Em constante cura

Artilheira do São Paulo, Glaucia detalha como foge da gordofobia para evitar queda à depressão

Glaucia Cristiano, em depoimento a Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Gabriela Montesano / São Paulo FC

Quando entrei em depressão, não tinha ninguém por perto. Se eu tivesse, ao menos, alguém para abraçar, talvez tivesse sido diferente. Talvez a proporção das coisas tivesse sido menor, ou, quem sabe, eu tivesse sido diagnosticada antes com essa doença que, como qualquer outra, precisa de tratamento. Se eu pudesse ao menos renovar a energia com o abraço de alguém que estivesse ali... Mas não pude. Ninguém estava ali.

Eu tinha 19 anos e havia acabado de assinar um contrato de temporada com o Jeonbuk, da Coreia do Sul. Estava longe de casa e isso dificultou que as pessoas percebessem a gravidade da situação. Eu era uma menina com saudade da família. Era a isso que limitavam a tristeza que eu sentia.

Lá, a pressão é muito grande e o tratamento não é dos mais humanos. Na Coreia do Sul, a jogadora é uma máquina: não pode se machucar, não pode errar e é cobrada constantemente. Eu era paga para resolver problemas. Quando fui contratada, o Jeonbuk não tinha títulos ainda, o que tornava a pressão ainda maior. Tudo isso junto à falta que eu sentia da minha família começou a me enlouquecer. Comecei a não dormir.

Gabriela Montesano / São Paulo FC

O fuso horário era oposto ao do Brasil, então eu passava a madrugada acordada conversando com a minha mãe. Era o único momento do dia em que eu me sentia acolhida. Em que eu sentia alegria, de certa forma. Por isso, eu não desligava. Tinha crises de ansiedade fortes e, quando elas vinham à tona, eu comia. Não entendia o que eram esses sintomas, então não pedia ajuda.

Como eu não dormia, comecei a treinar muito mal. Estava sempre cansada, não conseguia desempenhar bem. A gente acordava às sete todos os dias. Às seis, eu já estava de pé, virada. Não tinha dormido uma hora sequer. A cobrança, é claro, aumentou. Meu salário era um dos mais altos do time, à época. Eu treinava como um zumbi e a cobrança me colocava em um ciclo de angústia que não tinha fim. Só conseguia chorar. E pedir para ir embora.

Em um ano, tive umas 30 conversas com o presidente do clube. Eu chorava, implorava para ir embora. Dizia que devolveria todo o dinheiro que eles já tinham me pagado, que não importava. Eu não dormia, comia errado e, ali, comecei a engordar. Só que o clube não me liberava. No começo, eu pensava que me prendiam lá por maldade. Não fazia sentido.

Gabriela Montesano / São Paulo FC Gabriela Montesano / São Paulo FC

Em uma dessas dezenas de reuniões, o técnico disse que não me deixaria ir embora porque, se eu não terminasse a temporada, as portas na Coreia se fechariam para mim para sempre. Não só as portas daquele clube, mas as de qualquer outro. E isso faria com que eu me sentisse muito pior do que já estava me sentindo. Aos 19 anos, eu tinha muito o que viver no futebol —tanto que, desde essa época, já voltei três vezes para o futebol coreano.

Além de ter atuado mais uma vez no Jeonbuk, Glaucia passou, também, pelos times sul-coreanos Red Angels e KSPO.

Hoje, agradeço. Naquela época, tinha raiva.

A ansiedade e a depressão me fizeram descontar muitas dessas angústias na comida. Eu engordei, de fato. As outras jogadoras passaram a rir de mim. Às vezes, eu andava pelo vestiário, e elas apertavam minha barriga e riam. Tudo contribuía para meu rumo ao fundo do poço. Parei de treinar. A técnica, por várias vezes, foi até o apartamento em que eu morava pessoalmente me buscar para o treino. Eu ouvia, mas não respondia. Fingia não estar ali.

Vivi assim durante toda a temporada. Quando acabou, é claro, não renovei. Sequer me despedi das meninas. Ouvi todo o discurso da diretoria e falei: 'Graças a Deus estou indo embora desse lugar'. O trauma foi tanto que nem quis ficar com uniforme deles. Só queria ir para casa.

Gabriela Montesano / São Paulo FC Gabriela Montesano / São Paulo FC

Tive medo, também, de como seria o retorno ao Brasil. Avisei minha mãe que meu corpo tinha mudado e tudo que eu precisava naquele momento era de apoio. Não precisava ter dito isso a ela. Mãe sente. Quando ela me viu, a primeira coisa que disse foi: 'Filha, você continua linda. Mas, se não estiver se sentindo bem, a gente dá um jeito'.

Até me readaptar ao fuso horário daqui, passei noites em claro conversando com ela. Coitada, morria de sono, mas ficava firme me ouvindo falar. Parecia que eu tinha ficado anos sem falar com alguém. Precisava falar, falar e falar. Minha mãe já tinha percebido que eu estava com depressão, mas não me disse nada enquanto eu estava na Coreia. Ela sabia que, se me dissesse isso à distância, eu ficaria muito pior.

Assim que conversamos sobre isso, pedi ajuda. Eu estava no fundo do poço e, se não gritasse, ninguém me encontraria ali. Procurei um psicólogo e comecei a fazer terapia. Da primeira sessão, saí leve. Era o começo da minha cura. Só que não existe cura definitiva para a depressão. A gente vive em constante cura. A qualquer momento, pode vir um gatilho e me derrubar. Demorei para entender isso, e entender, também, que preciso impor limites para evitar que esses gatilhos me derrubem.

Eles me derrubaram algumas vezes. Desde que meu peso mudou, tenho muita dificuldade para emagrecer. Não bebo, não como doce, não como besteira e não perco peso. E as pessoas falam disso o tempo todo. Não importa se eu fiz três gols em uma partida decisiva. Se sou artilheira do campeonato. Meu corpo sempre vai ser a principal pauta. E isso dói muito.

Gabriela Montesano / São Paulo FC Gabriela Montesano / São Paulo FC

Quando ainda jogava pelo Santos, fiz uma ótima partida em um jogo na Baixada. Enquanto dirigia de volta para São Paulo, decidi abrir o Instagram e ver o que estava sendo dito sobre a partida. Foi quando vi um comentário de um dirigente do Santos dizendo 'essa menina está gorda; está obesa'. Lembra do gatilho? Minha cabeça rodava e rodava. Estava subindo a serra e só conseguia pensar: 'o que você está fazendo aqui, Glaucia? Se mata. Para de jogar, você é gorda. Joga o carro no barranco. Chega'. Por sorte, minha namorada, à época, estava comigo no carro. Ela percebeu que eu não estava bem, perguntou o que tinha acontecido, mas eu não dizia nada. Só que precisava parar e tomar um pouco de ar.

Aquilo entrou com uma potência absurda na minha mente. De uma maneira que, se não tivesse uma pessoa no carro comigo, eu teria feito merda. Subi a serra, parei o carro e respirei. Quando cheguei em casa, a Maurine, que nunca era de mandar mensagem, me escreveu perguntando como eu estava.

Eu disse: 'Vou tomar remédio para emagrecer. Estou cansada. Sempre dou meu melhor, sempre faço gol. Sou a artilheira do time, e nunca é suficiente. Só falam do meu corpo'. Ela me acalmou. Disse que eu não iria tomar remédio algum, e que, no dia seguinte, no treino, a gente conversaria sobre.

Gabriela Montesano / São Paulo FC Gabriela Montesano / São Paulo FC

Foi nesse momento que percebi que ler comentários sobre os jogos dos quais participo é um limite que eu não devo ultrapassar. Bloqueio todo mundo, não abro as páginas de comentários mais. Quando a gente identifica o gatilho, precisa fugir dele.

As pessoas não imaginam a proporção que as coisas que dizem podem tomar. Quantas pessoas não se matam por causa disso? São críticas que não levam a lugar algum. Sou muito aberta a críticas construtivas, mas quando o objetivo é só magoar o outro, não. Não quero saber. Não quero ler. Pode ter um monte de coisa boa, mas se vier uma coisa ruim, apaga tudo de bom que li.

Gabriela Montesano / São Paulo FC

Antes, eu precisava muito da aprovação dos outros. Hoje, me basto. Sei dos meus limites. Não posso me permitir cair de novo. Como disse, vivo em constante cura. Preciso cuidar de mim."

Glaucia Cristiano, atacante do São Paulo FC.

Rubens Chiri / saopaulofc

Glaucia, a braba

Glaucia é atacante do São Paulo e uma das artilheiras do time em 2021. Em 2019, ganhou o Prêmio Brasileirão como melhor atacante, quando ainda era atleta do Santos. A jogadora foi revelada pelo São Bernardo aos 14 anos e vestiu a camisa da seleção brasileira no sub-17, em 2010.

A atleta teve três passagens por times da Coreia do Sul. A primeira delas foi em 2012, período que Glaucia narra nesta reportagem. Quando voltou, jogou a Copa do Brasil pelo Centro Olímpico e, depois, defendeu o São Caetano durante o Paulista. No ano seguinte, foi para o São José. Ela está no São Paulo desde 2020 e é um dos maiores nomes do time na atual temporada: em 28 jogos, marcou 11 gols e deu três assistências.

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV (https://www.cvv.org.br/) funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil

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