Novos rumos

Flamengo divide final do Carioca com SBT, e Globo vê episódio como chance para remodelar negócios

Do UOL, em São Paulo Bruna Prado/Getty Images

O torcedor de futebol que acaba de chegar à maioridade não conhece a vida sem a Globo como detentora das transmissões dos principais campeonatos no Brasil. Daí o momento histórico agendado para a noite de hoje, com o Fla-Flu decisivo do Campeonato Carioca: será o SBT, em parceria com a FlaTV, a receber aquela que foi costumeiramente a maior audiência da televisão brasileira às quartas, a faixa nobre do futebol.

Após injetar mais de R$ 2 bilhões nos clubes pelos direitos de TV em 2019, a Globo entrou em 2020 disposta a repensar sua política de investimento no setor. A pandemia acelerou a decisão de renegociar alguns contratos em vigor, como aquele com a Fifa pela Copa do Mundo. Em âmbito menor, mais especificamente no Rio de Janeiro, a briga com o Flamengo e a MP 984/20 assinada por Jair Bolsonaro anteciparam uma postura de desprendimento a campeonatos (e contratos) antigos.

A liberdade do clube mandante ao negociar a venda da transmissão dos jogos fará, ainda, a emissora rever cada centavo investido no futebol em uma diretriz que pode ser repetida no Campeonato Brasileiro em caso de novas disputas.

E, ainda que a transmissão na emissora de Silvio Santos seja algo pontual —uma negociação isolada do Flamengo para o jogo decisivo do Estadual do Rio—, acompanhar diversas partidas de futebol longe do grupo que sempre dominou as transmissões pode sinalizar algo que venha a ser rotineiro nos próximos meses e anos. Talvez o jogo da noite de quarta-feira ganhe, mesmo, outras casas. Mas isso não quer dizer também que a Globo esteja pronta para abdicar de todas as brigas.

Bruna Prado/Getty Images

Globo revê gastos com direitos esportivos

Desde 2018, a Globo tem mudado sua política de investimento em direitos esportivo: prioriza alguns campeonatos como Brasileiro e Libertadores, e corta gastos com outros como Liga dos Campeões. Essa estratégia se intensificou em 2020 com a crise econômica causada pelo coronavírus: a emissora discute o valor a ser pago à Fifa pela Copa do Mundo e, enfim, desistiu do Carioca.

A realidade é que os direitos de campeonatos de futebol foram encarecendo nos cinco anos enquanto aumentava a concorrência, incluindo novos players como o Facebook. Ao mesmo tempo, o modelo da Globo de ganhar dinheiro está sob forte desafio para se manter em todas as plataformas: TV aberta, fechada e pay-per-view.

No caso do Carioca, a emissora viu na disputa com o Flamengo uma chance de se livrar de um contrato caro por uma competição vista como deteriorada. A emissora pagava R$ 95 milhões pelo Estadual sem o clube da Gávea e estava presa ao acordo até 2024. A rescisão, de certa forma, pode ser até vista como providencial.

A alegação é de que seus direitos de exclusividade foram rompidos quando o Flamengo passou o jogo com o Boavista do qual era mandante. A Ferj (Federação do Rio de Janeiro) questiona a decisão, porém.

Mas não é só em âmbito nacional que a rede carioca se mexe. As consequências financeiras da pandemia levam a Globo a acionar a Justiça para não ter de pagar US$ 90 milhões (R$ 483 milhões) à Fifa em uma das parcelas do contrato da Copa-2022.

Reprodução transmissão

Quanto a Globo paga hoje por competições de clubes?

Contabilizando Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil e Estaduais em todas as mídias, o Grupo Globo desembolsou mais de R$ 2 bilhões em contratos válidos em 2019.

Pelo Brasileirão, seu principal produto, a Globo pagou aos clubes cerca de R$ 1,6 bilhão. Foram R$ 600 milhões por direitos de TV aberta, mais R$ 500 milhões para TV por assinatura e outros R$ 550 milhões para o Premiere, seu serviço de pay-per-view.

Para a Copa do Brasil, o mata-mata nacional, a Globo tem contrato de exclusividade até o fim de 2022, pagando cerca de R$ 300 milhões por edição. Por fim, a Globo tem direito a alguns estaduais, como o Paulista, o Mineiro e o Pernambucano. Somando todos os valores, a emissora gasta R$ 221 milhões. Outros estaduais, como o Gaúcho, o Cearense e o Baiano, são pagos pelas afiliadas da Globo, não diretamente pela emissora.

Por fim, pela Libertadores da América, a Globo arrematou o pacote de TV aberta e o segundo pacote mais importante de TV por assinatura em 2018 por US$ 65 milhões (algo em torno de R$ 351 milhões no câmbio atual).

Bruna Prado/Getty Images Bruna Prado/Getty Images

Rescisão do Carioca pode levar a novo calendário

O rompimento do contrato da Globo com o Carioca também permite à rede avançar em outras frentes. Foi uma decisão que abriu brecha imediata para rediscussão do calendário do futebol brasileiro com redução ou reposicionamento dos Estaduais. E essa é uma pauta que interessa à emissora, uma vez que as competições regionais, da forma como são geridas, dão prejuízo.

O pacote de pay-per-view da Globo tem grande queda de assinantes durante os meses de dezembro a abril, justamente pelo desinteresse dos torcedores nas competições. Essa plataforma é justamente a que que permite aumento de ganhos com o futebol.

Há uma corrente dentro da Globo que defende que o Brasileiro tem que ser estendido por dez meses, como ocorre com Nacionais em países com cultura mais avançada na combinação de futebol e lucro. Neste contexto, os Estaduais poderiam ocorrer de forma concomitante em datas menos nobres, e sem obrigação de participação dos times das Séries A e B em todas essas jornadas.

O contrato da rede com o Carioca até 2024 impedia esse movimento, por ter obrigação de um mínimo de 17 datas de exibição. Agora, há a discussão do acordo da emissora com o Paulista que vai até 2021 —mesma data do Gaúcho, por sinal. Se houver revisão desses acordos, pode ganhar força um plano de reformulação dos Estaduais. O Mineiro, que já usa menos datas, tem acordo válido até 2023.

Reprodução/PFC

O pay-per-view, ainda um trunfo

Aberta em julho de 2018 pela Globo, a venda direta do pay-per-view por meio do Premiere Play tem crescido de modo exponencial. Antes da pandemia do novo coronavírus, a venda direta da Globo tinha pouco mais de 200 mil assinantes, uma fatia de 12% do número total —algo na casa de 1,8 milhão de assinantes. O pico do serviço foi em setembro de 2019, quando chegou a ter 300 mil assinantes.

É inclusive nessa venda direta que a Globo aposta para tentar crescer rapidamente seu número de clientes com o início do Campeonato Brasileiro em agosto. Existe o planejamento de oferecer desconto na assinatura para novos assinantes por esse meio. A tacada é clara: todo o dinheiro da assinatura vai para o bolo dos clubes e para a Globo, removendo da equação a operadora de TV por assinatura. Quanto mais gente assina essa plataforma, mais dinheiro os clubes recebem.

Marcos Corrêa/PR Marcos Corrêa/PR

Não foi só a "MP do Flamengo"

A diretoria do Flamengo não gostou, mas foi inevitável que a medida provisória 984 ganhasse o apelido de "MP do Flamengo", já que foi assinada um dia depois de o presidente do clube do Rio, Rodolfo Landim, se encontrar com Jair Bolsonaro, há menos de um mês.

Se serviu a curto prazo para o Flamengo ganhar o direito de transmitir seus jogos como mandante no Campeonato Carioca, competição na qual não tinha contrato com a Globo para 2020, o teor da MP não agrada apenas ao Flamengo, mas à maioria dos clubes brasileiros. E movimentos nas semanas seguintes à assinatura do documento mostraram que o lobby para que o texto se torne permanente em lei será grande.

No dia 30 de junho, 12 dias depois da assinatura, os oito clubes que ainda têm contrato com a Turner no Brasileiro-2020 para TV fechada se encontraram no Bolsonaro. O assunto principal era o acordo com os americanos, que pode acabar em batalha jurídica, mas a MP foi abordada, ainda assim. O presidente ouviu de todos que dar ao mandante o direito de transmissão agrada bastante. Alguns clubes, como a dupla Gre-Nal, podem não terem gostado da forma como o assunto veio à tona, por meio de uma medida provisória, mas hoje o cenário é favorável à validação da MP. Estiveram no encontro representantes de Athletico-PR, Coritiba, Palmeiras, Santos, Bahia, Ceará, Fortaleza e Inter.

"Entendemos que é o momento para uma discussão ampla sobre a legislação que rege o mercado de direitos de transmissão no país, visando proporcionar a abertura de mercado, maior atratividade para potenciais investidores e consequente valorização do produto com ganhos para o futebol brasileiro", disse o presidente do Palmeiras, Maurício Galiotte.

Mesmo os clubes de médio porte gostaram da ideia. Em tese, eles poderiam se sentir ameaçados com a mudança na legislação devido a um possível isolamento em negociações, perdendo valor de mercado. O Bahia, por exemplo, foi favorável porque avalia que os clubes ganharão força para negociar em grupos, mesmo se pequenos, de três ou quatro associações, por exemplo.

"Entendo essa medida como muito positiva. Vai estimular união direta entre os clubes, inclusive para compartilhar plataformas próprias de transmissão", escreveu em uma rede social Guilherme Bellintani.

No início de julho, em reunião virtual entre os clubes, uma votação simbólica mostrou que a maioria de fato gosta do teor do texto da MP: 16 disseram ter sido favoráveis e quatro contra.

Os clubes brasileiros podem depender menos da Globo?

Presidente do Bahia, Guilherme Bellintani discute o tema no programa "Os Canalhas", no UOL Esporte

Bruno Ulivieri/AGIF

Ação na Justiça da Globo visa preservar o Brasileiro

A disputa judicial da Globo com o Flamengo vai além da discussão sobre transmissão de jogo do Carioca: o objetivo da emissora é criar uma jurisprudência para preservar seus direitos sobre o Brasileiro, sua competição mais rentável. A MP do governo federal, que deu os direitos de transmissão ao time mandante, deixou sob insegurança partes dos campeonatos que a emissora comprou.

Na ação na Justiça, a Globo alegou que o Flamengo, mesmo sendo mandante, não poderia transmitir seus jogos porque a emissora tinha comprado os direitos do Boavista, inclusive de partidas como visitante. O contrato de compra foi feito anteriormente à MP editada pelo governo. A Justiça deu razão ao clube antes do jogo, mas a segunda instância deu vitória à emissora. Isso pode ser usado em ações futuras do Brasileiro.

A questão da Série A é que a Globo teme que clubes usem direitos dados pela MP para negociar jogos que ela entende lhe pertencerem. Por exemplo, o Red Bull Bragantino não tem acordo com a emissora e estuda negociar seus jogos como mandante, o que afetaria partidas de outros times. O Athletico-PR analisa vender suas partidas de pay-per-view, cujos direitos não cedeu à Globo. Há ainda clubes da Turner que podem dar à emissora suas partidas como mandantes.

Neste cenário, o objetivo da Globo é garantir que seus contratos com 19 clubes sigam válidos e que as partidas dessas equipes não possam ser transmitidas por outros veículos. Há um cenário que indica novas disputas judiciais como as ocorridas no Carioca.

Quem já tentou tirar o futebol da Globo?

Reprodução

SBT

Em 1996, a emissora de Silvio Santos estava animada com o sucesso da Copa do Brasil, torneio que havia adquirido com exclusividade e deu grande audiência na final Corinthians x Grêmio em 1995. Buscando os direitos do Brasileirão de 1997 a 99, o canal propôs até um canal de TV a cabo para os clubes explorarem suas marcas. Sua oferta era o dobro do que o consórcio Globo-Band pôs à mesa --no fim, porém, a dupla cobriu a oferta. O SBT jamais tentou de novo o Brasileirão. Até comprou os direitos do Paulistão de 2003, mas foi o último suspiro.

Reprodução

Record

A emissora de Edir Macedo tentou tirar os direitos de futebol da Globo em duas ocasiões. Em 2006, ainda então parceira da Globo desde 2002, fez propostas pelo Brasileirão e pelo Campeonato Paulista --oferecendo pelo estadual um valor recorde à época. Perdeu as duas disputas. Em 2011, a emissora chegou a pensar em entrar na licitação organizada pelo Clube dos 13 para os direitos do Brasileirão em 2012, mas desistiu na última hora ao ver clubes negociando diretamente com a Globo, se desassociando da entidade.

Reprodução

RedeTV!

Em 2011, o Clube dos 13 organizou uma licitação inédita para os direitos de TV, sem querer negociar diretamente com a Globo, após pressões do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A RedeTV! apresentou uma oferta única numa licitação que acabou sendo invalidada. O Clube dos 13 foi implodido num processo lideradopelo presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, do Corinthians. A negociação individual com os clubes acabou favorecend a Globo. Vice-presidente da RedeTV!, Marcelo de Carvalho afirmou em entrevista à revista Playboy em 2012: "A Globo ganhou o Brasileiro no tapetão".

Divulgação

Turner

Vendo alguns clubes reclamarem dos privilégios que a Globo dava para clubes como Corinthians e Flamengo, a Turner iniciou uma conversa com vários deles. Fechou acordo com 14 das mais diversas divisões para a exibição do Brasileirão na TV paga a partir de 2019. Mas os clubes posteriormente passaram a reclamar da própria Turner --o Bahia descobriu que o Palmeiras recebeu mais em luvas do que os outros clubes, por exemplo. Por causa dessa briga por diversos motivos, a programadora pode nem exibir a edição de 2020 do Brasileiro, em um contrato que é válido até 2024.

Pedro H. Tesch/AGIF

A Turner vai ficar?

O barulho que transmissões por streaming estão fazendo em 2020 foi o mesmo feito em 2015 quando alguns clubes fecharam contratos do Brasileiro para TV fechada com a Turner. A empresa norte-americana, à época, era a dona do canal esportivo Esporte Interativo, que hoje existe apenas como marca.

Parecia ousado: assinar contratos que só passariam a valer quatro anos depois. A empresa convenceu 16 times a acertar um vínculo com duração de 2019 a 2024 —entre eles, Palmeiras, Inter e Santos.

Para a Turner, só valeria assinar com um grupo razoável de clubes por causa da legislação vigente —antes da "MP do Flamengo"—, que previa que o direito de transmissão pertence aos dois clubes em campo. Ou seja, para transmitir uma partida era preciso ter contrato com ambos oponentes. Por isso era necessário um pacote largo de parceiros para abrir a possibilidade de várias transmissões a cada edição do Brasileiro (já que que rebaixamentos e ascensões da Série B mudariam o cardápio de clubes na elite ano a ano).

A Turner deu sorte, e em 2019 sete dos clubes que assinaram com ela estavam na Série A, propiciando 42 transmissões dos 380 jogos da Série A. Na prática, porém, o efeito não foi o mesmo.

Muitos de seus jogos acabaram tendo transmissão também na TV aberta, diminuindo o alcance de sua audiência. A empresa avalia que os clubes poderiam ter ajudado e negociado com a CBF para que suas partidas fossem realizadas em horários que evitassem a concorrência com a Globo, por exemplo. A Turner, então, decidiu judicializar o assunto, e os clubes entendem que a empresa simplesmente queira rescindir o contrato. O que eles rejeitam.

O caso pode parar nos tribunais. Existe a possibilidade de a era "Turner" ter um fim mais precoce do que se imaginava. Caso o texto da MP se transforme em lei, talvez a Turner ganhe a possibilidade de transmitir todos os jogos de seus parceiros como mandantes, e não só aqueles entre os times assinados com ela. Pode ser um incentivo para permanecer no futebol brasileiro.

Streaming: como fazer e arrecadar?

"Se livrar" da Globo, não depender de intermediários e realizar a própria transmissão parecia um sonho para o Flamengo —e muitos clubes— quando a Justiça bateu o martelo e autorizou o Rubro-Negro a fazer sua primeira transmissão exclusiva de um jogo de futebol em redes sociais. Para alguns, era o início de uma nova era de muita prosperidade. A noite que começou com recorde de acessos simultâneos no YouTube, no entanto, terminou com dúvidas. A conta não fechava na primeira experiência.

O Fla arrecadou apenas R$ 874 mil em seu primeiro jogo nas redes sociais, contra o Boavista, no dia 1º de julho. Com descontos e custos, o lucro ficou pouco acima da casa dos R$ 500 mil. Um baque para quem embolsou R$ 329 milhões com direitos de TV em 2019 (R$ 244 milhões da Globo e mais R$ 85 milhões da Conmebol). A resposta à nova —e, por ora, amarga— realidade chegou logo: uma contestada decisão de cobrar R$ 10 no duelo seguinte através de uma plataforma pouco conhecida, o Mycujoo. Nova operação sem sucesso.

Sem um sistema que absorvesse a demanda dos milhões de rubro-negros interessados em ver a partida contra o Volta Redonda, no dia 5, o gratuito YouTube voltou à cena. Pouco lucro e mais dúvidas: como faturar nessa sonhada realidade? Sem repostas por ora, o jeito foi recorrer ao velho modelo para a final desta quarta-feira contra o Fluminense. Mesmo que a Globo deixe de ser absoluta e o SBT reapareça em uma brecha de contrato entre emissora e clube, a TV ainda está longe de se tornar descartável em um mundo que ainda tenta entender como se adaptar a novas plataformas.

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

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