Adeus, Fórmula 1?

O dilema do GP Brasil: São Paulo tem pista, mas não dinheiro, enquanto Rio tem dinheiro, mas não tem pista

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (ING) Duda Bairros/AGIF

O casamento entre Brasil e a Fórmula 1 poderia completar 50 anos em 2021. Poderia, porque, hoje, em junho de 2020, a prova mais importante do calendário do automobilismo verde-amarelo vive seu momento de maior incerteza. Com propostas de São Paulo e Rio de Janeiro pelo evento apresentando problemas, e a Rede Globo ainda analisando se vale a pena seguir com a categoria, existe uma chance de os brasileiros perderem a sua corrida.

O cenário do futuro é de total indefinição no momento, mas quem conversa com os dois postulantes a organizar o evento pode nem perceber. Tanto Tamas Rohonyi, promotor da prova há mais de 30 anos, quanto JR Pereira, empresário que tenta construir um autódromo e levar a corrida para o Rio de Janeiro, se dizem perto de um acerto com a Fórmula 1. Os dois falam em contratos para manter a corrida no país por pelo menos mais dez anos. Ambos, porém, tem obstáculos grandes a superar.

O primeiro tem o circuito. Interlagos é famoso por ser palco de corridas abertas e a organização paulistana tem o know-how. O segundo tem o dinheiro, garantido pela lei do incentivo ao esporte do Rio de Janeiro para bancar 350 milhões de dólares por ano de contrato. No meio de tudo isso, há grandes chances de que a Rede Globo não renove o contrato para seguir na categoria além de 2020, colocando em xeque, inclusive, a transmissão em TV aberta.

Não por acaso, são vários os cenários possíveis: a corrida fica em Interlagos, vai para o Rio ou sai do país (temporariamente ou não); tendo apenas algumas provas mostradas na TV aberta, em modelo que já é adotado há anos na Europa, ou mesmo uma aposta por serviços de streaming. A partir de agora, explicamos para você cada um deles.

Duda Bairros/AGIF

Por que essa briga?

Como o terceiro país com mais vitórias na história da Fórmula 1 e que tem, de longe, a maior audiência do mundo (que, inclusive, está em ascensão) pode perder o seu Grande Prêmio?

Para entender a situação atual é preciso voltar ao final de 2016. O paddock, área em que as equipes ficam instaladas, estava passando por uma reforma de R$160 milhões bancada pelo PAC do Turismo, do governo federal, em obras que começaram em 2014. A Globo tinha deixado de investir diretamente no GP e a Petrobras também estava encerrando seu contrato com a Williams.

Na cúpula da categoria, Bernie Ecclestone vendera os direitos comerciais para a empresa Liberty Media. Em um de seus últimos movimentos no poder, Ecclestone, aliado histórico de Rohonyi, assinou a renovação do GP Brasil com a promotora Interpub dispensando o evento de pagar a taxa do promotor, que é cobrada de todas as demais provas, à exceção de Mônaco. A justificativa era de que os gastos para a reforma foram elevados. Este contrato termina após a realização da etapa deste ano.

Na época deste último contrato, os direitos de TV representavam a maior fatia de receita da F1, mas a transição para serviços de streaming e o aumento do número de etapas hoje aumentaram a importância das taxas dos promotores. Hoje, elas respondam pela maior parte dos ganhos da categoria. Sob o controle da Liberty Media, a velha política de Ecclestone de permitir que países mais tradicionais paguem menos acabou: os novos contratos são de, no mínimo, 20 milhões para provas europeias e 30 para fora, podendo chegar a até 60, como no caso de Rússia e Vietnã.

Nos acordos mais baratos, geralmente há divisão de lucros da exploração do Paddock Club (a área VIP) e das placas de publicidade. Com isso, no final das contas, a Liberty acaba chegando em um valor próximo de 60 milhões de dólares por prova por ano.

Michael Heiman/Getty Images

Linha do tempo: até Olimpíada entra na polêmica

2012

Autódromo de Jacarepaguá é demolido como parte das obras para as Olimpíadas de 2016 — no lugar, foi erguido o Parque Olímpico, da foto acima. Em 2008, havia sido decidido que outro circuito seria feito na cidade.

2014

Contrato do GP Brasil é renovado até 2020 após o governo federal ter liberado R$160 milhões para a reforma do circuito.

2016

Com o país em crise, empresas GP diminuem aporte financeiro no esporte, e Bernie Ecclestone faz acordo que dispensa pagamento de taxa milionária para Brasil ter a prova até o final do contrato. O inglês tinha vendido a F1 para a empresa norte-americana Liberty Media.

Maio de 2019

Candidata única, Rio Motorsports ganha processo de licitação para construção de circuito em área cedida pelo Exército em Deodoro. Este processo chegou a ser suspenso em duas oportunidades, determinando que fosse entregue um Estudo de Impacto Ambiental. Em Mônaco, JR Pereira faz a primeira proposta formal à Liberty.

Carolina Antunes/PR

Junho de 2019

Jair Bolsonaro posa ao lado de CEO da Liberty Media e diz que há "99% de chance" de o GP Brasil ir para o Rio.

Setembro de 2019

Representantes da Interpub e da prefeitura de São Paulo se encontram com a Liberty Media para apresentar sua proposta. A reunião abre a possibilidade de a prova ter um novo promotor, Allan Adler, campeão mundial de vela ligado ao Rio Open de tênis, mas isso não vai adiante.

Novembro de 2019

Durante o GP do Brasil, o governador de São Paulo, João Doria Jr., afirma esperar que a renovação seja firmada até o final daquele ano, e acredita que a proposta de São Paulo é forte. Na última corrida do ano, em Abu Dhabi, Flávio e Eduardo Bolsonaro fazem campanha para a prova carioca.

Divulgação

Dezembro de 2019

Governo do Rio de Janeiro aprova uso da lei do incentivo ao esporte para pagamento de taxa da Fórmula 1.

Fevereiro de 2020

Relatório do Inea (Instituto Nacional do Meio Ambiente) sobre Estudo de Impacto Ambiental é aprovado, restando a realização de audiências públicas para aprovação final do projeto do Rio.

Maio de 2020

Audiência pública online chega a ser marcada, mas é suspensa por decisão judicial, considerando que não se trata de uma decisão essencial durante a pandemia. Promotor de São Paulo afirma que renovação com Interlagos seria anunciada em maio, o que não acontece. A justificativa é que a pandemia atrapalhou as negociações.

Duda Bairros/AGIF Duda Bairros/AGIF

Como são as propostas?

Acredita-se que a proposta de São Paulo seja de 20 milhões de dólares por ano, pagos com dinheiro da iniciativa privada, e sem a previsão de divisão do lucro de placas e Paddock Club. Tamas demonstra confiança de que a pista do Rio não ficará pronta e aposta no fato de o Brasil ser importante para marcas que investem pesado na F1.

"Sabemos da grande importância do mercado brasileiro para todos os envolvidos em F1, Pirelli, Honda, Mercedes, Renault, Fiat, Heineken, etc. sem falar da maior audiência de TV do mundo. Eu tenho certeza que [CEO da F1] Chase Carey fará tudo para não perder nosso evento em Interlagos, considerada uma das melhores pistas do mundo", disse Rohonyi ao UOL Esporte. "Sobre a questão do projeto no Rio, realmente, só sei o que os jornais publicam. Mas, conhecendo a logística de um evento deste porte, uma prova em 2021 é impossível a esta altura."

O promotor do GP Brasil chegou a afirmar ao Estadão que a renovação do contrato com Interlagos por mais dez anos seria anunciada em maio, mas recuou. "Quanto às negociações de um novo contrato, de fato está levando mais tempo que o previsto em função da situação emergencial enfrentada pela Liberty que está lidando, antes de mais nada, com os problemas operacionais do momento", disse, referindo-se à definição do calendário, bastante complicada por conta da pandemia.

A temporada 2020 vai começar em 5 de julho e, até o momento, só tem oito provas com data definida. Os promotores da prova brasileira dizem aguardar o fechamento do restante do calendário para começar a vender ingressos para a corrida deste ano e garantem que o contrato atual só prevê cancelamento "em caso de força maior".

Divulgação Divulgação

E no Rio?

A história da construção de uma pista no Rio de Janeiro começa com a demolição do autódromo de Jacarepaguá durante as obras para os Jogos Olímpicos de 2016, uma vez que ficou determinado que o circuito, que recebeu a F1 nos anos 1980, teria que ser substituído. Única interessada em seguir com a obra, a empresa de JR Pereira, Rio Motorsports, tem convivido com uma série de dúvidas e questionamentos ao longo do processo, desde as garantias financeiras apresentadas durante a licitação até, mais recentemente, a dificuldade em passar por todas as etapas para ter a permissão de iniciar a obra no local, que fica em um terreno cedido pelo Exército em Deodoro.

O último capítulo ocorreu no final de maio, quando o Ministério Público impediu a realização de audiência pública online, marcada para dia 28. Algumas ONGs ambientais têm questionado o relatório de impacto ambiental apresentado pela Rio Motorsports, alegando que a área é de mata atlântica.

Para Pereira, as últimas decisões, que travam o projeto, têm sido políticas. "Estamos tentando acelerar ao máximo, durante a pandemia, processos burocráticos e, de repente, vem o Ministério Público e cria situações que impedem que as coisas caminhem mesmo depois que o governo já tenha indicado que este é um projeto essencial para a cidade e para o estado, pois vai gerar empregos e retorno para o Rio", criticou o empresário. "Se todo projeto de infraestrutura e de criação de emprego sofrer perseguição do Ministério Público e de movimentos ambientais não-técnicos, o Brasil vai enfrentar um período muito negro pela frente. Tudo está sendo politizado e quem perde é a economia".

Ainda assim, JR Pereira segue confiante de que pode fazer o básico (pista e área de boxes e VIPs para o primeiro ano) e espelha-se em projeto da pista de Aragón, na Espanha, que recebe MotoGP e foi feita pela mesma construtora responsável pelo projeto do Rio, a Acciona, em prazo parecido com o que o projeto carioca teria para receber o GP Brasil em 2021.

Financeiramente, a proposta da Rio Motorsports segue a linha dos novos acordos fechados com México e EUA, envolvendo os lucros do Paddock Club e publicidade, e explorando o apelo turístico do Rio de Janeiro, o que atrai a Liberty. Os 35 milhões de dólares ao ano ofertados à empresa que administra a F1 seriam pagos por meio da captação de incentivos pela Lei do Incentivo ao Esporte. E, da mesma maneira que Tamas não acredita que o projeto do Rio tenha qualquer chance de acontecer ano que vem, JR questiona as declarações do promotor de SP.

"Cadê a garantia financeira de 20 milhões de dólares por dez anos que o governador Dória disse que iria dar? Duvido que o Chase Carey, ainda mais com a pressão financeira com que ele está convivendo, assine com São Paulo sem a garantia de que vai receber. E isso de dizer que as negociações foram prejudicadas pela pandemia, para mim, só indica que ele nem está na mesa de negociação."

Do lado da Liberty Media, a avaliação é de que, se não houver uma possibilidade vantajosa para a empresa e a F1 no Brasil, a possibilidade de que a corrida saia do país é real. A Arábia Saudita é uma das possibilidades de destino, assim como um segundo GP na China ou nos Estados Unidos.

Duda Bairros/AGIF

Por que dinheiro público é usado na F1?

Tanto na reforma de Interlagos — e também anualmente na realização da prova, uma vez que a Prefeitura de São Paulo é uma das patrocinadoras do evento, contribuindo com cerca de 60 milhões de reais — quanto no projeto de utilizar a Lei do Incentivo ao esporte para bancar a taxa do promotor no Rio, dinheiro público é empregado para que o Brasil receba a corrida. Isso é prática muito comum ao redor do mundo, sempre sob a mesma justificativa: o retorno em impostos e visibilidade compensa os gastos.

Em São Paulo, a Secretaria de Turismo da capital diz que a corrida movimenta cerca de R$ 334 milhões na economia do município anualmente. Já a Rio Motorsports fala em gerar um impacto total de 30 bilhões de dólares (mais de 140 bilhões de reais), lembrando que o projeto é ter também a MotoGP e outras categorias e usar a pista como banco de provas para a indústria automobilística.

Duda Bairros/AGIF Duda Bairros/AGIF

Completando o imbróglio: Globo fora

Como revelou o UOL Esporte, a Globo há meses não está em negociações com a Liberty Media e dificilmente ficará com os direitos de transmissão a partir de 2021. A emissora avalia que o produto não condiz com a nova imagem da empresa e também não tem boa relação com os atuais comandantes do esporte.

Portanto, ainda que tenha vendido todas as cotas de patrocínio neste ano, em um total de R$ 494 milhões, e esteja vendo os números de audiência subirem nos últimos dois anos, mesmo sem a presença de pilotos brasileiros na pista, a emissora não aceitou os 22 milhões de dólares por ano pedidos pela Liberty Media.

Sabendo que a presença da F1 na mídia é importante para que o GP seja financeiramente viável no Brasil, JR Pereira também entrou nas negociações dos direitos de TV.

Mas onde a Fórmula 1 seria transmitida? A tendência mundial da categoria e de outros esportes é migrar para o streaming, mas a saída total da TV aberta, pela realidade brasileira, poderia ser traumática para a viabilidade financeira da categoria no país. Uma opção poderia ser trabalhar com um modelo híbrido inicialmente, o que já foi usado na Europa, com algumas corridas ainda sendo mostradas na TV aberta, e outras exclusivas na TV à cabo e streaming, que abrem a possibilidade de uma exploração maior do produto, com mais tempo de exposição, maior detalhamento, etc.

De qualquer maneira, com ou sem acordo para a venda dos direitos de TV, o que é certo é que o Brasil não ficará sem acesso à F1. Com o fim do acordo de exclusividade da Globo, a categoria abrirá seu próprio serviço de streaming, o F1TV Pro, no país. Por meio dele, é possível ver as corridas por qualquer câmera onboard, com cronometragem detalhada e um canal com as comunicações via rádio das equipes. O serviço custa cerca de R$ 350,00 por ano na Europa, mas o preço depende de acordo com o mercado.

Duda Bairros/AGIF Duda Bairros/AGIF

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