Futebol na terra da rainha

A história de um time que sobrevive com a venda de produtos de limpeza de porta em porta em Alagoas

Bruno Fernandes e Josué Seixas Colaboração para o UOL, em Maceió Bruno Fernandes/UOL

Ao entrar no ônibus e passar pelo cobrador, as meninas agradecem pelo mesmo motivo: é mais um dia em que conseguem pagar passagens para ir ao treino. A viagem dura mais de uma hora para cada uma delas, mas todas gostam daquilo. Odeiam quando falta dinheiro, porque há duas opções: faltar ao treino ou entrar pela porta de trás - ou "maiar", como manda o dialeto alagoano.

Quando descem do ônibus, andam um bocadinho até chegar à casa em que moram o técnico Leno Santos e sua esposa, Laís. Ele deixou muitas coisas para trás para estar onde está: morando de aluguel em uma casa ao lado de um campo de terra.

Em três anos, investiu mais de 50 mil reais para dar condições de treino às meninas do Liverpool de Maceió, o time feminino que ele mesmo fundou. No ano passado, vendeu a própria casa para custear inscrições e material esportivo que as meninas usam. Depois, vendeu o carro pelo mesmo motivo. Vive assim, de aluguel, e é otimista: a cada ano, repete que as coisas vão melhorar. "Você vai ver", garante Leno.

Nas estantes, os troféus. Na sala apertada, as meninas calçam as chuteiras ou tênis, e Leno conversa com a equipe de reportagem. Apresenta o outro técnico do time, Jorge de Andrade, sócio do Flamengo e da Conflaria, uma filial da torcida capitaneada por Peu, ex-atacante campeão mundial em 1981.

As meninas ficam prontas. É um dia de sol, todo mundo caminhando junto pela rua. Ignora-se o calor. As seis bolas verdes, que custaram R$900,00 e ainda não foram pagas, dançam pelos pés. É dia de treino de futebol na terra da Rainha Marta.

Bruno Fernandes/UOL

O campo em que surgiu Pedrinho

As condições para o treino não são ideais. O campo é de areia, as traves não têm rede e o vestiário é improvisado. Mas o Liverpool não paga nada para utilizá-lo, o que já é um ganho. As cerca de 40 meninas que se reúnem para correr atrás da bola no bairro do Village Campestre também não pagam para treinar. As atividades duram cerca de duas horas às terças e quintas-feiras.

A dificuldade serve como inspiração. Desse mesmo cenário saíram Pedrinho, meia-atacante do Corinthians, e a irmã dele, Luana - que jogou a Copa Rainha Marta no ano passado (a edição deste ano começa neste domingo). De lugares parecidos em Alagoas também vieram Marta e Geyse, atacante da seleção brasileira na última Copa do Mundo. Essas quatro histórias servem para que o técnico Leno mostre às meninas que o dia seguinte pode ser melhor.

Usando o futebol, as ensina sobre o mundo real, as incentiva a estudar e a conviver bem com os familiares. Só que, assim como na grande maioria dos times femininos do Brasil, o dinheiro falta. É como tentar correr com um adversário sempre puxando a camisa por trás.

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A saída encontrada é a venda de produtos de limpeza. São desinfetantes, detergentes, sabonetes líquidos. Os compradores, em sua maioria, são vizinhos e parentes.

"Não temos patrocínio, a maioria das equipes de Alagoas e do Brasil não tem. Deus colocou à frente essa questão dos produtos de limpeza, então a gente conseguiu manter nosso projeto vivo através disso", conta Leno. A história de como os produtos de limpeza chegaram ao time mostra como Leno e sua equipe driblam as dificuldades:

Em 2017, queríamos participar do Alagoano de futsal com algumas equipes. Infelizmente, o valor da inscrição era alto e não conseguimos. E daí surgiu a proposta de oferecer a casa a uma colega minha e, no dia seguinte, chegaram com o valor. Eu vendi para a gente fazer essa inscrição".

Você deve estar pensando que uma casa não pode valer tão pouco quanto uma inscrição em um torneio de futebol. Não vale, mas a diferença foi usada para criar a fonte de renda. "Com o restante do valor, investi numa carrocinha e nos produtos de limpeza, para poder manter o projeto e tentar ser independente. Hoje, ainda somos, mesmo com dificuldade".

Essa independência também diz respeito à Federação Alagoana de Futebol. Mas não por opção própria. O time precisaria de mais de R$ 700 mil para se federar. Para conseguir, o técnico faz uma conta rápida: precisaria vender aproximadamente 20 mil kits de limpeza de R$37,00. Não vale a pena. Além do kit, também são vendidos produtos individuais no valor de R$2,50 e R$3,00. O material é vendido de porta em porta pelas próprias jogadoras. O lucro não passa de 30%.

Melhor seria se alguém chegasse para a gente e oferecesse uma fábrica de produtos de limpeza. Conseguiríamos nos manter. Prefiro isso a uma proposta de federação, sabia? Por que, se nos federarmos, como vamos nos manter? Os gastos são altos do mesmo jeito. Temos que dar um jeito para que o dinheiro sempre esteja circulando

Leno Santos, explicando o motivo de seu time não se federar

É preciso 'maiar' os obstáculos

A história das meninas com futebol começa muito antes de surgir a questão do dinheiro para a condução. A paixão começou cedo, assistindo às partidas ao lado dos pais. Se ganhavam bonecas, arrancavam cabeças que viravam bolas de futebol. As embaixadinhas machucavam os pés, mas a dor era gostosa. Os chutes deixavam os pés roxos, mas eram sempre acompanhados de sorriso.

Ainda hoje têm que cortar caminho. Na Copa Rainha Marta, o Liverpool conseguiu alterar o regulamento para que a jogadora mais nova do time, Camily Victoria, de 13 anos, conseguisse entrar em campo.

De acordo com o técnico Jorge de Andrade, Leno e ele entraram em contato com a secretária do Esporte, Lazer e Juventude, Cláudia Petuba, e alteraram o parágrafo específico do regulamento porque precisavam incluir todas as jogadoras do time.

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Foi por ela que as regras mudaram

Sentada na sombra com a mãe, Camily é alegria o tempo inteiro. Ensaiou o que diria na entrevista e se envergonhou quando perguntada sobre o que passava para vir treinar com as meninas do Liverpool.

"Tem vezes que a gente não tem o dinheiro da passagem, e aí fica difícil para poder vir treinar. Já faltei em muitos treinos porque não tinha dinheiro para pagar a passagem. Já sofri muito preconceito na escola e na rua porque o pessoal ficava chamando de 'Maria Macho' porque eu jogo bola. Eu jogo melhor do que alguns meninos até, então acho que é por isso que eles ficam com mais raiva", disse.

A mãe de Camily, Neide Maria, está desempregada. Vende flau, um sorvete em saquinhos de Alagoas, e salgados para ter renda dentro de casa. Com a crise, o pai da atleta também perdeu o emprego. Camily e Neide sempre passaram por muitos times, receberam promessas de bolsas que nunca se concretizaram. Até chegar ao Liverpool, não conseguiram se fixar em nenhum lugar pela falta de condições.

"Ela foi rejeitada pela falta de dinheiro e por ser mulher. Nós levamos muitos 'nãos'. Agora, apareceu a oportunidade de jogar aqui, gratuitamente, então estamos aqui. Tenho essa esperança dela no futebol. Com fé em Deus, vai dar certo. Todas nós gostamos muito da Marta. Ela é flamenguista doente, mas eu não gosto muito de futebol, não. Tenho que vir, acompanhar, já que ela gosta. Tenho que apoiar no que ela gosta", declarou Neide.

Enquanto conversava, a mãe não tirava os olhos do campo. Se Camily pegava na bola, a fala ficava um pouco mais lenta. Tinha de acompanhar todos os lances. Ao final, abraçou a filha e deu uma garrafa de água.

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Sorriso escondido

As meninas seguem o jogo. Seguram o cabelo para correr, brincam umas com as outras. Sorriem. A experiência de jogar futebol também conta muito e é por isso que o professor Leno Santos chama Emily Alexandra. Ela já disputou a Copa Rainha Marta nos anos anteriores e rodou por muitos times de bairro em Maceió até chegar ao Liverpool. Está com a equipe há dois anos. A areia do campo, segundo ela, é motivo de agradecimentos, mas também representa dificuldades: as partidas são disputadas no gramado ou em quadras.

Chamada de Sorriso, Emily tem só 15 anos. Odeia 'maiar' os ônibus, mas tem que fazer isso de vez em quando. É só entrar pela porta de trás, ninguém fala nada, às vezes até sabem que ela vai jogar futebol. Na viagem inteira, pensa 'como seria bom se não precisasse fazer isso'. Quando questionada, sorri e abaixa o rosto.

"No começo, é tudo difícil. Por ser mulher, ainda mais. Para quem jogava na rua, enfrentar isso é um pouco menos difícil. Quando chegar a Copa Rainha Marta, seja o que Deus quiser, mas espero que as coisas melhorem".

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Da terra de Roberto Firmino

Assim como Camily e Sorriso, uma das novatas do time se apega às coincidências. Yalania Silva sai do bairro do Trapiche da Barra, na periferia de Maceió, para treinar no Liverpool. Lembra de Roberto Firmino, que nasceu e cresceu no mesmo lugar, para pensar numa vida melhor. O Trapiche é um dos bairros mais violentos de Maceió. Lá, o futebol fica em segundo plano devido aos constantes conflitos relacionados ao tráfico de drogas.

Ela é chamada de Yoba porque 'Yalania' é um pouco difícil de pronunciar. Abraçada pelas meninas, gosta do apelido. Fala baixinho, as mãos nos quadris por causa do cansaço. "O futebol feminino é muito parecido, tem dificuldade em todos os times que a gente passa. Passagem, bullying. Sofremos muito bullying, sempre chamam a gente de vários nomes, que machucam. Não é legal para ninguém ouvir essas coisas ou que seja assim. Temos que correr atrás, se esforçar e não dar muito ouvido. Muitas pessoas só querem a gente por baixo".

Yoba é uma das que mora mais longe do campo de treinamento. A maratona de quase 20km, de ônibus e a pé, para chegar ao treino é recompensada pela chance de sair da realidade em que vive. "Tenho que pegar ônibus, muita das vezes tenho que andar um tempo para poder vir para cá. Meia hora, quarenta minutos. De vez em quando, tenho o problema da passagem".

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Time tem seis aprovadas em peneira da CBF

Um dia depois da visita da reportagem, as meninas participaram de uma seletiva da Confederação Brasileira de Futebol. Elas foram vistas por representantes do Corinthians e do Palmeiras, além de clubes locais. No total, 250 atletas estiveram presentes e 20 foram escolhidas para serem acompanhadas. Delas, seis jogam pelo Liverpool. Três serão monitoradas pelo Corinthians e três pelo Palmeiras.

Franciely Bezerra, chamada de 'Ronaldinha' pelas meninas, foi uma das aprovadas. Antes, falava sobre o nervosismo em participar da Copa Rainha Marta e da seletiva. No dia, segurou a bola no pé e mostrou habilidade. Para ela, "é engraçado que tantas meninas joguem bola e poucas sejam descobertas".

No Corinthians, juntam-se a ela Sorriso e Maria Isabel. Já no Palmeiras, estão Camily, Flávia Luiza e Mileny Esther.

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A Copa Rainha Marta no Rei Pelé

Criada como uma forma de incentivar o futebol feminino em Alagoas, a Copa Rainha Marta está em sua 5ª edição e é considerada uma das mais importantes do país. A competição é organizada pela Secretaria do Esporte, Lazer e Juventude (Selaj) do estado e, apenas neste ano, recebeu a chancela da Federação Alagoana.

Será disputada no Estádio Rei Pelé, principal palco esportivo de Alagoas e que tem a chance de ter sua nomenclatura alterada para Estádio Rainha Marta. Vale lembrar que o nome da jogadora em um estádio significaria pioneirismo. No Brasil, nomes de estádios homenageiam homens.

Neste ano, um projeto apresentado pelo deputado Antônio Albuquerque (PTB) sugere a mudança no nome. Uma emenda do deputado Silvio Camelo (PV) propõe que o estádio tenha os dois nomes: Rei Pelé e Rainha Marta. Gerenciado pelo governo estadual, a decisão está nas mãos do governador, Renan Filho (MDB), e não tem data para ser vetado ou sancionado.

Sobre os títulos disputados no estádio, o Liverpool de Maceió nunca venceu uma edição da Copa Rainha Marta. As equipes do União Desportiva de Alagoas (UDA) e o CSA dominaram as últimas edições, com dois títulos cada.

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