitalar após se recuperar da covid-19. Sentado em uma cadeira de rodas, ele é empurrado por uma funcionária do hospital enquanto a voz feminina que sai de trás do celular chora e diz: "Meu pai, o senhor venceu, o senhor venceu."

O homem acena para outros funcionários que o aplaudem, mas não conseguimos ver seu rosto porque ele usa uma máscara. Também veste uma camiseta do Paysandu e traz uma bandeira do clube presa às costas. É uma imagem que conta uma história.

Em 2003, em uma época que hoje parece a antiguidade, o Paysandu se preparava para jogar contra o Boca Juniors na volta das oitavas de final da Copa Libertadores, em Belém.

O jogo de ida no estádio da Bombonera lotado, duas semanas antes, havia terminado 1 a 0 pros visitantes. Eram tempos muito diferentes. Um time paraense, sem nenhuma tradição internacional, podia disputar uma Libertadores e podia vencer um dos gigantes do continente. E as pessoas podiam se aglomerar para ver um jogo de futebol sem medo de morrer sem atendimento médico.

Naquela noite, milhares de torcedores ocuparam as duas vias da Av. Visconde de Souza Franco, a Doca, uma rua cortada ao meio por um canal que deságua na Baía do Guajará, e soltaram fogos de artifício madrugada adentro, explosões que incomodaram apenas a outra metade da cidade que torcia pelo time rival, o Clube do Remo.

Mas a euforia na vitória vista pela TV não se compararia àquela vivida pela cidade no dia 15 de maio de 2003. Há exatos 17 anos, cerca de 60 mil pessoas se apertaram nas arquibancadas do estádio Mangueirão para empurrar o único time do Norte do país a participar da Libertadores. O pai que venceu a covid-19 aí em cima era uma delas. Eu era outra.

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Naquele dia, motoristas e cobradores de Belém fizeram uma greve de ônibus, o que obrigou milhares de torcedores a improvisar para chegar ao Mangueirão, estádio distante cerca de 15 km do centro da cidade.

Muitos foram na boleia de caminhões e picapes; outros foram de charrete ou empurrados em carrinhos de mão. Mas a maioria resolveu ir a pé, em uma procissão de fé e cantoria que lembrava uma espécie de Círio de Nazaré pagão, no qual os devotos adoravam o deus Iarley, autor do gol da vitória na Bomboneira.

O atacante Robson, o "Robgol", suspenso pois expulso no jogo de ida, foi ao estádio a pé, no meio da torcida. Chegou com 15 minutos de bola rolando. "Era tanto tumulto na cidade e o estádio estava tão lotado que eu cheguei atrasado e vi o jogo todo em pé, porque não tinha como sentar nas cadeiras", lembra ele hoje.

Eu tinha 14 anos e minha família tinha um carro. Depois de horas presos no trânsito, nos acomodamos em um setor da arquibancada que fica atrás de uma das traves. Eu já tinha ido ao Mangueirão e ao estádio da Curuzu antes, sempre levado por um tio e, às vezes, pelo meu avô, que me ensinou o hábito de ver os jogos do Paysandu com um radinho de pilha colado na orelha.

A Curuzu, o campo mais antigo da cidade que fica a 20 minutos a pé de onde morava, é o estádio que eu mais frequentei na vida. A torcida fica muito perto do gramado. Se ele não fosse cercado por um alambrado, seria possível esticar o braço e tocar nos reservas se aquecendo.

Fernando Torres/Paysandu Fernando Torres/Paysandu

Ver um jogo lá é como morar em uma vila de interior em que todos se conhecem e todos podem lembrar de uma história que viveram em comum. Se você estiver na arquibancada e forçar a vista, é possível identificar um amigo ou um parente sentado nas cadeiras do lado oposto.

Já a suntuosidade do Mangueirão, reservado principalmente a clássicos e jogos nacionais, sempre me impressionou quando criança. Eu morria de medo de me perder na multidão e nunca mais conseguir voltar pra casa. Com o tempo, o próprio estádio se tornou um tipo de casa.

O futebol é uma metáfora da guerra, e estádios como o Mangueirão ensinam isso em dia de clássico, quando cada torcida tenta gritar mais alto pra fazer seu time derrotar o time rival. Eu fecho os olhos e consigo lembrar das sensações.

Eu lembro da fração de segundo entre o gol rival e o som de explosão que vem da arquibancada oposta, recebido com um silêncio cheio de medo e decepção. Lembro do hálito de cerveja do desconhecido ao lado, que não para de xingar o técnico e os jogadores do próprio time, mesmo quando estamos ganhando. Lembro dos abraços anônimos na hora do gol, dos bandeirões e sinalizadores, da urina despejada em qualquer canto porque o banheiro é muito distante; do gosto do churrasco servido por ambulantes que manejam dezenas de quilos de carne com a mão nua; do balde de farofa grátis de acompanhamento e da colher de plástico compartilhada por todos os clientes.

Em estádios de futebol é praticamente impossível manter etiqueta respiratória e distanciamento social, mas isso nunca foi um grande problema. Hoje é. Não impressiona a notícia de que o jogo entre Atalanta e Valência, pela Liga dos Campeões em fevereiro, foi responsável pela explosão de contágios na Itália e por levar o novo coronavírus para a Espanha.

Fernando Torres/Paysandu Fernando Torres/Paysandu

Estou há dois meses em casa, em São Paulo, saindo uma vez por semana ao mercado, e me pergunto se um dia voltaremos a viver as sensações que sempre vivemos em estádios de futebol. Sessenta mil pessoas juntas, apertadas, gritando, compartilhando gotículas de saliva e micróbios voadores: se existe uma receita para o apocalipse viral que nos ameaça, ela deve começar com isso.

E ao mesmo tempo: será que conseguiremos viver em um mundo onde não é possível ver futebol coletivamente, sem medo?

Encontrei no Youtube o Paysandu x Boca Juniors completo. O único vídeo disponível online tem a narração argentina da Fox Sports. Os primeiros minutos são uma amostra de como o futebol talvez seja o maior espetáculo coletivo que inventamos.

"Eu nunca vi isso. Os grandes já estão acostumados... Corinthians, Flamengo, São Paulo, Boca, River... mas isso...", solta o estupefato narrador argentino Mariano Closs na entrada dos times no gramado.

"Sinceramente, fazia tempo que não sentia isso na minha pele. Na presença de um estádio repleto de torcedores de uma só equipe, cantando em cada momento, em cada segundo. Te digo por mim, eu estou assombrado. Quase com vontade de deixar o microfone e me somar aos espectadores. Isso sentimos na pele. É impressionante."

Duas vezes durante a transmissão, Closs reclamou de não poder ouvir seus colegas na cabine, abafados pelo grito da torcida.

Será que essa foi última vez que a cidade foi feliz de fato?

Tarso Sarraf Tarso Sarraf

As expectativas eram altas porque, além de ter vencido o jogo de ida, o Paysandu estava invicto na Libertadores e tinha se classificado em primeiro de seu grupo, enquanto o Boca havia sido o segundo colocado no seu. Era quase irrelevante que o Boca já tivesse quatro títulos da Libertadores, enquanto o Paysandu vivia sua primeira experiência internacional.

Mas o time estava desfalcado por causa de duas expulsões em Buenos Aires. Pelo Boca, jogaram Carlos Tévez e Pato Abbondazieri, que marcariam época na seleção argentina. Os visitantes inauguraram o placar, mas o Paysandu empatou no segundo tempo, com um gol de Lecheva. Mesmo com o empate que lhe daria a classificação, a equipe, confiante, manteve a pressão no ataque, em busca da virada. Mas o sonho continental paraense acabou em menos de 15 minutos no segundo tempo.

Em um contra-ataque, o Boca fez 2 a 1. Em dois pênaltis bobos em sequência, fez 3 a 1 e 4 a 1. O Paysandu teve ainda outros dois jogadores expulsos, entre eles o capitão Sandro, que perdeu a cabeça e chutou a canela de um argentino que o havia driblado.

Uma cena me vem à mente e eu já não sei se eu a vivi de fato ou se é memória construída. Com 4 a 1 no placar, uma parte da torcida deixou as arquibancadas e, enquanto ela descia a rampa para o estacionamento, o zagueiro Nicolás Burdisso marcou um gol contra, deixando o jogo em 4 a 2. O Paysandu ficava a apenas um gol de levar a decisão aos pênaltis.

Eu lembro de subir desesperado essa rampa de volta às arquibancadas, sonhando com um gol salvador nos acréscimos e uma virada épica... só para chegar lá no momento exato em que o juiz apita e decreta a derrota mais dolorosa da minha breve carreira de torcedor.

Antônio Gaudério/Folhapress Antônio Gaudério/Folhapress

A queda na Libertadores foi também o fim dos três melhores anos do clube, que, sob o comando de Givanildo Oliveira, havia sido campeão da Série B, da Copa Norte e da Copa dos Campeões.

Depois de perder pro Boca, que seria o campeão daquele ano, o Paysandu se manteve mais dois anos na Série A do Brasileiro, mas foi rebaixado em 2005 para a Série B e em 2006 para a Série C. Desde então nunca mais conseguiu voltar à elite do futebol nacional.

Dezessete anos depois daquele jogo histórico, Belém não poderia ser uma cidade mais diferente. Antes pintada em azul e branco, empolgada com um futuro inesperado a sua frente, vive hoje assolada por um vírus que já infectou, no Pará, 10.867 pessoas, matou 1.063 delas, lotou necrotérios e esgotou a capacidade hospitalar do estado, que já é o sexto com mais casos e mais mortes do país.

Desde abril, o site do Paysandu vem acumulando notas de pesar, lamentando a perda de ao todo 13 pessoas, entre ex-diretores, ex-funcionários, sócios e um zagueiro que defendeu o clube entre as décadas de 1950 e 1960.

Raimundo Pacó/O LIberal Raimundo Pacó/O LIberal

No grupo de torcedores que frequento no Whatsapp, ao menos quatro pessoas pegaram o vírus, uma delas perdeu um parente próximo. Nos grupos do colégio e da faculdade de jornalismo em que estudei, amigos meus e seus familiares lutam contra a doença. Uma amiga perdeu o avô, com suspeita de covid. Todo mundo que conheço em Belém ou pegou a doença ou conhece alguém que pegou. A maioria desses casos escapa das estatísticas oficiais: as pessoas têm os sintomas, mas não o diagnóstico porque faltam testes.

Uma tia da minha mãe morreu, assim como a mãe de um vizinho. A avó de um colega de faculdade e a avó de outro também morreram. Doeu ver o rosto de um deles no Jornal Nacional, da TV Globo, lamentando a perda da avó e suplicando para as pessoas ficarem em casa. Uma prima contraiu o vírus e se curou, mas a mãe de seu marido permanece na UTI. Eu uso o celular com medo de ser atingido pela notícia de mais uma tragédia.

Em Belém, muitos demoraram a entender a gravidade da doença e a necessidade de ficar em casa. Mesmo quando o governo decretou o isolamento obrigatório, feiras livres e o comércio popular continuaram funcionando. O governador do Pará, que também pegou covid, e o prefeito de Belém, agora multam quem sai de casa sem uma justificativa plausível.

Dois vídeos gravados por celular aumentaram a tensão e preocupação que sinto por meus amigos e parentes. Em um deles, moradores desesperados arrombam os portões de um hospital público em busca de atendimento, em um momento em que quase todas as UTIs da cidade já estão ocupadas. Em outro, uma fila de carros funerários se forma na frente do Mangueirão, que fica a 450 metros do IML da cidade.

Tarso Sarraf/UOL Tarso Sarraf/UOL

O entorno do estádio, cenário de tantas festas, agora é cenário de morte.

Nesse novo mundo distópico, falar no retorno do futebol parece uma crueldade e uma insensibilidade com as famílias que choram a perda de seus parentes. Mas é do esporte que chegam alegorias que confortam e dão esperança. A guerra contra o vírus é um jogo que ainda podemos ganhar, embora pareça que estamos perdendo de goleada ainda no primeiro tempo.

Algumas vitórias individuais nos animam.

Acabei conhecendo a identidade daquele torcedor curado, vestido com as cores e a bandeira do seu time, do nosso time. Ele se chama Mauro dos Santos Rodrigues e fará 48 anos na próxima segunda-feira (18). Quem gravou o vídeo no hospital foi sua filha, Lara Rodrigues, que já trabalhou como animadora de torcida do Paysandu.

Mauro estava naquele jogo contra o Boca em 2003, assim como nos outros três da Libertadores daquele ano em Belém. Trabalhava como técnico de refrigeração e juntava gorjetas para comprar os ingressos. Naquela noite sem ônibus, rumou ao Mangueirão caminhando até que um caminhão de lixo passou em direção ao estádio. Mauro e os amigos pularam na caçamba e pegaram a carona mais insólita de que se tem notícia até hoje.

Contra o Boca, nós perdemos. Mas 17 anos depois, Mauro venceu sua maior batalha. Sua história com a covid ele conta hoje com lágrimas nos olhos.

Arquivo pessoal

Apesar do apelo da mulher, ele não usava máscara e continuou trabalhando normalmente, mesmo com a pandemia declarada. Saiu para beber com amigos e no outro dia começou a sentir dor na garganta. Quando teve dificuldades para respirar, pediu para a filha levá-lo à Unidade de Pronto Atendimento do bairro.

"Lá, faltava água até para tomar pílula, os banheiros estavam entupidos, não tinha nenhuma condição de atendimento", ele conta. Lara, então, publicou no Instagram um vídeo suplicando por um leito em um hospital melhor para o pai.

O vídeo viralizou, e Mauro foi internado no hospital estadual Abelardo Santos. Foi entubado e sedado. Achou que ia morrer, mas não morreu. Treze dias depois, quando soube que receberia alta, mandou uma mensagem para a filha.

"Manda minha camisa do Paysandu e minha bandeira. Eu só saio daqui com ela.

Arquivo pessoal

No dia seguinte, uma enfermeira o acordou. "Bora, seu Paysandu, chegou sua farda", e entregou a vestimenta que Mauro costuma usar nos jogos. Quando a viu, chorou de emoção.

Ele será para sempre grato aos profissionais que cuidaram dele. "Várias enfermeiras foram como mãe para mim. A dona Neusa, a dona Edilene e a senhora das maçãs que enchia minha gaveta de maçãs porque eu precisava ficar bem alimentado. Se eu pudesse, eu entregaria meu coração pra elas."

Foi recebido com festa na Sacramenta, seu bairro em Belém, a cidade que respira futebol e que um dia voltará a respirá-lo.

Antônio Gaudério/Folhapress Antônio Gaudério/Folhapress

No próximo domingo (17), o Paysandu fará uma live em suas redes sociais mostrando lances da Libertadores-2003 e da Copa dos Campeões-2002, em um evento chamado "Jogo da Vida". A transmissão será gratuita, mas os torcedores podem comprar ingressos simbólicos para ajudar o clube.

Na última quarta-feira (13), o Paysandu decretou luto permanente depois que Paulo Moraes, neto de um de seus fundadores, morreu em decorrência da covid-19.

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